21.12.21

Prendas também não?

Estamos em plena época de presépios, árvores iluminadas e troca de prendas, ritual entretanto generalizado numa grande parte do Mundo, graças ao sucesso da verba sobre o verbo que o capitalismo anunciou, e venceu. Para além de aproveitar para vir desejar umas Boas Festas, sejam elas graças ao Cristianismo ou ao convívio militante de quem não espera levar para o outro mundo prazeres nem desaforos e os gasta todos neste, não posso deixar de comentar o brinde da testagem que marcará o Natal 2021. Talvez até inaugurando uma prática que, oxalá, não dure ao ponto de se tornar tradição.

Li na semana passada que, para além da falta dos cada vez mais caros autotestes, situação generalizada a muitas zonas do país, o Alentejo mantém-se como a região onde há menos farmácias aderentes aos testes totalmente pagos pelo Estado a estes privados. No conjunto dos três distritos – Portalegre, Évora e Beja – que tem cerca de 160 farmácias, existem apenas 57, mais 10 desde ontem em relação ao início da oferta, que aderiram a esse programa que dá quatro borlas por mês aos cidadãos para se testarem. Ou seja, mais de 2/3, de um todo de farmácias que se distribuem por 43 concelhos, declinou esta prenda quando, no total nacional dos 308 municípios, há agora 1040 (anteontem eram cerca de 900) farmácias aderentes. Terão lá as suas razões, obviamente, talvez até muito atendíveis. Mas não deixo de pensar naquela “blague” que conta como o dono de um estabelecimento comercial mandava fechar as portas porque vinha lá uma camioneta cheia de potenciais clientes…

A fechar 2021, mais um ano pandémico, e abrindo 2022 com uma campanha eleitoral para eleger os representantes que escolherão o próximo Governo, gosto de me despedir com números cruzados com experiência de terreno. O que, de resto, me faz continuar a simpatizar, e votar, num Partido que, não vergando a alma à verba, o que desalmaria muita gente, não as ignora - nem às almas, nem às finanças. É que, para gerir o País, o Governo deste Partido não tem cedido, pelo menos nos que ainda ocupam os lugares cimeiros, à tentação de prometer tudo a todos. Nem tem, por outro lado, usado o punho que usa como símbolo para ser “mão-de-vaca”. É que distribuir o pouco que se cria parece, sempre que se ouve falar em milhões investidos, que há dinheiro mal gasto, mas por outro lado exige-se que se invista mais ali ou acolá, conforme sentimos “o pouco” mais perto da nossa pele.

Com os governos do Partido Socialista a tendência plasmada nos programas, para além dos objectivos retóricos, é ir esbatendo essas discrepâncias, o que exige estabilidade e tempo. E é por isso que eu desejo, com uma das primeiras das 12 tradicionais passas da Passagem de Ano, um governo do PS com uma maioria suficiente para aplicar o seu programa.

 

14.12.21

O súbito interesse pela leitura científica

A vacinação de crianças tornou, subitamente, a oposição ao Governo muito interessada na leitura de pareceres técnicos sobre este avanço científico e o impacto do seu uso em seres humanos que têm entre cinco e 11 anos. Mas, atenção!, que a preocupação foi só com as crianças do continente e do arquipélago dos Açores, porque na Madeira os cachopos não deram nenhuma dor de cabeça a ninguém! Gente rija e confiante, essa governada pelo PSD escrutinado por todos os outros Partidos que não governam em lado nenhum com decisões e opções destas a poderem e terem de ser tomadas. Os pais-piegas-eleitores estão todos, ao que parece, em Portugal continental. 

É sabido que quando não se tem nada, ou pouco, para apontar ao conteúdo, se implica com a forma. Encontramo-nos com situações destas mais vezes do que nos damos conta, porque estamos pouco habituados a desmontar ideias feitas e a pensar no valor das palavras. Vivemos num Mundo em que estas se transformaram em palavras-chave e palavras-passe, como se todos lhes tivéssemos igual acesso, sem provarmos que merecemos conhecê-las para aceder a uma qualquer caverna com tesouros, quais Ali-Babá. E aqui reside uma grande parte de alguns problemas da contemporaneidade: é também preciso saber ler e avaliar a forma. 

Parto do princípio que os técnicos e cientistas em vacinas e vacinação tenham partilhado toda a informação com os seus pares especialistas. É também para isso que podem servir as Ordens, caso já se tenham esquecido da sua razão de ser…  Para além, claro, das várias publicações científicas, plataformas de divulgação especializada.  Muitas são tão cotadas na bolsa do emprego científico que há quem se desunhe para lá ter o seu nome a assinar um artigo em que apresenta precisamente avanço científico e avaliação de impactos. 

Fico contente com esta embaixada inadvertidamente criada em defesa do Open Access. Ou seja, acesso aberto, que é o que se chama à disponibilização livre na Internet de cópias gratuitas, online portanto, de artigos em revistas científicas validadas. É que há valores vergonhosos que muitas edições cobram, não apenas a quem lá publica para ser lido e ter uma boa linha no cv, como para um leitor interessado descarregar os mesmos artigos. 

Mas no mundo da investigação também já se percebeu que a comunicação de ciência é uma área de conhecimento e formação específicos muito importante. Sob pena de que até o investimento público nessa investigação não reverta totalmente para… o público. 

Mas voltemos ao principal: sim, temos de saber todos os riscos que corremos quando somos medicados; é por isso que vamos ao centro de saúde apanhar vacinas ou buscar receitas. Sim, quem legisla tem direito a saber sobre questões que envolvem o bem-estar dos cidadãos, talvez assim não produzam de vez em quando leis com redacções mal-amanhadas  que têm de andar para trás e para a frente. É pena é que, como em tantas outras situações, só se dê por essas preocupações por causa de outras preocupações como, por exemplo, eleições próximas. 

Há que ter muita atenção quando avaliamos para julgar e, para isso, temos que perceber muito bem a conversa que temos com quem sabe. Noutro assunto, por exemplo, agora que a tardia demissão do ex-MAI lá se deu, tenho estado muito atenta à investigação acessível ao atropelamento mortal na A6. Aconselho a seguirem-na também. Para muitos podermos aprender com uma tragédia irreparável, tal como foi a daquele acidente, será importante que, no final da investigação, em poucas páginas se conclua com clareza o que aconteceu, como aconteceu, porque aconteceu. Imagino que essas páginas sejam as mais difíceis de escrever e publicar para todos os envolvidos na investigação, mas será com elas e depois delas que poderemos saber e deixar só de “achar”.  

7.12.21

Judite e Natália

 Nos últimos dias estive mais envolvida com textos e vidas de duas Autoras que foram colegas de Curso e teriam completado neste ano 100 e 95 anos, e gostava de partilhar convosco esse privilégio. Com dois percursos muito diferentes, nenhuma delas teve, no meu entender, o reconhecimento, ainda, que a obra que deixaram merecia. E, acrescente-se, apesar do que a Universidade de Évora fez por uma, pode fazer por outra, podendo fazer ainda muito por ambas. Mas já lá vamos.

A Maria Judite de Carvalho (1921-1998) foi atribuído o Prémio Vergilio Ferreira em 1998, mas a Autora morreu pouco tempo antes e não chegou a tê-lo nas mãos. Tem a sua obra (até agora) completa reunida na editora Minotauro. Maria Natália Lima (1926-2006) ficou esquecida, depois de ter ganho um Prémio atribuído por um distinto júri e promovido pelo Diário de Coimbra, pelo Instituto Alemão e pela Editorial Verbo em 1973. E de se terem esgotado nesses anos as edições das suas duas obras que foram então publicadas e das quais só agora se reeditam, com uma terceira inédita, em trilogia pela Âncora editora. Eu disse que ficou esquecida, mas não, entenda-se, pelos jovens leitores que, na segunda metade dos anos 70, inícios de 80, devoravam livros, como esta privilegiada vossa cronista fazia. 

Maria Judite acabou por viver na sombra de um marido cheio de sucesso no mundo das Letras, em que a Academia tinha, e ainda terá, um enorme peso: Urbano Tavares Rodrigues (1923-2013), colega de curso de ambas na Faculdade de Letras de Lisboa. Maria Natália ter-se-á deixado ultrapassar não apenas pela sua própria vida de mãe dedicada de 10 filhos, mas por um contexto da edição para públicos juvenis, e respectiva atenção académica, que só no finzinho do século XX e sobretudo a partir de 2006 com a criação do Plano Nacional de Leitura, ganhou mais interessados, ainda que sempre à margem dos interesses do cânone, ainda que este já não viva propriamente num condomínio assim tão fechado. 

Se a Universidade de Évora teve o seu papel em 1998 com o Prémio Vergilio Ferreira e assinala hoje o centenário de Maria Judite, foi graças à edição muito bem supervisionada, juntamente com os seus irmãos, pelo Professor de Filosofia na nossa Universidade, João Tiago Lima, um dos 10 filhos de Maria Natália e Rui Pedroso Lima, que Maria Natália Lima fica agora disponível nas livrarias. E contará comigo para estudar e divulgar essa trilogia que reúne Os Outros e Eu, A Liberdade e Eu, Ele e Eu, rendida que estou, na releitura, à qualidade desta mini-saga literária que vem, na minha opinião, preencher um espaço que ainda persiste vazio nas estantes dos livros mais lidos por jovens portugueses. 

Aproximando-se a quadra em que a haver folga nas finanças domésticas se compram prendas para oferecer, sugiro que antes de embrulharem as obras destas duas Autoras, as leiam também. As duas tão diferentes na escrita uma da outra: uma existencialista; outra realista. Como também serão diferentes os potenciais leitores. Ambas atentas conhecedoras dos comportamentos do ser humano em sociedade, ambas exímias artistas da palavra que se transforma em frase, parágrafo, texto literário que cria mundos e lê o Mundo. Contextos com pretextos próprios em que importará, depois, pensar mais um pouco.

30.11.21

GP centenária

 Chegaram na sexta-feira ao fim as comemorações dos 100 anos da Escola Gabriel Pereira. Tendo tido eventos em espaço público e com público em 2019, antes disto tudo começar, o pano caiu com a publicação de um livro que conta a história mais recuada da instituição, mas encerrando com o relato das próprias comemorações.


Tenho duas declarações de interesse a fazer: primeira, que o Autor, o Fernando Luís Gameiro, é colega e amigo; segunda, fui eu quem apresentou a obra. Falei, pois, do que conheço e com a liberdade da opinião que foi relativamente fácil de alinhar: o rigor nas fontes a que um bom historiador está obrigado, a polifonia dos testemunhos com direito a entrevistas transcritas, a própria história de uma escola de excelência numa vertente, tantas vezes secundarizada, por ser escola técnica, industrial, comercial, profissional. Tudo adjectivos que, durante tanto tempo, serviram para desqualificar este ensino face ao outro, o dito orientado para percurso científico.

Mas o que me ficou do magnífico ambiente de fim-de-festa na passada sexta-feira, tão fria, foi a sensação de esforço conjunto recompensado. Pessoas que fui encontrando, com surpresa, de que logo me recompunha pela óbvia razão de ali estarem. Comunidade educativa deixou, no fim da tarde de sexta-feira, de ser uma expressão abstracta. Ganhou rostos, reencontros, cumprimentos, discursos. E consolou quem espera sempre que as instituições cresçam pelo esforço e empenho das pessoas que a compõem e não tentativas de que as coisas funcionem precisamente no sentido inverso. Foi um bom dia.

23.11.21

As arrelias na saúde

 Se dúvidas houvesse sobre as dinâmicas sociais e os seus impactos no quotidiano, relacionadas com o chamado “elevador social”, as notícias dos últimos dias sobre o estado do SNS confirmavam-mas. Note-se que estou a falar das “notícias sobre” e não do “estado do”. Este último não poderá nunca ser um estado perfeito, não só porque todos queremos sempre mais e melhor, mas desde logo porque se sabe que todo o montante recolhido pelo Estado ao cobrar IRS não chegará para pagar o que custa cuidar da saúde dos portugueses.


Imagem eloquente, este elevador social, que normalmente se aplica às oportunidades contemporâneas de não se ficar num lugar menos privilegiado, onde se nasceu, e “subir-se na vida” por maior disponibilidade financeira. E este patamar altaneiro corresponderia a outras consideradas vantagens, socialmente valorizadas por padrões que trazem ainda características de um passado onde nem todos, nem mesmo os mais afortunados, se sentiriam naturalmente integrados.

No trabalho e nas profissões da área da saúde, os senhores doutores e as senhoras enfermeiras, assim mesmo com distinção de género e tudo, tinham lugares muito distantes um do outro na bolsa de valores sociais. Felizmente foi ultrapassada esta cristalização e este enquistamento que vedava, ou dificultava, o acesso de muito boa gente, pessoas mesmo excelentes, às duas profissões. Mas a necessidade de hierarquias parece ser uma característica humana que se reflete na organização social. Tudo isto sucedendo não sem algumas arrelias, porque quem sobe, no tal elevador, vai à procura do paraíso que imaginava lá estar e não encontra. Quem lá está, nesse patamar, vê-se no meio de mais pares com quem competir e, muitas vezes, arreliado porque não chega ter título e nome, mas lidar com o que de bom e mau define um ser humano. E os que não sobem porque o elevador está cheio e o direito de admissão se faz por critérios de uma hierarquização diferente, também ficam muito aborrecidos. Pessoas a terem de se adaptar a novos critérios ou, talvez ainda pior, a velhas tácticas que eram próprias de níveis privilegiados e que, agora, também andam no elevador a fazer paragens em vários andares, como grupos de miúdos a fazerem brincadeiras parvas. E estas, quando descobertas, incomodam até os que também, de vez em quando, fazem esse tipo de “reinação”.

O que é certo é que tudo isto me leva a olhar para as arrelias na saúde como um novo retrato identitário destas duas classes, como as novas classes operárias, as do século XXI, herdeiras das do século XIX. E a recordar os movimentos sociais que usavam os “sabots”, as socas de madeira calçadas pelos operários que, quando descontentes com as condições de trabalho, punham a encravar as máquinas, criando-se até a palavra “sabotagem”. E não deixa de me permitir fazer uma leitura muito orientada e “cheia de agenda” da velha história da Cinderela, claro, mas é nisso que deixo os ouvintes/leitores a pensar…

Às vezes estas situações, vindas de quem trabalha na área para que estudou anos a fio com investimento próprio mas também público, parece-me que se prestam a que se diga que “isto é gozar com quem não trabalha”. Sendo o “com” entendido até nas duas valências: “com” no sentido de em conjunto, leitura malévola comum de fazer a distinção entre emprego e trabalho (e todos sabemos do que se trata); ou “com” no sentido de opor duas condições, os que têm e os que não têm trabalho. Eu cá conheço muita gente, jovem e trabalhadora, que tendo estudado para ter uma profissão, ainda anda à procura de um lugar nela. E estes, perante as arrelias de doutores e enfermeiros, também têm direito a “tugir e mugir”, pois têm.

16.11.21

Nem tcharam!, nem uau!

O que motivou a operação Miríade é razão de tristeza, sobretudo por contribuir para a descrença dos cidadãos em instituições cuja dignidade não merecia ser beliscada. Sabemos que em todas as instituições que se prezem, e porque são feitas por pessoas, há “maçãs podres” devidamente retiradas quando descobertas. Algumas são motivo de notícia num ou noutro jornal ou noticiário, e em vários lugares se contam histórias deste ou daquele apanhado, e a coisa fica assim, nas mãos da justiça, sem “tcharans”, nem “uaus”.

O que se passa no caso Miríade, a que se chegou com todas as cautelas de investigação que qualquer suspeita de crime exige para que o desfecho não termine em nada, sem constituição de arguidos, tem uma outra escala. A coisa, ao que parece, está a resolver-se de forma definitiva, com quem tem de ser resolvida. As Nações Unidas foram consideradas como parte a ser envolvida, o PM e o PR, não. As primeiras ter-se-ão envolvido na investigação, os outros não. Teria sido mais eficaz ou célere a investigação se tivessem estado? A resposta parece-me óbvia e a pergunta a única pergunta útil a ser feita por quem usa as sinapses para pensar a coisa pública.

Quem sabe o que está a fazer, sobretudo em assuntos tão delicados que envolvem crime, não tem de seguir outro tipo de agenda que não seja a da investigação criminal.
Mas a vontade de tcharam! a abrir primeiras páginas e telejornais, com os “cheerleaders”da oposição ao Governo a ligarem os megafones no botão do uau!, revela bem o quanto a fiscalização de poderes é assunto ainda pouco sério em Portugal. A estas tribos juntaram-se as habituais vozes que contestam, à boleia dos holofotes, e que até aproveitaram os que iam ao cheiro do podre para lançarem um livro sobre uma polémica reforma das Forças Armadas. Ficou tudo muito clarinho - era preciso fritar o Ministro em lume mais forte - só não percebe quem não quer. Felizmente também estes elementos oportunistas não são partes que representem dignamente o todo.

Sabemos também que há na Assembleia da República e na comunicação social quem, respectivamente, as use como palco e promova certos actores, para sobressaírem do seu normal desempenho de acompanhamento e escrutínio dos poderes instituídos. Mas travestidos de contra-poder, facilmente se distraem dessas importantes tarefas (olhem, como certos militares e não as Forças Armadas todas), saboreiam cada amendoim que lhes cai no colo e “pintam a macaca” à procura de casos e casinhos que lhes dão tanto jeito.

Eu sei que faz parte, que o “quanto pior melhor” é, não apenas uma táctica, como uma forma de sobrevivência (e falo de novo, respectivamente, de alguns que frequentam a AR e de uma certa comunicação social), mas que cansam e banalizam o que merece seriedade, em defesa da Democracia, lá isso cansam. E deixem ver quanto tempo dura o sururu (já quase não ouço nada!). Entretanto, julguem-se os suspeitos e condenem-se os culpados. Para que não se pense que, com tanto barulho, isto se transforme mesmo num regabofe. 

9.11.21

Da provável monotonia cheia de surpresas

Agora que já sabemos que vamos a votos a 30 de Janeiro, podemos preparar-nos para três meses de sondagens, comentários, cenarizações, casos, casinhos e quejandos. Pode ser aborrecido, mas antes isto que uma tragédia tipo pandemia ou catástrofe natural.

E Fevereiro, para além do Carnaval cíclico a terminar um mês e iniciar outro, trará inevitáveis danças de cadeiras, num swing mais ou menos enérgico, dependendo dos resultados do primeiro dia 30 de 2022. Se o ano fosse bissexto até se arrumava tudo, Carnaval incluído, no mesmo mês. Assim sendo, com a Primavera talvez chegue alguma paz ao Governo da Nação. Não parece mau ritmo e espero que traga boas coisas ao futuro próximo. Para isso, julgo que a monotonia temática ganhará com algumas sacudidelas próprias das ondas de choque de umas eleições provocadas por uma crise política e não apenas pelo voltar da página do calendário.

Para já, o que eu gostava mesmo é que todos os entendimentos necessários, dando-se o caso de os portugueses não quererem um único grande Partido a governar e mantenham votos em Partidos até agora minoritários, sejam mesmo é comprometimentos. E para tal não bastará um ou vários acordos assinados: é assumirem pastas e entenderem-se entre ministérios, tão bem como se entendem os ministérios de uma só cor.

E que não se pense que a proposta desta opinião alivia a vida a qualquer um dos dois grandes Partidos. Cada um deles vai ter de se pensar e pensar muito bem as alianças que fará. Que não se pense que confiar em radicais é bom, para qualquer lado que penda. Que se pense sobretudo muito bem, antes de querer chegar ao microfone mais depressa e falar mais alto. O microfone é um isco tramado e a memória das gravações, quando dá jeito, pode ser tão perigosa como a falta dela. 

2.11.21

A Separação

Ai, a esquerda unida é que era! Ai, que só unidos à esquerda é que combatemos a extrema-direita e o liberalismo desenfreado! Ai que só assim é que nos libertamos dos que estão pouco ou nada preocupados com quem não consegue, seja de que forma for, subir na vida, ser alguém! Ai, que para sermos felizes temos de ouvir todos esses conselhos que as manifestações como a de 15 de setembro de 2012 se gritaram pela Avenida da Liberdade abaixo! Ai, que o voto é uma arma e só a esquerda contestatária é que mobiliza as tropas! Ai, que temos de engrossar-lhes o exército e esquecer desavenças! Ai, que eles nos batalhões da esquerda não se dão, mas vamos uni-los, mesmo à força de uma minuta lavrada com esferográfica marca Cavaco! Ai, que eles se arrependeram da discussão de 2011 que tanta infelicidade nos trouxe e querem-nos fazer felizes agora, devolver-nos um ambiente respirável e com esperança como quando se distribuíram cravos vermelhos na rua!

Pois é, eu também achava que havia esperança nos gritos com punhos a bater no peito a dizerem-se patriotas de esquerda. E que ir ter com essas vozes era transformá-las em gestos que mudam mesmo o estado das coisas. Coisas que mudam porque as pessoas que são a sociedade também mudam. Fiz mal. Durou pouco.

As famílias, mesmo com educação semelhante, têm membros a seguir caminhos diferentes. Zangam-se, aparecem desavindos no enterro de uma legislatura, apresentam-se de costas voltadas na preparação do baptizado da legislatura que vai nascer, de vez em quando cruzam-se num caminho que se estreita e lá têm de se cumprimentar, porque tem de ser, não há como escapar. Vão mantendo uma tradição de tribos e clãs. Alguns, mais raros, com antepassados comuns que num dado momento se separam; outros que, de tão parecidos na forma como chegam a chefes de clã, têm o seu “ismo” manchado do sangue daqueles sobre os quais se usaram para lá chegar. E deixam sem chão os que pensam que para além dos muros também há gente que não serve só para os ir mantendo, como trabalhadores sazonais que se vão buscar na altura da colheita dos votos. Gente que toma pulso ao mundo apertando o seu próprio pulso, o que se compreende embora não fosse pior que sentissem o coração dos outros tentar bater tão bem como queremos que o nosso bata. (Isto se eu não tiver de dividir energia e perder para dar, arriscando o que é meu, só meu; tudo compreensível mesmo que inaceitável.)

Fiz mal, porque voltei a ser social e politicamente lírica, a olhar o mundo com os olhos ingénuos e inaugurais. E não me surpreendeu, afinal, porque a grande desilusão já tinha sido, ali à praça do Sertório, quando experimentei o efeito do que julgava ser mesmo um substantivo abstracto: o sectarismo. Daquele mesmo tramado, recheado e coberto de cinismo que transfigura pessoas, que temos como gente boa, em autómatos movidos a ordens gravadas vindas de um obscuro passado que martiriza o presente e aborta qualquer futuro, com medo da perda do controle.

Passados 10 anos sobre aquela discussão que nos trouxe uma vida mais difícil (e mais para uns do que para outros, para também não nos surpreendermos muito), suspiraremos outros ais. Perdeu-se nesta geração a esperança nos ais anteriores, não sem termos a certeza que o mais provável é que a história se repita. Mais por oportunismo do que por falta de memória, claro. Porque a memória se manipula.

E no entretanto vamos ali ao multibanco fazer o que temos a fazer, porque só não o faz quem já está excluído desta sociedade (ai os pobrezinhos, os pobrezinhos! “Ai” eternamente usado e esvaziado), usados para fazer dos votos armas. E contra ou a favor deles, os que se vão excluindo, há escolha à escolha, nos vários lados. Difícil mesmo é ir pelo caminho do meio. A não ser que seja em performance, escudado por câmaras, luzes, microfones. Mas isso também é só a pausa para publicidade. Marca Marcelo. E institucional!

 

26.10.21

Os Godot deste mundo

Na famosa peça de teatro do dramaturgo irlandês Samuel Beckett, À Espera de Godot, escrita originalmente em francês, publicada em 1952 e representada no ano seguinte, “Nada a fazer.” é a primeira tirada de uma das duas personagens principais. Em reação a Estragon, Vladimir diz qualquer coisa como “Começo a ter a mesma opinião”. Os dois esperam em parte incerta, junto a uma árvore, que chegue Godot. Mas Godot nunca chegará, nem sabemos mesmo se existirá. A peça, como qualquer obra de arte, predispõe-se a várias leituras ou interpretações, mantendo a actualidade e o interesse que, como uma fogueira, só a arte e a paixão vão alimentando.

Pois a discussão, negociação, ou outra coisa que lhe queiram chamar, sobre o OE2022 começa a parecer-se demasiado com a mais superficial camada dada a ler nessa encenação: a do absurdo. A propósito da aprovação ou rejeição de um documento técnico que inquestionavelmente condiciona a execução de programas de governação, parece que estamos, afinal, é a tomar o pulso à capacidade de resistência dos actores que ocupam a cena político-partidária. Começa mesmo a ser irritante esta tendência de interromper um pré-agendado ciclo de torneios que deviam, e podiam, durar quatro anos. Mas afinal, pede-se depois aos eleitores que, quais espectadores de lutas de gladiadores (muda-se a modalidade a meio do jogo, portanto), decidam da bancada quem é mais capaz. E falamos de gerir os parcos recursos de um moderadamente exigente País (não, não vivemos todos acima das nossas possibilidades, mas também não é óbvio, nem rápido o processo de mitigação das desigualdades e exige uma contenção que não muda consoante se chame austeridade ou contas certas).

Fazem (os dos aparelhos partidários e certos comentadores) de nós Estragões e Vladimirs eternamente à espera do que parece que não existe: cumprir uma legislatura em que não haja, porque os eleitores não quiseram, uma maioria absoluta no Parlamento. Findo o prazo, ou se guina noutro sentido, ou se reforça o poder de quem governou, ou se continua a condicionar a governação, como devia acontecer sempre em todas as discussões de todas as comissões na AR.

Não será isto, aos olhos do cidadão interessado para além do jogo partidário que tem lá a sua agenda própria, o caminho mais sensato? Acaso a responsabilidade de quem está na oposição, cooperante ou discordante, nem sempre, nem nunca, não será também avaliada pelos eleitores? Qual é a pressa do País em mudar de governo a meio de uma legislatura? Não estarão os eleitores a perceber que esta é apenas uma cartada que todos, repito todos, os Partidos gostam de tentar jogar para que se mudem pessoas e não políticas?

No final da peça de Beckett, o último diálogo começa desta vez por Vladimir que pergunta a Estragon “Então? Vamos embora?”, ao que este responde “Vamos.”, mas não se mexem. Esta circularidade, artifício brilhante do dramaturgo, não parece augurar nada de bom para ninguém. E esse é um bom motivo para se ficar a pensar nestas esperas: as dos eleitores que ainda acreditam que agora vai ser diferente; e as dos Godot deste mundo que, imagino eu, esperam nos bastidores, nos corredores, nas caixas de ponto ou nos bas-fonds já fora do teatro, que seja a sua vez de ter alguém que façam esperar. Que falta de paciência!

 

19.10.21

Rebéubéu pardais ao ninho…

É possível que muitos se riam das comparações com que se inicia esta crónica, esperando-se sinceramente que não sejam os que transportam por essas estradas fora um autocolante (que outros terão no discurso) a dizer “Orgulho de ser Alentejano”.

As negociações e tomadas de posição pós-eleições, em Lisboa e no Porto, para composição de dois dos vários órgãos autárquicos que gerem concelhos, reflectiram maturidade e saber-fazer dos vários eleitos e, quero acreditar, das estruturas partidárias por que concorreram. Já em Évora, lugar de importância para cá ter tido no passado as Cortes, e capital de distrito com lugar ainda central nem que seja simbólico, as coisas parece que começaram esquisitas. Desde logo por se voltar a querer recuperar a imagem de uma dinastia, o que tresanda a “canto do cisne” acompanhado do pipilar de pardais a aconchegarem-se ruidosamente aos ninhos, como se não fosse coisa que fizessem religiosamente todos os dias.

Comento a partir do que as notícias me trouxeram, que é para o que servem os meios de comunicação social, depois e para além da transmissão catita pelo YouTube a que, já desenvolta nestas plataformas, também assisti moderadamente curiosa. Sobre esta cerimónia, a das assinaturas e discursos, só me apetece destacar o quanto se satelizou uma instituição que atribui graus académicos, de outras que, ligadas a essa máquina, se vão mantendo à tona com o ar das braçadeiras a fugir de escrutínio para escrutínio.

Ainda assim, deve ter dado para rir, a estes sobreviventes das duras lutas dos climas extremos e agrestes do antes da Democracia. E revelou-se a espessura política de resistência que dificilmente outros igualarão, embora possam achar que esta se ganha por se ostentar canudos e rosetas, ou esperando que os ventos de vitória da Capital bafejem os astros alaranjados que incham no interior. Já sem falar de quem disfarçado de cuidador dos eborenses, chegando-se-lhes a distribuir maçãs porta a porta, disfarça a única e exclusiva ambição pessoal de quem não conseguiu trepar nos Partidos a que pertenceu.

O sorriso deve esboçar-se já no dueto vermelho, e se espreitarem a notícia da DianaFm que saiu no passado sábado, repararão que depois do mais votado para gerir a Câmara se dizer “disponível para estabelecer consensos”, o mais votado da Assembleia durante a primeira reunião para a eleição da Mesa, onde houve “falta de consenso”, ter de marcar “novo sufrágio, a realizar na terça-feira, às 21:00”. Hoje, portanto. Será que vamos assistir a um combate entre David e Golias? Ou será só uma versão da fábula do boi e do sapo? A mim traz-me um cheirinho de Goscinny e Uderzo… Mas sem vontade nenhuma de rir, porque continuo a simpatizar com as ideias fundadoras do Partido Socialista e custa-me, mais do que vê-lo ser já o habitual alvo de esquerda e direita, segurar o moderado centro com o que parece ser tão frágil tripé. Oxalá me engane!

12.10.21

Crónica pessoal mas retransmissível

Todos temos momentos nas nossas vidas em que precisamos de lançar aos sete ventos e apregoar aos quatro cantos do mundo redondo o que, sendo do foro pessoal e nos vai cá dentro, queremos partilhar, desabafar. Alegria ou dor, indignação ou louvor, são estados de alma que, atirados assim ao “Deus dará”, até evitam que se acerte em alguém especificamente, permitindo que aterrem em quem os enfie como carapuças, não sem abrir o guarda-chuva por não se descartarem responsabilidades próprias da alma e no estado. Tal desfulanização também pode acontecer, como é o caso, quando há intenção, apesar da “ventania”, de preservar outros que, eventualmente metidos no assunto, temos pudor em trazer para a ribalta: seja porque não queremos dar-lhes um só centímetro de palco, seja porque o desabafo não se lhes aplica de todo.

Na semana em que os currículos académicos chegaram aos jornais, por via de uma pessoa desta classe profissional que acumula com a actividade de pop-star do comentário mediático, deu-se a coincidência de eu própria me ter voluntariamente submetido, num pedido feito há um ano e um mês, à apreciação do meu trabalho de décadas. Foi a última prova pública da carreira que comecei há 31 anos e que apenas interrompi por quatro para dar ao concelho de Évora o que podia e sabia, sem cursos que ensinam a fazê-lo. (Anos que, aviso já, naquele tribunal funcionam como cadastro, assunto a que talvez volte um dia nestas crónicas). Mas também se diga, em abono da verdade, que das outras duas provas académicas (anteriores também ao aparente desvio político), posso dizer que foram, de facto, provações e não “passeios no parque”. É que também os há, nesse Olimpo imaginado e frequentado por alguns que lá se passeiam envergando o traje que lhes esconde a humanidade. Ainda assim, justiça no balanço, nas três provas em três décadas houve doses de civilidade muito diferentes, diminuindo esta quanto mais afunilado é o acesso ao topo a que dificilmente todos chegam.

Predispõe a este estado de alma o facto de se tornar evidente que, por serem provas públicas, haja um exercício de encenação que vinca, a quem é de vincar, a relação de poder de quem lá está sobre quem talvez lá venha a chegar. Está feito o desabafo, a prova que o originou ultrapassada sem surpresas: o vento que leve as palavras onde houver massa crítica para as interpretar, que é obrigação de quem trabalha com palavras. Aos outros, agradeço a paciência na tormenta alheia.

Faço mesmo é votos que a nova geração de professores universitários que começam a chegar ao topo das suas carreiras, sobretudo catedráticos, e está hoje, na espuma dos dias é certo, sob escrutínio público, como sempre devia ter estado enquanto funcionalismo público, tenha a força que as elites para o serem têm de ter para se tornarem úteis à sociedade. A perpetuar-se uma certa tradição académica enredomada (mesmo a evitar, e bem, o laxismo) e pouco impor para que as coisas mudem (parecendo seguir o modelo das praxes que tanta repulsa causam), abrem-se mais hipóteses de que de académico se passe a pop-star. E deixando-se obnubilar pelas luzes da ribalta, não só permite que se tome a parte pelo todo, como crie invejas, por um lado, e pseudo-indignados por outro. Estarão no primeiro lado os que chegaram ao topo sem impacto para além do jardim que cultivaram, e no outro quem com ainda alguns tiques de superioridade acha que, com casos como os de Raquel Varela, não perde a Academia, em particular as Humanidades e as Ciências Sociais, a oportunidade de contribuir para que a “contemporaneidade” não seja sinónimo nem de vazio, nem de dragonas de erudição. E onde se permite que ecoem as vozes que sussurram a rasteira expressão do “andam todos ao mesmo”. Neste caso, o “mesmo” são palmas e louros, já agora convertidos em mais alguns euros, porque esta é uma elite que está longe de auferir os salários de outras corporações onde, às vezes, até se faz “uma perninha” no privado, sem desprimor, para aconchegar.

Os professores universitários no topo, mais que os dos institutos politécnicos por princípio conscientes do retorno da formação para a sociedade, deveriam repensar muito bem, não o seu lugar inquestionável na criação e transmissão de Conhecimento, mas o perfil de quem lá querem a fazer mexer a máquina. Não vai ser fácil. Sobretudo se continuarem a afastar de si quem, não brilhando constantemente em público, faz e bem, trabalho de sapa; ou os que brilhando quando têm de brilhar não esquecem que são um entre pares. Aproveitem-se estes dois perfis, ó Academia, e os engulhos da espuma do dia serão ultrapassáveis sem figurinhas.

 

5.10.21

O Tempo da Democracia

Não consigo deixar de prolongar o comentário aos resultados das eleições autárquicas. Agora mais a frio, com um olho na Praça e outro na história da Democracia. Não tanto a História no incontornável sentido erudito do conhecimento de factos e números, mas no que se oferece à reflexão quando se comparam situações de ontem com acontecimentos de hoje. Impactos de resultados de impactos, no tempo de Kairos que é o que cria os momentos oportunos no tempo de Cronos e permite a construção de projectos.

Não sou das que pense que uma composição dos executivos não maioritária signifique, em teoria, ingovernabilidade. Talvez por já ter estado nas duas situações - governo e oposição - me faça ter a cautela de acrescentar essa condicionante “em teoria”. É que já senti consequências do trabalho de uma oposição que obstaculiza medidas propostas em prol do bom funcionamento das instituições com impacto naqueles a quem serve; como já vi perpetuarem-se más práticas com a viabilização de propostas que tendem a seguir o mais fácil na oportunidade de se melhorar com o gesto mais difícil, empurrando-se sabe-se lá para quando (as agendas são muitas vezes subliminares e corporativas) o progresso.

Sou das que gostava que, no governo ou na oposição, as linhas vermelhas traçadas pelas posições ideológicas que, sem complexos podemos distinguir como direita e esquerda, atentassem na eficácia do sistema democrático que vigora hoje, dependente de um sistema em que nenhum de nós pode escapar ao império do capital. E que essas linhas vermelhas não cortassem ao meio nem oportunidades, nem caminhos que nos levam àquele lugar onde o que corre bem a todos, também me corre bem a mim. Linhas vermelhas que sejam traçadas de humanidade, cercas sanitárias contra a intolerância, a descriminação, a ilusão demagógica. Pede-se uma ética republicana, que já agora se relembra neste dia 5 de Outubro, de futuros que não se construam parasitando o sistema democrático, que é o que lhe fazem os que constroem regimes totalitários aproveitando-se dele para chegar ao poder.

Futuros que nunca serão garantidamente risonhos para todos, como nunca foram, mas onde o processo da prosperidade vai no sentido em que a pensar em todos se vão criando as oportunidades de sorrir, com direitos que melhor se garantem com a exigência do cumprimento de deveres. Que à direita ou à esquerda, as forças responsavelmente democráticas, as gestões mais construtoras de sustentabilidade social (que é para o que contribuem as outras sustentabilidades como a económica e ambiental), sejam fortes e não se deixem derrotar pelos estilhaçadores dos extremos, que apenas sobrevivem de empurrar para o buraco o fio da narrativa e com ela prometer que se chega ao país das maravilhas. Se bem se lembram, é nesse país que, não fosse acordar-se do pesadelo, se cortariam cabeças como sentença sem julgamento sério e pelo facto, sem provas, do suposto crime de umas tartes roubadas.

28.9.21

A Beleza da Democracia

 Começar logo a seguir a eleições uma nova temporada de crónicas que têm leituras políticas (por mais voltas afectivas no estilo do discurso que se lhes dê) é uma rentrée em força que precisa de algum tempo. Anuncio, pois uma crónica longa, um defeito que assumo e que procurarei corrigir sempre que a coisa começar a descambar. Não esquecendo o berço da DianaFm, a quem agradeço mais uma vez a confiança em mim para este espaço semanal, é sobre Évora a reflexão. Ainda assim, qualquer semelhança com a realidade noutro concelho não será mera coincidência.

Da longa e monótona pré-campanha, que nos entrou casa dentro por vários ecrãs, porque a COVID19 ainda ameaçava no espaço mais público, custou-me, para além dos costumeiros prantos apocalípticos e ladainhas de promessas, acompanhadas de “papas e bolos” a que dificilmente se chamarão compromissos; custou-me o perpetuar do comentário a debates de que quem está no poder tem a vida facilitada na campanha. Até se vulgarizou o erudito termo de “incumbentes” e tudo! A sério? Acham mesmo que ser alvo é mais fácil que ser dardo? Acham mesmo que os eleitores se lembram mais depressa do que está melhor (se é que está) do que está menos bem ou pior?

Na verdade, cá pelo burgo, os Partidos que costumam eleger membros para a Câmara ou para as Assembleias até andaram muito entretidos a fazer mais oposição a um Partido da oposição do que ao da governação. O que não deixa de ser bizarro. Marcada pela partida de Jorge Sampaio, tão esperada quanto triste como todos os fins inevitáveis que não desejamos, também esta campanha, local mas a derramar para o tom das redes sociais, se entreteve no concurso do maior “fumo” na manga esquerda dos casacos. O concurso deste pregão do luto pela visibilidade não foi bonito.

Mas foi divertido, em Évora, perceber que, ao fim de oito anos, numa campanha que parecia igual à de há também oito anos (tal a pobreza de novos argumentos que só revelaram incapacidade de mudar, já agora para melhor como prometiam), o actual executivo tenha continuado a tentar colher dividendos, e arriscando-se a pagar juros, do estilo de fazer política do Partido. O resultado demonstrou que, em Évora, os primeiros, os dividendos, ainda valeram e comprovou o que vale usar ervas nas bermas e desanimação cultural para contestar. Argumentário que se mostra ora fértil para fraca oposição, ora infértil para quem quer progresso. Fracos argumentos a contribuir, não para a elevação de uma massa crítica, mas para um ambiente do “quanto pior, melhor” com que se enleiam munícipes.

E estes, os Eborenses, afinal sabem sempre bem o que querem: os munícipes que não votaram deverão ter certamente entendido que quem faz do concelho o que ele é são muito mais os seus habitantes do que quem o governa; os eleitores que votaram para manter quem governa, afinal não se importam com ervas nem desanimação, e preferem quem conhecem para as deixar - às ervas e à desanimação - prosseguir o seu caminho; os cidadãos que votaram para que mudasse, talvez tenham aprendido que o discurso da contestação não se combate com iguais imagens “marteladas” do apocalipse, nem a secundar promessas sem caboucos capazes de sustentar projectos que, às tantas, nem sequer passam de verbos de encher, com pouca vontade que se concretizem (ninguém me desconvence que ser Capital Europeia da Cultura é um deles). Enfim, daqui a quatro anos há mais. Que quem não gostou dos resultados preste muita atenção ao trabalho dos que, na oposição, talvez lhes diminuam o desgosto.

Uma das várias belezas da Democracia, para além do poder do voto para fazer a mudança ou confirmar a satisfação em breve (quatro anos passam a correr), é podermos escolher livremente o lado em que queremos estar. E até militar num Partido pela identificação com os seus princípios e contribuindo para que quem se proponha a praticá-los não os tresleia. E também em Évora se percebeu que o Partido Socialista parece ser uma boa Escola de Democracia, tendo atraído para a sua formação três dos seis candidatos a estas eleições, o que faz dele um grande Partido democrático e, com isso, um imenso alvo em que é fácil acertar. E até, como está visto, que se lhes voltem as costas.

Ter atenção a estes “pormaiores” dá algum trabalho, mas também ninguém disse que isto tudo era fácil. Além de que nem sempre o que é fácil é o melhor, embora pareça e seja muito tentador. Aliás, e para não deixarmos morrer a esperança: o que dá muito trabalho é fazer com que tudo seja simultaneamente o melhor possível e pareça o mais fácil possível. Louvo os Políticos que pensam e fazem assim, porque lá que os há, há.


13.7.21

O Verão, o vírus e a vacina

É a última crónica da temporada e a próxima só regressa, em princípio, depois das eleições autárquicas. Talvez nesse regresso, já no Outono, a chamada imunidade de grupo esteja alcançada, tal como poderá estar aberto caminho a que, em cada concelho, as queixas ou louvores dos cidadãos tenham a força de os transformar em eleitores, com resultados a terem as respectivas leituras.

O País (como o resto do Mundo) está transformado num laboratório de experiências sociais para se encontrar o caminho do fim de uma pandemia viral, com a ajuda de uma vacina, o fruto primor da Ciência. Uma dessas experiências parece ter passado por gerir a nível nacional com o modelo do nível local: o da proximidade, o de ouvir as pessoas, as agremiações, as forças vivas da terra. O resultado está à vista, muito mais como consequência da novidade pandémica e dificuldades em gerir as novidades sem sequer poder recorrer ao “benchmarking” porque estamos todos na mesma. E esse resultado parece decalcado da lição que nos dá a história tradicional clássica de “O velho, o rapaz e o burro”, com experiências que mudam de 15 em 15 dias e não agradam todos ao ponto de parecer que não agradam ninguém. Porque, aos microfones da maior parte da Comunicação Social, o volume das queixas está muitos decibéis acima do dos elogios. O que, aliás, os conselhos dos pedagogos já concluíram ser o caminho errado para educar com sucesso… mas é o que ainda temos.

Partindo deste paralelismo que usa o mesmo princípio de governar o País como quem governa uma Freguesia, e reforço que considerando o paralelismo numa experiência laboratorial por força das circunstâncias, julgo que se perceberá a falácia do discurso da proximidade de fazer como querem “os de cá”; tal como se perceberá que os problemas de comunicação estão muitas vezes mais no canal e no destinatário do que no emissor ou na mensagem. O canal cujo interesse é procurar mais destinatários, o destinatário que não é nem simples, nem unânime, nem abnegado ao ponto de perceber de que nem sempre o que me serve a mim serve a outro ou a todos. Revela-se assim o desconhecimento generalizado do que é a missão política como prática de fazer o possível quando o ideal é por definição distante e inacessível: o que tem mais possibilidades de servir a todos, poderá servir-me melhor a mim também. Tudo isto nem sempre, nem nunca. Como tanto o que diga respeito ao ser humano e à sociedade.

Posto isto, desejo aos ouvintes da DianaFm um bom Verão, que evitem o vírus da desinformação e da demagogia que têm vagas mais expressivas em alturas eleitorais, e aos mais jovens que agarrem a oportunidade da vacina como quem agarra o Verão com a força juvenil de que quem já não o é guarda como as melhores memórias.

Até à próxima. 

6.7.21

Joe vs Zé

 Com a prisão de Berardo, de quem todos já suspeitávamos tratar-se de uma personagem que desliza bem no palco de uma certa vida com glamour: um tipo com bom gosto para a Arte, para o vinho e para o uso do muito dinheiro, num estilo à talentoso Mr. Ripley; com a sua prisão, os despojos morais disputam-se entre quem concorre ao lugar de quem mais contribuiu para a queda do pano. Entre os deputados da Nação que, em comissão parlamentar, optaram pelo guião cómico, e o juiz Carlos Alexandre que armou a sua já habitual cena de policial em canal de TV cabo, as câmaras sedentas de filmaços andaram numa fona e recolheram alegria aos molhos.


Lembram-se, talvez, de um sketch dos Gato Fedorento em que “Fuck you” seria impropério mal-educado na boca de um pobre, mas excêntrico e muito giro dito por um rico; e de um “minicaixotinho” que se tornava numa obra de arte interativa com valor na Bolsa. Alguns, muito poucos, tiravam já a pinta ao ambiente onde todos se pelavam por ir dar um pezinho de dança e fazer um tchim-tchim. Mas o glamour partilha com a cobiça a vantagem de ofuscar todos, até já só com lantejoulas de pechisbeque usadas com a mesma arrogância com que se usam diamantes, e com a desculpa de que o dinheiro é todo da mesma cor e fica bem no bolso de qualquer um. Quanto mais com Arte, senhores, com Arte! A que dizem que eleva as sensações, as emoções e, em curto-circuito, amolece os corações mesmo diante do glamoroso intrujão que albarda melhor o burro ao costume de quem já está no meio das traficâncias de favores e cifrões.
O curioso, neste último acto de Joe a caminho de voltar a ser Zé, é ele repetir vários enredos ficcionais, ou mirabolantes casos passados da vida real. Faz sobretudo lembrar aquelas histórias passadas nas grandes capitais ocidentais dos loucos anos 20, ou até dos 50, pós-guerras portanto, em que à festa constante das elites, as que podiam beber champanhe ao pequeno-almoço e trincar umas ovas de esturjão antes de aterrar na almofada, se juntavam uns infiltrados capazes de deslumbrar pela sua ousadia em aproveitar as desbundas e ajudar à festa. Ao curioso da repetição junta-se o triste ímpeto dos que, ficando do lado de fora do casino glamoroso, murmuram vendo passar os bólides de que se pudessem faziam o mesmo. É assim que a roda-viva, mesmo que abrande, nunca parará. E que a euforia de pseudo heróis justiceiros também não ajuda.

29.6.21

A Escandaleira

A escandaleira ganhou à bufaria. Ao fim de 47 anos, arranjou-se maneira de voltar ao mais fácil para tratar assuntos que demorariam algum tempo a explicar, e com alguma utilidade para a sociedade em geral. Passou-se da fácil denúncia do que era proibido, e que se denunciado talvez viesse a valer ao bufo algum crédito em caso de descuido futuro, para, quando cheira a indignação sobre política, se usar a escandaleira e arrumar um assunto. Mesmo quando é só uma parvoíce ou uma tonteira, sobretudo se proclamada por quem se ache que pode ter, ou vir a ter, alguma influência na vida das pessoas comuns.

A culpa desta promoção fácil da escandaleira é partilhada por muitos, o que torna difícil a aplicação de correctivos. Até quem tenha alguma boa intenção em partilhar opinião mais explicada, acaba por sentir que está a ser arrastada para um terreiro enlameado, talvez até pantanoso. É isto que ajuda ao afastamento de quem tem dois dedos de testa, três de paciência e quatro de resistência a afastar-se de participação cívica com visibilidade. Abrindo-se assim mais facilmente o caminho a quem, na lama, se sente no meio certo, onde a porcaria que faz será disfarçada, onde é mais fácil quando a escandaleira lhe cair em cima a coisa durar pouco mais de uma semana, pois na semana seguinte a escandaleira vai rebentar já ali ao lado.

Triste é também chegar-se à conclusão que se não se fizer uma escandaleira, ninguém liga às falhas, nem perde o seu tempo a tentar fazer as coisas o melhor possível. E correndo-se o risco de que quando as coisas derem mesmo para o escandalosamente torto, já os prejuízos serem muito mais graves do que só serem coisas ridículas.

E assim andamos, entretidos a ver os ciscos nos olhos dos outros para podermos levar, mais cedo ou mais tarde, com valentes tarolos em cima. Barrotes de incompetência a atravessarem-nos o caminho do esclarecimento que tão necessário é para que a Democracia melhore. É uma pena. Ainda não desisti de lutar todos dias contra isto, mas já tenho um dos três dedos de paciência com algumas cãibras.

 

22.6.21

Que gira, a bola húngara

 Outra vez multidões em estádio. Outra vez o colorido dos trajes, bandeiras, enfeites e pinturas tribais, ordeiramente de acordo com a ocasião lúdica, mas com resquícios de batalhas. Outra vez gente em festa, até ao momento em que uns continuam em festa e outros adiam a esperança. A tal que é nestes casos que renasce, na época ou campeonato seguinte, porque a outra esperança está definitivamente sobrevalorizada de tão genérica que é para esta era de especialistas. Outra vez a ouvirmos o barulho da festa em vez do ruído dos homens em campo, muito homens, a suar, a gritar, a ordenar, com impropérios muito machos.


Pela mesma altura em que o jogo sublima a guerra, no mesmo lugar onde recomeça o negócio do ócio mais famoso do Mundo, o retrocesso humanitário aconteceu. A Hungria, tão ultra-conservadora quanto anti-cristã, transforma em lei o tabu que empurra qualquer referência ao tema LGBTQ+ para a clandestinidade. Confundir educação para a integração com pedofilia, que foi a guerra que as tropas de Viktor Orbán abriram e ganharam, é próprio de uma mente tortuosa colectiva e perigosa.

A Hungria tornou-se no tapete que esconde o lixo da desumanidade que é a homofobia, contrariando o rumo de um progresso a ser construído com a civilidade que se espera de um país da União Europeia. Está na altura de agir, denunciando: nós estamos a vê-los ser tortuosos e desumanos. Está na altura de o Cristiano Ronaldo não apenas comprar guerras financeiras com a Coca-Cola (são só trocos!) e apostar tudo no combate à desumanidade. Ainda não perdi a esperança de ver um arco-íris quando se festejarem golos marcados no tapete relvado da Hungria. E ver todxs xs eurodeputadxs empenhadxs nesta causa. Ou não estivéssemos nós num estádio chamado Europa, em que a bola que importa, e que devia girar, é a do Progresso, da Cidadania, do Humanismo.

15.6.21

António Torrado (1939-2021)

Nós, os de agora, sabemos,  e cada vez mais, que o “E foram felizes para sempre” é coisa de histórias de encantar ou de fazer adormecer meninos. Primeiro, porque nem só do casamento vem a felicidade; depois, porque “para sempre” é demasiado tempo para caber nas vidas dos mortais. O mais acertado é dizer-se que certas coisas são como o Amor: eternas enquanto duram. E é por isso que gente capaz de fazer obra que deixa sucessivas gerações enlevadas com ela pode ser o real significado dessa eternidade, quase para sempre. António Torrado é feito dessa espécie de gente assim rara.

Um dos mais prolíficos autores portugueses que escreveram a pensar no leitor infantil, tudo o que lhe dedicava tinha a qualidade literária que os milhares de títulos que se arrumam nas estantes de livros infantojuvenis não tem para chegar sequer aos seus calcanhares. Senhor de um discurso que usava as gramáticas da poesia e da fantasia com igual mestria, soube sempre usar também a tradição com o respeito que o dinamismo que lhe é próprio exige, de forma a perpetuar a sabedoria e o gosto por aprender com o tradicional popular. Isso é que é herança a crescer, em metamorfoses várias, com as gerações que inevitavelmente se sucedem. 

Só uma vez, julgo que em 2009, conversei com António Torrado longamente, num júri de prémio que avaliava textos inéditos para crianças e jovens. Já o tinha visto várias vezes a encantar miúdos, a quem se apresentara como tendo sido, quando era também ele miúdo,“o Torradinho”, arrancando-lhes gargalhadas francas. Mas foi só nessa ocasião, na margem sul do Tejo, que a conversa rolou tão agradável, rica de coisas sérias e divertidas, e em que falámos da qualidade dos textos vencedores: estava assegurada a sua herança. 

Quando do 1.o Confinamento, numa das muitas iniciativas de narrativas da pandemia, recordei a sua completa e trabalhada versão da “História da Carochinha e do Infeliz João Ratão”, muito pouco superficial, ao contrário do que tantos pretendem que esta história seja. Com ela aprendemos também a lidar com a sua partida, superável, como muitas, por quem cá fica, com o tempo e a partilha da dor da perda, não parando de o ler e contar.

António Torrado falava às crianças de todos os temas sérios, como a Literatura tem de fazer. Estou certa que toda uma geração de miúdos aprendeu a gostar de ler por causa dos textos de Torrado e, desses, muitos se transformarão em herdeiros geradores de mais leitores felizes da sua obra. Se diversas variáveis se conjugarem, tornar-se-ão leitores exigentes e, mais do que só devoradores de livros, leitores literários. Obrigada, António Torrado. 

8.6.21

Janela virada para a guerra

Na semana passada, as notícias de uma geringonça em Israel voltaram a trazer notícias da Terra Santa e fértil em guerra, à janela-ecrã. A reboque vieram imagens de um desfile de pessoas do Hamas em Gaza, numa demonstração da força, dizia a voz off. O que me chocou naquelas imagens foram, naturalmente, as crianças.

Outras crianças que já não as crianças mortas, de há umas semanas atrás, e ainda assim as mesmas crianças. E sempre do mesmo lado da barricada que ora acirra, ora recua, em nome de um lugar para que também as crianças, dizem, possam ter paz. Já não exangues e semelhantes a bonecas de trapos nos braços de adultos que as embalam em choro, mas agora eufóricas e aos vivas, correndo lado a lado com aqueles adultos vestidos de soldados de cara tapada. Não pude deixar de pensar como as crianças são uma poderosa arma de guerra e a infância o lugar onde regressam, ou donde nunca saíram, os que vivem no tempo de faz-de-conta.

Faz-de-conta que estamos sozinhos e ninguém nos está a ver fazer tropelias; faz-de-conta que quem morre, ressuscita para voltar a poder brincar, a morrer e a matar; faz-de-conta que, nesta brincadeira, não há os que mandam e os que obedecem; e estes, faz-de-conta, não se importam de dar a vida por quem manda por si e em seu nome; faz-de-conta que, se chorarmos bem alto, não vai haver quem ache que estamos a fazer uma birra e todos perceberão que é porque nos dói, e muito, e que vamos mesmo morrer aos poucos; faz-de-conta que sempre que pomos uma criança à frente de uma boa causa, mesmo na sua inconsciente inocência, essa criança não está a pôr outra criança entre a arma e o alvo.

Só que já não há faz-de-conta. A ordem bíblica que dizia que se deixassem ir as criancinhas é, como quase tudo nos bons livros das religiões que se organizam em torno deles, texto sem tempo e que, por isso, se molda a contextos e circunstâncias que importa também ler com atenção. Muitos, demasiados, o fazem em função de se aceitar sem questionar o que está do lado dos bons, e recusar, ou acusar, o que está do lado dos outros. E as crianças lá estão, no meio, a servir de argumento. Quer seja de troféu por uma educação exemplar na contestação, pois claro, quer como prole de vários Egas Moniz. Não o da lobotomia, embora a imagem também pudesse ser fértil, mas o Aio do século XI, que tomou partido do filho contra a mãe, lá no início de Portugal.

Quando hipotecamos as vidas das crianças empurrando-as para servir, por ou em vez de nós, de exemplo estamos a traí-las, a usá-las, e a fazer-de-conta que somos só boas pessoas.

 

1.6.21

Eu sou dali desde pequenino

Cá vai a segunda crónica da série dedicada às eleições autárquicas, a série que intitulei há umas semanas atrás “1, 2, 3, elas aí vêm outra vez: da vida da Cidade em quatro tempos”, referência à tetra-ciclicidade que nos dá que pensar para depois decidir.

Não sou de Évora. O Vergilio Ferreira, o João Cutileiro, o Mário Barradas, o Túlio Espanca, entre outros cuja evocação do nome muita gente identifica com Évora, também não. Consciente da minha insignificância perante estes nomes, passo algum do meu tempo a trazer para Évora os elogios que lhe fazem “os estrangeiros”. A isto costuma-se dizer que “se veste a camisola”, acrescente-se que com todos os riscos que tal acarreta, quando se fazem as coisas com seriedade e a nossa cara é também a do que se representa.

Tal como a maior parte dos eleitores em Évora, até os cá nascidos, criados e “de pedra e cal”, não vejo nenhum problema com quem vem para Évora fazer por ela. Nem que seja só cá pagar os seus impostos, o que já não é pouco, e sempre ajuda. A quem queira fazer mais do que isso e, usando o poder que lhe é conferido e exerce, fazer de Évora um bom lugar para além de uma evocação do Passado ou uma boa mesa rodeada de uma bela paisagem, quem é de cá, em princípio, receberá bem, acolhendo e contribuindo para que as coisas lhe corram bem. Será talvez difícil, quando não se conhece um forasteiro, desligar o “desconfiómetro”, uma atitude ou treinada, ou quase congénita, e por isso atávica, pela experiência de gerações que viram gente de fora vir cá dar valor ao que de melhor há sem fazer pelo bem dos que já cá estavam e cá continuaram. Por isso, o melhor que tem a fazer quem vive preocupado com essa “invasão bárbara” é ver de onde vieram os que dizem vir por bem, e o que por lá fizeram.

Assim, se vierem para cá fazer nada, então o melhor é não virem. Ou, então, se vierem só para o que já estamos habituados a ver fazer há quase um quarto de século a certos ensaiadores de coros, engrossando as vozes que, os novos maestros, esperam que se transformem em ombros que os ergam em vitórias apoteóticas. É o que faz quem tem como agenda criar ambiente de contestação, inventar o caos e apregoá-lo, o que só mantém Évora sossegadita como uma curva no deserto ocupada por bonitos e ímpares monumentos e gente a trabalhar para poder sair e ir arejar até outra capital, se e quando a coisa se proporcionar.

Como tal, está aberta a época em que também se assiste, em Évora e provavelmente em muitas cidades, vilas e aldeias, a uma conversa de pessoas candidatas a lugares de poder cedidos pelas populações locais, sobre as relações umbilicais ao território. É melhor que não nos deixemos embalar por estas “cantigas de berço”. Parecem aquelas gracinhas futebolísticas de quem é adepto de um clube de topo e quando o adversário mais direto joga com um dos não tão grandes, diz que é destes desde pequenino. E isso, como sabemos, é só uma piada.

25.5.21

A Voluntária e o Farrapo

Estamos mesmo em tempos difíceis, estes em que para o individual ser humano é cada vez mais atraente destacar-se da social humanidade. Promove-se este destaque até como uma espécie de direito universal. Promove-se o exemplo de uma única acção de uma pessoa elevada a única, empurra-se a pessoa para debaixo dos holofotes e ali fica, à mercê dos direitos individuais de todos os outros. De todos quantos tentem laureá-la ou enlameá-la, pelas mais diversas e inesperadas razões: argumentos achados no passado dessa pessoa até à quinta geração ou na vida mais íntima; arrazoados que a anexam a outros colectivos que ou se louvam, ou se abatem, em lutas de contornos tribais, pouco dadas ao progresso já alcançado pela civilização noutras áreas.

Falo primeiro da voluntária da Cruz Vermelha que abraçou e consolou um ser humano transformado em farrapo, não só pelas últimas horas a lutar contra o mar cálido que está no meio de terras próximas e por isso se chama Mediterrâneo. Farrapos como aquele homem são o resultado de gerações e gerações de desigualdades sociais, cuja solução não se encontra só debaixo de holofotes, que também atraem todo o tipo de abrutes ou de insectos. Ambos canibalescos, agindo por oportunismos vários e rivais entre si: os que querem ser os mais bondosos, os mais patrióticos, os mais humanistas ou os mais votados, entre outros “mais” menos evidentes, mas talvez não menos perigosos para quem está ali debaixo do foco de luz, vítima de ser uma pessoa com rosto que pertence a um colectivo anónimo. E sim, falo também do mais visualizado, do mais “clicado”, que certa comunicação social, ajudada pelas suas rivais redes sociais, os outros “mais” que contribuem para este canibalismo: pessoas a tentar destruir pessoas.

Estamos em tempos difíceis, estes em que “fazer o bem sem olhar a quem” traz tantos perigos de tantos lados, que torna cada vez mais difícil que o gesto individual que se torna público, não seja substituído pelo gesto só egoísta. E mesmo o gesto já egotista não escapará a oportunismos: também ele terá direito ao seu palco e aos seus holofotes, também ele será laureado e promovido.

Há coisas boas que mal usadas se transformam em coisas tóxicas, sobretudo pela radicalização que apenas procura agregar tropas. Há coisas, à partida, boas e úteis que caem no exagero e que se põem a jeito para ser derrotadas por gente nem boa nem útil. E falo também de um outro lugar que não as praias de um reino, mas a sala de uma assembleia de uma República onde houve um dessa estirpe de gente que aproveitou essa fraqueza da forma que estraga o conteúdo e a intenção.

Neste caso, tão diferente em impactos de vários níveis, mas mesmo assim tão caseiramente mediático, não havia uma voluntária mas uma profissional. O papel que desempenhava dilui-se ao querer provar que se é mais justicialista que a Justiça, e o farrapo, um farrapo-on-going, que ali deu à costa, também soube aproveitar-se dos holofotes e do palcos e soltar a arrogância para lhe responder aumentando a arrogância para descer à provocação. Estragou um enredo já de si a degradar-se, tal não era a luta entre personagens que queriam ser todas cabeças de cartaz, de episódio para episódio.

Os casos - o da voluntária que ampara o migrante, o do grande devedor que irrita a deputada - são muito, mesmo muito, diferentes. Mas são, na minha opinião, dois de muitos mais exemplos que acontecem por esse Mundo fora que vive de holofotes e entram nas nossas vidas por um, dois ou mais ecrãs. Vamos lá tentar ser espectadores mais atentos e exigentes para que quem do outro lado do cabo ou da fibra deixe de pensar nos holofotes quando faz, ou mostra quem faz, o bem sem olhar a quem.

O caminho de herói a mártir, ou até só vítima, é curto, actualmente cada vez mais rápido do que o de sentido inverso, e relativamente evitável. Evitá-lo poupa-nos a hipocrisia, ocupa-nos com o que realmente interessa: que saberemos o que é, se pensarmos, e treinarmos o pensamento, com a humanidade e com a racionalidade que nos caracteriza como espécie.

 

18.5.21

Contra a estupidez, calar, calar

Os festejos dos adeptos na semana passada vieram demonstrar, não apenas uma das definições do conceito de estupidez, mas também que quem decidiu proibir público nos estádios para prevenir contágios estava cheio de razão.
Estupidez pode definir-se, e cito um dicionário à mão, como “Falta de inteligência e de delicadeza de sentimentos”.

Toda a gente com dois dedos de testa, que vibra com futebol e torce e sofre por um clube, sabe bem que, perante o acontecimento futebolístico, a inteligência se tolda e a delicadeza dá lugar à explosão violenta e eufórica de sentimentos desenfreados. Imagine-se os que não costumam usar os dedos de testa que lhes sobram!... Ou que os usam só a pensar em si e no seu interesse: o seu clube, o seu partido, o seu grupelho.

Antes do fim da tarde de terça-feira passada não ouvi falar dos festejos tão previsíveis. Toda a gente caladinha, parecia que a não tentar antecipar polémicas não fosse alguém proibir o acontecimento: os que queriam festejar à grande, os que não queriam ser acusados de impedir festejos, os que não querendo festejar na terça-feira viram ali o precedente que lhes dava jeito. Dava jeito para o seu próprio acontecimento ou dava jeito a quem queria zurzir em qualquer adversário, à maneira tribal, fosse de clube ou de partido.

Resumindo: a final suada de campeonato de futebol em pandemia foi o momento em que se levantou e girou a pipeta da panela de pressão em que Portugal tem vivido apertado mas muito razoavelmente, de uma forma geral. Parece que lá para a Europa de cima tem havido festejos destes mais vezes e sem bola à mistura...

Todo o falatório que desse sopro de vapor resultou, à procura de culpados para além de quem não cumpriu as regras COVID19, não veio senão desculpar a estupidez: a de cada cidadão, a de cada sócio ou adepto, a de cada eleitor. Concluindo: acho que foi um bom evento teste a vários níveis. Aguardemos, ansiosamente, os movimentos do Rt e a actuação do maldito Corona. 

11.5.21

Nem faunos, nem ninfas

O movimento #MeToo chegou a Portugal e acendeu as luzes da árvore de Natal dos media (com ou sem edição legitimada por carteira de jornalista), antes de percorrer, casa a casa, o demorado e significativo calendário do Advento. (O meu recurso a este vocabulário natalício de ambivalência pagã e cristã termina aqui e serviu apenas para retirar o assunto do confessionário ou do altar.)

Os comportamentos das pessoas seguem padrões condicionados por factores contextualizáveis e nós chegámos a um tempo em que sedução e assédio têm de ser entendidos como comportamentos com conceitos opostos. Embora, já se sabe, não o sejam aos olhos de quem não destrinça relações afectivas de relações de poder. Mesmo quando, entre pessoas que se relacionam, os dois tipos de relação possam coexistir sem se confundir, em exercícios certamente difíceis. A condenação no quadro contemporâneo deve, por isso, ser válida para qualquer tipo de favorzinho, resultado dos crimes de chantagem ou corrupção: o que é retribuído com um cheque ou uma peça de cristal da Vista Alegre; ou o que acaba num jantar à luz das velas ou no meio dos lençóis.

Se é para levar as coisas a sério, o que me parece sempre bem, levem-se as queixas a sério, levem-se as testemunhas a sério, levem-se as vítimas a sério, levem-se as justificações a sério e julgue-se no lugar certo e a sério. O lugar certo não é o Twitter, nem o Facebook. Esses são lugares de conversa de café, de divulgação pessoal e, às vezes, são até mesmo lugares onde se levam as coisas ou a brincar ou a fingir.

O que o movimento #MeToo implica é demasiado sério para se levar a fingir ou a brincar. Causa tragédias pessoais e não é bonito que sirva para farsas espectaculares, ou seja, de palco. Os dramas pessoais poderão transformar-se em exemplos capazes de condicionar comportamentos e evitar mais tragédias e, nesse sentido, terminado o argumento e com consentimento, é bom que suba ao palco. As farsas que transformam mulheres em ninfas e homens em faunos, ou vice-versa, são só maus exercícios que entretêm quem, armado em cabo de forcados, vem provocar a besta e depois foge para o lugar do espectador. Arma-se a tourada só porque a tourada causa sangue e há sempre uma vítima assegurada. E isso não é bonito, nem de bem. Por muita luz, cor e música que entretenha muita gente. Leve-se o que o movimento #MeToo implica, a muitos níveis, muito a sério. Não se transforme em mais uma das muitas touradas que nos entram pela vida colectiva adentro.

 

4.5.21

A Confiança

As sondagens que procuram opinião sobre conceitos abstractos deixam-me, na maioria das vezes, os humores a oscilar entre o divertido e o deprimido. Como não é sério menosprezar a depressão com comparações retóricas, nem vale a pena inventar injustamente sintomas, valerá mais acomodar-me no riso e continuar a levar, na medida do possível, a vida em sociedade muito a sério. Falo concretamente na última sondagem, publicada por um conjunto de órgãos de CS, sobre a confiança dos Portugueses.

A sondagem confirmou a desconfiança (aliás, várias desconfianças) como reacção a perguntas sobre temas relacionados com o escrutínio e combate da corrupção. O Português médio continua a confiar mais numa só pessoa, ou talvez num cargo institucional uninominal, o Presidente da República, do que em instituições de composição colectiva e, consequentemente, variada. Esta tendência tem dado ao Mundo alguns rumos infelizes, quer ao longo da história, quer no contexto actual. Percebe-se, de resto, que quando as coisas correm bem, a actuação desses heróis passam sem alarde e anda o Povo na sua forma do costume, mas que quando correm mal, correm muito mal a muitos e correm muito bem a muito poucos. (E esta é uma sondagem minha, feita com base na memória e na observação macroscópica.)

A desconfiança tem várias causas, como tudo, ao que parece. Uma dessas causas - de entre, por exemplo, a das más experiências, que será a mais traumática, mas
também a da ignorância e a do desconhecimento de como os sistemas funcionam - é uma causa desconfortável: julgarmos o resto do Mundo pela medida com que nos julgamos, feitas no fim todas as contas introspectivas, a nós próprios. Isto até afasta muitos de integrar colectivos bem intencionados, porque essa boa intenção deve constituir-se como um crivo pelo qual nem todos se sujeitam a passar. O mesmo acontecerá com colectivos mal intencionados, claro. É preciso é que o colectivo se mostre, diga ao que vai e como fará (ou o que não fará) para lá chegar. E é por isso que a desconfiança nas instituições, que são colectivos, me entristece. O que não entendo, à tristeza, como razão para deixar de estar atenta ao rumo das instituições e de quem, cíclica e democraticamente, se propõe ou é designado para as gerir.

Para me animar, lembro-me da anedota que retrata o grupo de amigalhaços de longa data e muitas intimidades, cruzadas e com geometria variável de confidências, gente de confiança portanto, que se encontram num café à antiga, daqueles com montra ampla e paredes cobertas de espelhos. À medida que cada um vai saindo, os que ficam vão revelando e comentando os pequenos crimes, defeitos e falhas dos que deixam o grupo. No fim da tertúlia, o último, já sozinho, levanta-se e ao ver-se ao espelho, exclama: “Deixa estar, meu aldrabão, que tu não ficas atrás desta corja toda que por aqui passou!”
É assim que acontece a muitos, quando a confiança se mede ao espelho.

 

27.4.21

O trabalho

Depois da comemoração nacional da Liberdade, recheada de questiúnculas próprias de certas famílias conservadoras, grandes ou pequenas, pobres ou ricas, quando os patriarcas percebem que o tempo deles passou e já todos podem falar à mesa sem lhes pedir autorização, juntamo-nos ao resto do Mundo, para comemorar o Trabalho. No 1o de Maio, o Trabalho, assim com maiúscula, evoca-se celebrando uma das suas partes conceptuais: a pessoa que trabalha.

A mim interessava-me muito mais celebrar o Trabalho enquanto processo e produto que move valores que o Tempo vem demonstrando contribuírem para o bem-estar individual e social. Infelizmente, como o estatuto da parte que se celebra, a pessoa que trabalha, ainda não se move à mesma velocidade no Mundo inteiro, usamos o dia para assinalar, naturalmente, a diferença e a necessidade de a eliminar. O que, previsivelmente, nunca em tempo de vida de quem diz e de quem ouve esta crónica, será uma necessidade suprida.

O trabalho aparece muitas vezes como um valor absoluto, pois representa o contributo que cada pessoa dá à sociedade, sendo por isso retribuído o seu esforço. É um dever com direitos, portanto. Acontece que o trabalho é ao mesmo tempo também um valor relativo e por isso trabalhos diferentes têm retribuições diferentes. Diferentes no valor salarial, na estabilidade de permanência, nas horas nele despendidas, por exemplo. E quanto maior a responsabilidade, à partida, maior o valor da remuneração. Muito dependerá, para se conseguir um determinado lugar de trabalho, do esforço que se faz para lá chegar ou das próprias características pessoais para o desempenhar. Isto quando tudo corre normalmente, o que equivale, também normalmente, a que o trabalho fique bem feito e quem trabalhe satisfeito. Se o processo é diferente, deveria acrescer um esforço complementar: ou provar que, não parecendo, se merece o trabalho que se tem, ou tratar de procurar outro trabalho que nos mereça.

Tudo muito bonito quando o há, o trabalho e a remuneração condicente, porque quando escasseia, a par da frustração vem a raiva de se ver que o mérito é uma palavra sem referente na vida real. Ou, ainda pior, quando se ouve a quem, a falar a sério e sem brincadeiras, que precisa que lhe arranjem não um trabalho mas um emprego onde quer ganhar mais e trabalhar menos. É assim que bem podemos exclamar que isso é, não apenas gozar com quem trabalha, mas fazer pouco de quem anda mesmo à procura de um trabalho.

20.4.21

A Liberdade de máscara

Pelo segundo ano consecutivo, o 25 de Abril não é festejado, por quem o festeja, da forma como gostaríamos que fosse: o Povo na rua, a Grândola cantada ao ar livre e juntinhos como num grupo de cantares alentejanos, o fogo de artifício nas praças. Quem nunca festejou, palpita-me que os primeiros no ano passado a criticarem as contidas comemorações da Assembleia da República e talvez os que se amontoaram no Natal, não sentem, nem sentirão, a falta deste ritual. Fazem mal.

A conquista da Liberdade só se pode ir completando em Democracia, o sistema que exige a cada pessoa, na medida das suas capacidades, o contributo para que a sociedade seja o menos desigual possível. Que não é o engodo do “tudo a toda gente”, mas a justeza nas oportunidades para além de privilégios. Como a Democracia, também a Liberdade deve vir com a Responsabilidade e a Solidariedade. E isso dá trabalho, exige cedências, pede tolerância. Cansa-se quem sente que o seu esforço não tem resultados: enquanto uns cedem, outros de pouco abdicam,e no colectivo, que é o que interessa a democratas, não se vêem efeitos dos que se esforçam.

Aos cansados da construção da Democracia acorrem populistas com discursos, que lançam como redes em que apanham também os que não estiveram (nem estão) nem aí para contribuir para o colectivo. De caminho arrebanham-se os que no espírito do “salve-se quem puder” acreditam que talvez se safem dessa chatice que é responsabilidade de viver democraticamente. É nesta massa de gente que populistas encontram as suas tropas, com nenhum objectivo de avançar nesse labor pela Democracia. E sob o discurso da liberdade que têm para se organizar e opinar, atropelam todas as barreiras que permitem precisamente que a sociedade viva em liberdade. Sim, porque há barreiras e limites para tudo, e quem disser o contrário já confundiu Liberdade com outra coisa qualquer.

Espero saúde, vontade e à-vontade para que em 2024, consiga descer mesmo a Avenida com nome de Liberdade, e comemorar os 50 anos da Revolução de Abril. Se tiver que ser ainda de máscara, em nome do bem colectivo, que assim seja.
25 de Abril sempre!

13.4.21

Os Quatro Ódios da Desumanidade

 A propósito do Dia internacional do Cigano, a 8 de Abril, entrou em discussão pública o Plano de Combate ao Racismo e à Discriminação 2021-2025. São 15 páginas de texto, sem novidade, mas que expõem um Portugal dentro de uma Europa que julga e trata seres humanos, em colectivo ou individualmente, com menosprezo pela sua cor de pele. pela religião que professam ou pelos costumes próprios, mesmo quando neles não há incompatibilidades com o que se assume ser a civilidade, dentro da lei.


Negros, ciganos, judeus e islâmicos são maltratados ou ignorados pelo facto de o serem. Contra eles têm a diferença própria de quem está em minoria e não se encaixa num lugar, o Mundo, que põe a quantidade à frente da qualidade. E quando “os diferentes”, para sobreviverem, se reúnem e reclamam o seu lugar, não especial mas ao lado do “resto do mundo”, na reacção ressurge, muitas vezes, senão quase sempre, a desconfiança de que de discriminados passem a privilegiados.

A diferença assusta, o que me parece ser natural e acontece em todo e qualquer sistema vivo que precisa de equilíbrio para assim se manter. Mas a mim assusta-me muito mais o uso da nossa benesse, a que se chama inteligência ou razão, feito ao arrepio do que também existe porque somos gente, pessoas: o humanismo. Sabemos que, na ficção, a Humanidade se une quando a ameaça vem de fora da espécie, para logo se separar quando se trata de salvar a sua própria pele ou a pele dos seus. Acção, reacção. Mas o que para a maioria parece privilégio é a necessidade não de ser mais, mas de não ser menos. Porque a menoridade de um ser humano é avaliável, sim, num lugar chamado Justiça e tem de ter os olhos vendados para ouvir o cérebro e o coração no momento de julgar.

A maior vergonha da história da Humanidade é o esclavagismo. Porque foi o primeiro momento de confronto entre dominadores e dominados, definido pela diferença. E que teve os seus monstruosos sucedâneos, de que o Holocausto é a face mais visível. Do esclavagismo mantemos resquícios no dia-a-dia, como um sarro indelével. Resquícios que vão muito para além da anedota ou da piadinha fácil. Mas sempre que nos rirmos de uma dessas piadas não nos esqueçamos que ainda não é só uma piada, é, sim e ainda, uma atitude que persiste no mais insuspeito cidadão.

Apesar da legislação, os maus hábitos instalados exacerbam o pior que há na Humanidade em momentos de aflição. Períodos em que o valor dos argumentos desce na inversa proporção das ameaças ao que é meu e está em perigo. Torna-se mais fácil eliminar a concorrência que “eles” constituem, até evocando mais do que uma característica em minoria, para que eu “o dominador”, nós “os que estamos em maior número”, possamos ter mais espaço.

É nessas alturas que deixamos de ser gente e passamos a ser vermes. E aos quatro ódios da nossa desumanidade - negros, ciganos, judeus e islâmicos - juntamos para ajudar a iluminar os alvos a abater outros tantas “vergonhas inconfessáveis”: o sexo, a religião, a idade, a instrução, a situação económica, a condição social, a orientação sexual, a identidade de género e a nacionalidade. O que nos restará, eliminadas todas estas “fragilidades” da espécie humana distinta pela racionalidade, depois disto? Nada, digo eu.

6.4.21

1, 2, 3, elas aí vêm outra vez: da vida da Cidade em quatro tempos (1)

 De quatro em quatro anos chovem as críticas a inaugurações e outras iniciativas que se colam à aproximação das eleições autárquicas. A mim parece-me normal. As iniciativas, claro, já que as críticas são crónicas e, por estas alturas, se não se fizessem as ditas inaugurações, elas aí estariam a apontar que “nem na campanha eleitoral tivemos uma estrada nova para a aldeia ou uma rotunda amanhada”.


Os ciclos são próprios da vida, das pessoas e das instituições. Há-os melhores e piores, porque as coisas levam o seu tempo. Entre assentar arraiais, concertar posições e conciliar opiniões (dentro do possível), lançar mãos à obra e terminar para inaugurar, há caminho que importa fazer respeitando ritmos próprios.

A quem faça oposição com este tipo de calendário, normalmente definido por quem está no governo, só esperneando com o entoar de uma ladainha fácil também nesta altura, é porque andou distraído. Por vezes, até a contribuir para algumas decisões apressadas, ajudando ao disparate, resultando mais em saloice do que como resultado de qualquer outro tacticismo, que bem podia jogar-se com dois dedos de testa aliados a um pingo de dignidade e respeito. Para explicar melhor esta crítica, hei-de falar na altura própria, em que talvez aconteça uma iniciativa que, normalmente, se adjectiva com a pirosa expressão de “sentida homenagem”. Se esse dia, já aprovado, não se der com as habituais honras de corta-fita, prefiro homenagear quem merece com o silêncio, uma das formas de memória que as pedras também me ensinaram a exercitar.

Mas voltando à prática dos calendários eleitorais, e reagindo ao noticiado também aqui pela Diana, sobre o anunciado 1o Encontro de Évora Cidade Educadora, lá para meados deste mês . Era importante que a vereadora do pelouro, até da mesma dinastia Fernandes que integrou Évora nessa interessante rede internacional de Cidades, nos idos do ano 2000, dissesse de que temporada é este primeiro episódio de um Encontro promovido no âmbito da Rede. Claro que poderá sempre argumentar que o que houve foi um grande Congresso internacional (e não, eu não tive nada a ver com esse Congresso), várias jornadas ou conferências ou outro tipo de iniciativas, mas que Encontro, assim com maiúscula e tudo, este é o primeiro dos primeiros. Mas este seria argumento pouco sério, a contribuir para a descredibilização de calendários cíclicos justificáveis. Mesmo disfarçando que era para se ter dado em 2020, mas que “derivado ao Covid”....

Acaba-se, assim, a promover a crítica fácil do “eles são todos iguais e querem é poleiro”. E pior ainda, pondo um leque de pessoas interessantes, verdadeiramente interessadas em Educação e Cidadania mas desatentas a estes expedientes, a pactuarem com a pacovice de um numerozinho sob forma de evento muitíssimo extraordinário. Enfim, perdoa-se o ilusionismo da cena, pela esperança de que permita que não se esqueça que os lugares a que chamamos Cidades podem ser maiores do que a meia-dúzia de pessoas que lhes medem os dias, contra outra meia-dúzia que só invertem a ordem da contagem. Tramado mesmo é quando só existe uma dúzia de pessoas a interessar-se em que uma Cidade cresça com o melhor do resto do Mundo.

30.3.21

Da Camisola ao Cego do Maio

Eis senão quando, os que se alimentam do orgulho nacional vertido sobretudo em símbolos que representam o País, encontraram mais um que, quase de certezinha, 80% não reconheceria se o visse à venda numa loja ou banca de contrafacção. Talvez no Alentejo se conheça ao detalhe o design em camisolas poveiras, tanto quanto no Douro Litoral se saiba exactamente o que são safões. Mas adiante, que isto não é um concurso entre regiões, que pedem meças para estarem no topo de uma pirâmide de maravilhas, alimentando uma meia-dúzia de empreendedores que promovem o concurso, em troca de uma sede constante de outra meia-dúzia em ser o mais defensor do seu lugar.


Parece-me que o assunto do desmascarar a estilista norte-americana com trejeitos “made In China”, e que aldrabou o mundo da moda, fez mais pela camisola do que qualquer outra entidade nacional até agora. Mas foi, também, a oportunidade perdida de percebermos como a amada tradição cultural funciona. Aproveitar-se-ia para que a má moeda, já agora, pusesse a circular a boa, o que, enfim, deixa sempre alguns mais lesados pelo meio.

Poderíamos todos ter, por exemplo, ficado a conhecer, ou talvez a conhecer melhor, o Cego do Maio que, no século XIX, provavelmente teria mais do que uma versão dessas camisolas que dizem existir há mais de 150 anos. O Cego do Maio, figura pública que tem direito a estatuária e azulejaria sua na Póvoa de Varzim, foi pescador que salvou vidas e reconhecido por isso em louvores vários e até uma condecoração régia de que se conta um episódio comovente.

Ora, era também prática que as famílias dos pescadores se identificassem e distinguissem umas das outras através de símbolos, as chamadas “marcas familiares”, que assinalavam a propriedade de vários pertences. Curiosamente, estas marcas estão estilizadas nas ditas camisolas de lã grossa, vítimas agora, e de acordo com o vocabulário pop, apropriação cultural. Convém, no entanto, perceber-se que as marcas não nasceram na Póvoa de Varzim. Têm origens talvez celtas, mas certamente de culturas mais a norte do que A-Ver-o-Mar e muito para lá do rio Minho. Pois é, a Cultura tem destas coisas. Se é para respeitar tradições, que se respeitem os processos tradicionais e as várias contaminações que lhe são próprias. Se é para jogarmos o jogo da sociedade de consumo, assuma-se que o assunto é verba e não se gaste o verbo com outras meias-conversas.

Já agora, tendo as minhas raízes em Vila do Conde, terra eterna rival da cidade que é tema desta crónica, não queria deixar de dizer que a rivalidade está em mim ultrapassada (era o que mais faltava alimentar ou, pior, alimentar-me destas guerrilhas paroquianas!). E faço questão de destacar que, ao contrário do que muitos ainda pensam, a cidade se chama Póvoa de Varzim, e não “do Varzim”. É que os lugares não são só representados por clubes, e defendidos com o mesmo espírito que, normalmente é pertença da cultura do futebol.

23.3.21

Secretas, discretas, concretas

 Numa semana em que o medo em várias das suas matizes, que vão do medo da morte ao da perda de popularidade, atrasou o eventual fim da situação pandémica, tivemos direito, para baralhar prioridades, a parangonas sobre assuntos que não interessam nem ao Menino Jesus. (E olhem que se há coração d’oiro, onde cabem todos e para quem todos interessam, diz-se que ainda é o do Menino Jesus.) Entretenimento em vez de informação, resumindo. Falo da proposta do PAN, actualizada agora com mais estardalhaço pelo PSD, em que, está bom de ver, o que se quer mesmo é saber quem faz parte da Maçonaria.


Desimaginem-se os mais distraídos que o assunto é preocupação com transparência e combate à corrupção. Se assim fosse, andavam mesmo era todos preocupados em conhecer bem os contornos, e explicá-los, sobre as disparidades dos preços das vacinas para a mesma doença. Ou as dificuldades para aprovar tratamentos ou terapias preventivas, sobre os quais temos todos os meses notícias de avanços científicos (falo do cancro mas outras haverá), quando para a SARS-CoV-2 só demorou um ano. Ou, também e ainda, esta guerra de nomes de farmacêuticas, tratada pela comunicação social e por quem lhes arranja conteúdos, como se se tratasse de um desafio Pepsi (referência a um spot publicitário de há uns anos), e que serviria era para nos mostrarem como se prova que a sanha generalizadora contra o público em favor do privado tem bom argumentário contraditório.

Foi assim que se passou uma semana com sabor a “vida em suspenso”, como se esperássemos e temêssemos um mau diagnóstico. Mas distraídos do importante, por quem se entretém em querer legislar a bisbilhotice em relação a quem pertence a comunidades de que podemos pensar o que quisermos, e aceitá-las, desde que não sejam um bando de malfeitores. É que para se controlar esse tipo de bandos já não é preciso mais legislação, parece-me. Até porque dos vícios que se acusam certas agremiações, como são também os Partidos por exemplo, estão os bairros, os empregos e as casas de famílias cheios: a cunha e o jeitinho são a instituição com que muitos enchem a boca e chamam, louvando, “proximidade”.

Fica a impressão de que, em troca da fiscalização necessária do que nos rasteira a vida concreta, se anda a tentar dar palco , ou cadafalso, a grupos de pessoas que têm tempo e vontade de conviver em privado, esperando que o façam agora de acordo com as normas sanitárias. Parecem fazê-lo, esses sócios, fraternos, companheiros ou camaradas, ao abrigo de um capital simbólico e patrimonial conquistado em tempos mais difíceis do pensar livremente, o que é democraticamente louvável. Mesmo que o façam com práticas e rituais, mais ou menos anacrónicos ou alegóricos ou carnavalescos, a que aderem por vontade própria e com a satisfação de passarem a ser mais uns de uma elite que se deseje, se calhar até com uma certa pena, discreta.

Parto do princípio que a discrição é uma coisa muito boa, e que se identifica, não com clandestinos, mas muito mais com quem não se pavoneia, nem precisa de apregoar por aí as suas eventuais virtudes. Pessoas que por usarem um pin, entoarem uma ladainha, vestirem um invulgar hábito, todos conotados com práticas e pensamentos benévolos, sabem que não é por isso que não devem agir todos os dias para que os possam usar sem os desmerecer.

Se há quem, não precisando destas etiquetas, lhe baste dar a cara e predispor o peito às balas de causas comuns, haverá quem ao usá-las saiba bem que elas representam uma responsabilidade acrescida. E é com estas pessoas que me apetece contar. Até para decidirem como me comunicam as suas intenções. Estas podem ser secretas, porque o segredo é um direito, sem ser malévolas; ou podem ser discretas, por não precisarem de recompensa pública. E se essas intenções mexerem positivamente com a nossa vida colectiva, que a lei já existente decida que, saindo da virtualidade se possam tornar concretas, sem dolo nem crime.