29.1.15

Pole position

Se o estrangeirismo de hoje, pole position, vem do mundo do automobilismo, o assunto da crónica são as eleições na Grécia e a vitória expressiva do Syriza. A pole position é o primeiro lugar na chamada grelha de partida de uma corrida de carros, o lugar destinado ao piloto mais veloz e alcançado, normalmente, em treinos classificatórios.
No que me parece que se tornará uma curiosa, ou talvez não, repetição da história e espécie de fado da civilização, a Grécia reinaugurou a democracia. Não andou para trás, fez antes uma espécie de upgrade, para usar outro estrangeirismo, dessa democracia, primeiros passos gregos que deram no que permite irmos atualmente a eleições escolher quem nos governa, para o bem e para o mal, mas com a possibilidade de, ciclicamente e quando necessário, mudar-se em paz e com regras.
Não que todos tenhamos que ter um Syriza e que passará a haver em cada país desta Europa a que pertencemos, um partido saído da extrema-esquerda a amaciar-se e a deixar de bradar do lado de lá, na oposição, e passe para o centro das decisões a tomar, com o bom senso civilizacional, sem retrocessos. Estou quase absolutamente convencida – há sempre espaço para as surpresas, bem entendido – que se engrossarão as hostes do lado mais à esquerda do que é a imensa massa de moderados que alternam nos governos europeus. E o que irá precisamente acabar são algumas tendências no que aos mais à direita neoliberal diz respeito, e que se juntarão a outros extremismos que também poderão começar a ganhar a sua força. Afinal, o que ouvimos ao Syriza e terá contribuído para que tenha ganho as eleições agora, já ouvimos num documento assinado por muitos que militam e simpatizam com um Partido do chamado “arco da governação”: renegociação da dívida e recusa da austeridade pela austeridade, ou seja como fim em si mesma.
Inquestionável é que a Grécia está agora na pole position para que mude de facto alguma coisa na Europa, o que já começou a acontecer através do BCE. Uma pole position muito bem conseguida pelo Syriza não só pelo lado do sempre popular discurso da contestação, e ainda mais em períodos de crise manifesta, já que latente é ela sempre nestas almas meridionais banhadas pela nostalgia do Mediterrâneo. Foi conseguido também pelas provas dadas enquanto governo local e regional. Na Ática (e noutras regiões das Ilhas Jónicas), o governo Syriza tem sido o laboratório da experiência. E parece ter tido o êxito suficiente (multiplicou por seis o orçamento social apesar do contexto não ser nada amigável, por exemplo) para que a escolha fosse agora para o governo nacional.
Tudo isto requer atenção, porque há mudança nos ares do velho continente e a confiança de nós europeus terá de ser reconquistada. Atenção por parte dos Partidos, que são quem propõe os governantes para irem a votos, mas também por parte dos cidadãos eleitores que têm no voto a sua mais legítima e eficaz arma para que os governantes se comportem. Tudo isto com tempo ainda para cuidarmos do nosso próprio comportamento cívico – quantas vezes, até só por inércia, não pactuamos com situações que não beneficiam em nada o bem comum? Tudo com tempo também, aqui por Portugal (e por que não se gostam e ainda lhes chegam os euros) para uma excursão familiar com a petizada àquilo da Violetta? Tudo uma questão de escolha possível, quando as circunstâncias são oportunas. De qualquer modo, como dizia o slogan do movimento Que se Lixe a Troika retirado do discurso do ator desempregado André Albuquerque de 2013: «Portugal não é a Grécia!».

20.1.15

VIP 1

Ser-se VIP significa ser-se uma pessoa muito importante, e vem do inglês “Very Important Person”. Esta palavra geralmente refere-se a pessoas que têm alguns privilégios que não são concedidos a todos, só aos muito importantes. Foi uma sigla que se tornou termo e que apareceu a meio do século passado. Aplica-se sobretudo a celebridades da música, autores famosos, grandes desportistas, personalidades das artes, especialmente as que chegam às multidões, como os atores e as atrizes de renome internacional. As celebridades podem ser também os chefes de Estado, os chefes de governo, os empresários de grandes grupos, os políticos com grande destaque na imprensa e pessoas de grandes fortunas que se sobressaem dos outros. Por vezes esses VIP têm a maçada de ser vítimas dos haters. Haters é uma palavra de origem inglesa e que significa "os que odeiam" ou "odiadores" na tradução literal para português. Mas sobre estes hoje não direi nada.
Cheguei ao VIP pela recente notícia que circulou dando a conhecer a muito interessante carta enviada há 50 anos por Jean Paul Sartre, filósofo e escritor francês bem conhecido nem que seja de nome, ao então Secretário da Academia Sueca responsável pela atribuição do prémio mais VIP do mundo, o Nobel. Uma carta que não terá chegado a tempo, pois não teve efeito o seu pedido e o Nobel lá lhe foi atribuído três dias depois e, como anunciado, recusado. Sartre fê-lo por razões também da sua ideologia política, sendo um tardio mas firme defensor dos regimes comunistas e consciente de que os prémios como aquele tornam os premiados em instituições. Uma honra, é certo, que ele reconhece, mas que o faria ou alinhar-se pela ideologia sueca da Fundação do Nobel ou vice-versa. Terá dito e cito: «as minhas simpatias pelos revolucionários venezuelanos implicam-me a mim, enquanto se Jean-Paul Sartre, o laureado, apoia a resistência venezuelana implica todo o Prémio Nobel como instituição.» E foi assim que de entre os 76 autores listados nesse ano, o escolhido recusou.
Mas não foi caso único, já que houve mais VIP’s neste mundo que acabaram por não receber o Prémio que quer gostemos ou não, do prémio ou do premiado, acaba por tornar mundialmente confirmado esse estatuto VIP. Em 1973 o fundador do Partido Comunista da Indochina recusou-o por lhe ter sido atribuído ex-aequo com o norte-americano Henry Kissinger, premiando as negociações pela paz entre os dois países, mas como ainda estariam sem efeito à altura do prémio, o político comunista não o quis receber. Curiosamente, ou talvez não, Hitler impediu três laureados da química e da medicina de receberem os respetivos prémios, em 1938 e 39, assim como as autoridades da União Soviética, em 1958, impediram Boris Pasternak de aceitar o Nobel da literatura.

O certo é que Sartre não deixou de ser Sartre por ter recusado o Nobel e rejeitou, por motivos pessoais e em coerência alinhado com outros de ideologia idêntica, vestir uma pele que não era a que queria para ele. Não menosprezou os que o receberam, antes pelo contrário. Mas parece-me que esta justificação que conhecemos agora, findo o segredo de 50 anos, nos mostra o quão VIP se pode ser recusando sê-lo. Afinal, duas formas de fazer valer um estatuto de que se gosta e permanecer, com ou sem prémio, sob os holofotes da opinião pública. É que os VIP’s também se alimentam de palmas.

13.1.15

Deadline

Deadline é o último prazo para a realização de uma tarefa; mas é também o horário de fecho da edição de jornais ou revistas. Quarta-feira passada, dia 7 de janeiro, deadline passou a ter mais um significado na minha gramática pessoal, resultado do massacre de Paris. Mais um episódio desta estranha terceira nova forma de guerra mundial, que conhecemos pelo nome de terrorismo.
O uso organizado do terror como recurso político existe há milénios. Foi praticado pelos governos das cidades gregas como forma de guerra psicológica contra populações inimigas; os imperadores romanos Tibério e Calígula semearam o terror, tal como os membros da Santa Inquisição. Robespierre e os seus adeptos, os encapuçados do Ku Klux Klan, as milícias nazis, exemplos entre muitos outros. Nos últimos dois séculos, os Estados foram ficando cada vez mais burocratizados e a morte apenas dos líderes não causava as mudanças políticas desejadas. Os terroristas, que até então evitavam o que nos habituámos a chamar os danos colaterais, passaram a usar os métodos que conhecemos hoje. Só em 1972, a temática do terrorismo foi incluída pela primeira vez nos debates da Assembleia Geral das Nações Unidas. Deles saíram duas posições: de um lado o bloco ocidental que advogava a repressão, com um enfoque liminarmente jurídico da questão; do outro, o Movimento dos Não-Alinhados e os Estados comunistas, que defendiam a identificação e a eliminação das suas causas, justificando um enfoque político. Em 1985, só 13 anos depois, houve a primeira condenação do terrorismo por consenso e o enfoque jurídico passou a prevalecer: o terrorismo deixou de ser legitimado por quaisquer que fossem as motivações políticas. Não há desculpas.
As linhas com que os jornalistas do Charlie Hebdo traçavam nos cartoons a sua opinião crítica política incomodavam muita gente. A uma outra escala, obviamente, como fazem todas as críticas até, por exemplo, as rubricas como as crónicas de opinião da Diana. A crítica, sobretudo em público, incomoda não apenas os que se sentem por ela atingidos, como até pela própria expressão de forma dessa crítica, mesmo quando dela não se discorda. Os cartoons, uns mais explícitos outros mais velados, quase todos metafóricos, são de leitura mais direta do que as palavras alinhadas em frases e parágrafos onde também, ainda assim, o equilíbrio entre o que é expresso e o que é subentendido, permite níveis vários de interpretação. Nenhuma dessas linhas justifica porém o crime, nem quando são provocatórias, quando se vive numa sociedade em que a liberdade é um valor e tem um sentido vivido por todos. Um sentido que não exclui a defesa de uma honra ofendida ou até só tocada, como o provam os inúmeros casos de processos na justiça, uma luta possível em que se discute, aí sim, o limite da liberdade de imprensa, ou até de expressão. E que apenas é possível quando os dois lados dão a cara, sem cobardia (que não é crime, só aleijão) acoitada em anonimatos.

As linhas do Charlie Hebdo foram linhas mortais. Deadlines. Para quem as desenhou, mas também para outros que apenas ali estavam nas suas diversas funções. Foram todos danos colaterais, porque os cartoons não morreram. Nem o Charlie. Estará até mais vivo do que nunca. E o terror, esse, caberá a cada um de nós, europeu eventualmente a sentir-se ameaçado, vencer, continuando a viver como se ele não existisse. Se lhe cedermos, o nosso deadline chegará mais cedo e deixaremos os nossos planos e as nossas vidas interromperem-se. Devemos isto às vítimas que caíram às mãos dos terroristas, sejam loucos, fanáticos, idealistas, homens de fé, de crenças, de ideias feitas. Sejam eles aquele cujo dedo prime o gatilho ou o que, à distância, lhes lê a cartilha por onde aprendem a ser assim. Não podemos tornar-nos todos, nem daqui da aparente pacatez da planície alentejana, vítimas do terrorismo. E é por isso que todos somos Charlie.

6.1.15

Iceberg

Confesso que este frio que se abateu sobre o Natal, e sobretudo na Passagem de Ano, me fez procurar estrangeirismos relacionados com esta sensação que nos traz a uns encolhidos, a outros recolhidos. Depois, como se jogasse ao “Stop” e numa associação de ideias, lembrei-me da palavra iceberg.
Apenas 10% destas montanhas de gelo, que é a tradução literal da palavra que designa precisamente esse fenómeno de gelo flutuante no mar, fica visível na superfície. Os restantes 90% do seu volume estão dentro de água e é isso que faz deles um grande perigo para a navegação marítima. Por causa dessa característica dos icebergs é que surgiu a expressão que diz que "isto é apenas a ponta do iceberg", expressão que significa que determinado acontecimento ou assunto é apenas o começo, ou uma pequena parte, de um problema ou situação muito maior e complexa. Tudo normalmente conotado com coisas más e raramente surpresas agradáveis.
Curioso é que também na cultura organizacional se utiliza o conceito de iceberg  para explicar a constituição de uma companhia ou empresa. Fazendo uma analogia com o iceberg, a menor parte do bloco de gelo que fica visível sobre a linha da água representa os resultados de uma empresa e que são apresentados publicamente. Já a maior parte, sob a linha de água, simboliza a estrutura e organização responsável pelos resultados da "superfície do iceberg". Esta parte representa todos os setores "invisíveis" de uma empresa. Quem fala de empresas, fala da vida de instituições a que, ou estamos efetivamente ligados, ou acabamos por muitas vezes conhecê-las apenas por essa parte menor e, no entanto, a única visível. E como é fácil que nos convençam, e até nos iludam, de que o que se vê na ponta do iceberg é que é aquilo sobre o que devemos tomar posição e formar uma opinião! Como se o que realmente importasse permanecesse secreto ou escondido do comum dos mortais e só acessível a iniciados…
O país democrático que conhecemos há 40 anos tem-nos permitido, talvez mais a sensação do que efetivamente, irmos conhecendo mais sobre determinados processos e sobre o funcionamento de certas instituições que determinam a nossa vida pública, mas até em alguns casos a privada. No entanto, nem sempre os cidadãos comuns fomos suficientemente aliciados a saber mais, ou acabámos por nos desinteressar face à complexidade do que “está abaixo da linha de água”. Limitamo-nos, muitas vezes, a apenas avaliarmos os restantes 90% de um assunto pelos 10% que queremos, ou nos deixam, ver. Uma espécie de confiança que ao invés de se tornar cega, como apesar do adjetivo euforicamente poderia acontecer, fica nas mãos dos que fazem desses 10% aquilo que lhes importa dar a conhecer. Daí, talvez, a crise de confiança que está definitivamente diagnosticada nos cidadãos.   

A crise de confiança que dá jeito aos que, arautos da desgraça e paladinos de amanhãs que cantam, vão angariando hordas inconformadas mas cooperantes com o dizer mal não apenas e só porque se sentem mal, mas porque desconhecem o que se poderá fazer e como participar para que passe a correr menos mal, porque sim, poderemos fazê-lo. A crise de confiança que só se atenuará se os cidadãos aprenderem a “mergulhar” nos assuntos, informados, conhecendo o porquê de ter de lidar com essas “montanhas de gelo” que ameaçam a suposta tranquila navegação de uma sociedade num rumo que se deseje sempre de progresso.