26.10.20

A boa morte da redundância

 Se há conversa que nos toca mesmo a todos e que, curiosamente, tantos evitam é a da morte. É matéria a que nem uma certa ideologia, dada a facilidades discursivas e armadilhadas com variantes do “tudo a toda a gente”, consegue dizer que não é inevitável. E é também muito curioso que os indefectíveis defensores da vida vivida, com ou sem sofrimento, até que um alguém não-humano nos leve, sejam os que prometem, porque de boa-fé acreditam, que “se vai desta para melhor”. Também é verdade que, mesmo no actual quadro legislativo, há a possibilidade da chamada “sedação assistida” a quem chega ao estado paliativo a que a Ciência se rende e que, em consciência, deixou essa vontade expressa num testamento vital.


Na semana passada, a AR votou que a legislação sobre a eutanásia será, como toda a restante, sua responsabilidade. E para que fique claro, nem ninguém será obrigado a usá-la, nem quem a queira o poderá fazer sem que reúna, para usufruir desse direito, o cumprimento de certos e muitos deveres e condições. Longe também do tudo a todos, portanto.

Pedir a cada português que escolha o que é uma possibilidade de outra escolha só sua é, por isso, redundante. E acirra a discussão pública de tema pessoal, privado e íntimo, com pouco impacto para a rotina colectiva, mas com muito interesse para quem sente como sua missão doutrinar sobre a forma de cada cidadão viver. Nada contra este espírito que, de resto, está já subjacente em muita legislação que se cria precisamente para transformar comportamentos.


Os que pediam o referendo, uma óptima oportunidade para escarafunchar a conversa e passar até outras agendas, são, alguns deles, nem sempre muito coerentes com essa exclusividade da mão divina, gerando aderentes que se prestam a usar as suas próprias mãos para, por exemplo, tresloucadamente decapitar em nome do que cria e do que leva. Desvios evitáveis mas que se descontrolam, precisamente pelo acirrar de colectivos algo informes.


Os 230 deputados que foram eleitos, muitos com liberdade de voto, foram-no depois de andarem semanas a falar com quem os elegeu. Quem não votou perdeu a oportunidade de ter essa representação, quem votou mas não viu os seus representantes a terem o número de fazer passar as suas leis continua a poder fazer um trabalho que as condicione, e aos votantes resta sempre a possibilidade de outras formas de participação na sociedade. Até nos Partidos, que existem precisamente para, na AR, tomarem partido em nosso nome. 

Com esta legislação em concreto, discutida à vista de todos e ouvidos todos os que nela se quiseram envolver, uma coisa é certa: mesmo aprovada, ninguém em meu nome me obrigará a escolher a “boa morte”. Mas também não serei julgada por gente como eu por a ter escolhido. Se, chegando-me ao cauteloso Blaise Pascal - que pelo sim, pelo não pensou que o melhor era acreditar num ser divino -, lá no Além, se tiver de prestar contas, terei expectavelmente a oportunidade de que me julguem pelo meu acto. A menos que também tenha de votar em quem me represente para o fazer. Lá estarei para isso!

20.10.20

O homem do saco

 Do fundo da infância, várias figurações dos medos atávicos parecem reconstruir-se não apenas no adulto, como na fatia da sociedade mais chamada a entender o funcionamento da máquina social. O homem do saco, o papão, ou outras personagens com que se ameaça a criancinha que não come a sopa ou se precipita para a asneira, sem mais delongas em explicações racionais e educativas, parece ter encarnado no Novo Banco. De repente, quando tudo o que diz respeito a dinheiros parece explicadinho, até na imprevisibilidade que uma certa lógica poderia evitar, salta o papão do Novo Banco, o homem que nos mete num saco e nos faz desaparecer do mundo tranquilo a que não parecíamos estar a dar o valor suficiente.


A conversa do Novo Banco enjoa-me a vários níveis. O primeiro é logo a de o Estado lhe estar a dar dinheiro. É mentira: não dá, empresta. Aliás, todos sabemos essa diferença quando recorremos precisamente aos bancos, contraindo empréstimos, para adquirirmos alguma coisa nossa. Uma casa, por exemplo. Não é nossa, é também nossa e do banco. Se não a pagarmos, mesmo estando nós a usufruir dela, o banco vem buscá-la. Podemos dizer, numa outra lógica, que então mais vale ser o banco o dono da casa e eu pagar-lhe-ia uma renda, o que equivaleria, na situação do Novo Banco, à sua nacionalização. Mas assim eu não seria também dona da casa. Pergunto-me, então, se a melhor solução seria o Estado ser dono de mais um banco... E esta é uma longa explicação ideológica que me predisponho a ouvir, com dúvidas que me convençam (sim, as boas dúvidas são-me sempre muito convincentes quando estou perante a gestão do futuro).

Depois vem a discussão mais técnica, apanhando-nos na ignorância do mundo financeiro, e que quem já se meteu em algum assado perceberá como a solução que lhe propõem para dele sair é, tal-qualmente, aplicável à gestão de uma dívida deste caso: quem empresta prefere ficar sem nada ou com alguma coisa? Quem tinha de pagar, prefere pagar menos ou ver penhorado tudo o que tem?

Posto isto, sem que me embalem com palavreado mal usado ou engenharias financeiras, o que sei é que, neste sistema em que vivemos e de que muitos comem porque lhes sabe bem independentemente da digestão difícil, face a uma instituição que, a falir, arrasta consigo muito que beneficia a vida em sociedade, há a questão judicial que me rói. Apurem-se os culpados, arrestem-se-lhe os bens que poderão ajudar o Estado a comprar a dívida emprestando dinheiro para que os lesados pelo crime cometido possam recuperar, se não os juros pelo menos o capital que lá tinham. E aos políticos, comentadeiros ou gente que não percebeu que ao discutir um assunto pode ser mais produtivo querer saber mais do que servir de eco das parangonas dos pasquins em vários formatos, peço-lhes que não me tratem, a mim nem a ninguém, como caixa de ressonância dos seus muito pequeninos interesses pessoais ou corporativos, normalmente recheados de partidarite.

13.10.20

O cansaço

Estamos todos fartos da palavra Covid. Estamos todos fartos da máscara, das filas para entrar em lugares semi-vazios, do álcool gel, dos boletins de números com gente dentro, das teorias que se contradizem e que transformam a Ciência na Fé que já existe e não merece essa concorrência. Estamos fartos disso tudo, isso que é só um problema menor. Problema de primeiro mundo, pois se é aquele em que vivemos mesmo quando nos queixamos da “choldra” a que içamos bandeira e entoamos, emocionados, o hino, noutras ocasiões.

Fartamo-nos dos efeitos e permitimos que a causa faça o seu percurso. E exacerbe bitaites, e faça equações impossíveis, e nos afogue em ais, e nos reúna no escurinho (que o que não se vê não conta, é como os chocolates comidos às escondidas que não engordam), e nos faça esquecer que ao soutien e à gravata fomos ganhando até gosto e cultivando estilo. E, sobretudo, que de fartos que estamos da palavra - pois a causa foi fazendo o percurso que o cansaço deixou aberto - a passemos a usar como uma boa desculpa, numa incoerência que abre alas a tudo quanto é mau. Assistimos ao que se pode resumir, em poucas palavras, por simulacros de preocupação e eficiência misturados com oportunismo para mascarar incompetências várias.

Resistir, em tempos de guerra, de crise, de dor, é também não nos deixarmos vencer pelo cansaço. Tal como permitirmos que nos tratem de uma doença, como em princípio queremos, é sermos, e sabermos que somos, pacientes. Ao fim destes oito meses (meses, senhores, não são anos, não é 14-18, nem 39-45!) e com o que ainda falta até que a pandemia morra, das duas, uma: ou ajudamos a acabar com o vírus-culpado e seguimos a táctica acordada por quem tem de, e escolhemos para, governar; ou desculpamo-lo, deixamo-lo seguir o seu rumo sem remorsos, e não nos podemos queixar mais dele. Já temos um vírus, poupemo-nos à doença do cansaço de primeiro mundo, por favor. 

6.10.20

Rentrée académica

Mais do que em qualquer outro ano, a chegada dos caloiros à vida académica está a ser uma novidade. Partilham, de resto, com os professores e os estudantes dos outros anos, essa mesma condição. Talvez num zelo democrático nunca antes visto, em Évora todos começámos o ano com a mesma informação sobre como iria decorrer o primeiro semestre.

À complexidade da organização de um ano lectivo numa instituição,
veio juntar-se a complexidade de gerir a pandemia. Mas a experiência do semestre passado, quando se teve de assegurar as aulas em confinamento, funcionou como ensaio. Avaliada a experiência, ouvidos os intervenientes, tomadas todas as medidas possíveis, estamos preparados para que o efeito da pandemia não seja o pandemónio. Até pudemos testar que não haverá mal em equacionar que algumas disciplinas, ou cadeiras que é como se chama intimamente às unidades curriculares na universidade, possam passar de um sistema presencial, para um sistema semi-presencial (o chamado b-learning) ou mesmo online.

Com a primeira lição aprendida, lançámo-nos a todos os esforços para que fosse possível a cada docente e cada estudante ter um computador com câmara e boa rede. E com isto, finalmente, também poder haver, sem desculpas, assiduidade.
É bom perceber-se que não se perdeu uma oportunidade de se fazer uma transição inteligente para o “novo normal”, o que virá depois da pandemia. Aliás, o b-learning, os cursos on-line, ou a utilização das novas tecnologias na agilização da comunicação entre pares, no ganho de tempo e recursos que oferecem, já não eram novidade em nenhuma instituição de ensino superior. E, na minha opinião com conhecimento de causa, nenhuma destas práticas afastará, no futuro, as relações de proximidade entre os docentes e os estudantes, nem porá em causa a eficácia da transmissão do conhecimento. Ficarão guardados, esses contactos “ao vivo e em directo” mais pontuais, para os primeiros laços, para as emergências, para as comemorações, para as despedidas.

É, pois, com tudo isto, e mais a alegria de se borrifar a passagem do arco triunfal para o novo mundo académico, que se dão as boas-vindas aos estudantes e docentes neste surpreendente ano lectivo em Évora.

Ora bolas, que o borrifo fez-me perceber que nesta crónica lá me fugiu o dedo para a ficção!... Mas estarei sempre disponível para contribuir no sentido de também esta, e não só a malfadada em que parece estarmos a viver, ficção se tornar realidade.