27.6.17

Festivais

Já entrámos na época dos festivais, esses herdeiros das feiras antigas, onde o negócio e o lazer andam lado a lado. As feiras na Antiguidade e na Idade Média apareceram sempre relacionadas com festejos religiosos e dias santos, dando oportunidade a que se reunissem mercadores de terras distantes, trazendo os seus produtos autóctones para trocar por outros. E a etimologia da palavra "feira" (dia santo) demonstra também que a religião, qualquer que seja o credo, tem andado de mãos dadas com o comércio. E houve até alguns que esqueceram um certo episódio de vendilhões num templo...
Já as festas, ou os seus sucedâneos festivais, têm origem na palavra fest que deriva do inglês e do francês, por sua vez filhas da palavra latina festivus. Desde os seus princípios que um festival é uma ocasião especial para festejar ou celebrar, com uma feira à mistura, o que o torna também próximo da religião e do comércio. De facto, o que levamos de uns anos para outros em tudo parece ser ritualístico. Nada, pois, de gozar com quem vive de corpo e alma este tipo de repetição, ainda que única por época, até de forma algo disparatada para quem “aquilo” nada diz. E também, por isso, quando não há um festival, muitos dos seus “fervorosos practicantes” podem mostrar-se tristes ou até muito revoltados. E foi assim que aconteceu em Évora, com um festival que constituía festa que homenageava, reconhecidamente e muito bem, a Cidade-deusa da Cultura.
A BIME não aconteceu em 2015 e, parece, não vai voltar a acontecer em 2017. Digo “parece” porque já me fui acostumando a encontrar muitos incendiários disfarçados de bombeiros e, talvez, ainda haja por aí uma solução para o assunto. Depois de 26 anos em que, ano sim ano não, aconteceu, mesmo nos horríveis anos de 2011 e 2013 em que não havia dinheiro (mas pelos vistos havia vontade e capacidade de trabalho), e quando, diziam muitos desses seus devotos, a vereadora da cultura e o executivo camarário de então não mostravam nenhuma sensibilidade para o assunto e para com os que dele viviam... Desses, muitos se calam agora e os ouvintes/leitores imaginam bem porquê.
Os eborenses menos engajados em lutas político-partidárias vão certamente notar que “já há muito tempo que não há marionetas na rua!”, sobretudo se a oposição ao executivo municipal, também na rua, o fizer notar. Mas estarão tão ansiosos com a abertura este ano de um centro comercial com cinema que, às tantas, até acham que foi (finalmente!) um executivo autárquico que o construiu, numa evidente confusão entre as funções de instituições públicas e privadas. Nessa feira sempre montada que é um centro comercial encontrarão outras formas de lazer que, não menos importantes, são seguramente menos “cá da nossa terra”. Se calhar é isso mesmo que querem, que o resto do mundo venha até Évora. Ah! Mas espera! Era isso que acontecia na BIME! Por aqui passavam do melhor que se fazia em marionetas e fantoches e Évora até era também conhecida por isso...
Festivais? Sim, “festivou”! À feira, à festa, ao festival ou ao centro comercial. Seja para fazer o mesmo que fiz nos outros anos todos, ritualisticamente, seja para ver “mercadores de terras distantes” com quem quase nunca me cruzo. Eles vendem, eu compro, sempre que posso. Em nome de um lazer que, para além de todo outro tipo de interesse cultural e identitário, sempre vai encontrando no fundo dos bolsos “aquilo com que se compram os melões”. E já agora, por falar neles: não haverá por aí gente que não esteja a perceber os melões com que deviam ter ficado por terem embarcado em conversas de uns para ofender, extemporaneamente, outros? Se calhar, não. Estão muito melhor, agora. 

13.6.17

O truque Salomé

Um pouco por todo o país, cidades, vilas e aldeias, vão nascendo os enfeites da época. Ao lado do cartaz personalizado da empresa imobiliária, alinham-se outros com as poses não menos apelativas, em princípio, das candidatas e candidatos aos diferentes lugares dos órgãos que vão a preencher nas próximas eleições.
As eleições são, ao mesmo tempo, a semana da recepção ao caloiro e da queima das fitas, comparação que quem vive em cidades médias onde há universidades, entenderá bem melhor do que quem vive em cidades universitárias ou nas outras que não têm instituições de ensino superior de espécie alguma. Faço a distinção entre cidades com universidade ou politécnico das que são cidades universitárias, porque mesmo ao fim de muitas décadas, e em alguns casos séculos, nem todos os cidadãos convivem bem com essas instituições que lhes alimentam a vida social e, não menos importante, a económica. E como as Cidades são o resultado do conjunto dos seus Cidadãos, há que identificá-las com aquilo com o que os Cidadãos se identificam. Em Évora, por exemplo, a Universidade não será certamente, ainda, o elemento agregador colectivo do eborense comum que lhe permita intitular-se cidade universitária. Já em Coimbra, creio, não se pode afirmar o mesmo. Mas adiante, que a crónica é sobre cartazes e não sobre universidades.
A espessura das mensagens que se transmitem em cartazes de pendurar ao sol e à lua, como sabemos, não pode desejar-se muita. É o slogan curto que fica, que evoca, ou desequivoca, ou equivoca campanhas com safras melhores ou piores. É a micro-mensagem tantas vezes engolida como um grumo de laranja no sumo do fruto espremido, apenas visível à lupa de quem tenha por gosto ou obrigação procurar os sentidos mais subliminares.
A Salomé Castanheira, candidata à presidência de uma Junta de Freguesia em Águeda, profissional do assunto (não assunto de juntas de freguesia, mas de comunicação com as massas e respectivo ramo do marketing!), já começou a dar cartas, ou melhor cartazes, que logo deram também que falar. Ao apresentar fotografias individuais de gente comum com sorrisos, que se nos apresentam com o seu nome próprio mas que nos pedem, dizendo ainda assim que é uma opção nossa, para os tratarmos por Salomé, a candidata deles. O truque está engraçado e mesmo podendo ser sinónimo de outro slogan, contorna o seu efeito negativo, já que o “Somos todos” qualquer coisa é fruto de outra realidade negra, demasiado presente nos dias que correm.
Se o slogan “Somos todos” qualquer coisa é uma reacção ao terror que se passou, não me deixa menos margem para especular nos mesmo tons cinzentos o “Podem-me chamar Salomé” das autárquicas em Águeda. Tratando-se de uma iniciante nas lides - novata ou noviça que, ainda assim, como ela própria diz na sua reacção ao efeito viral da gramática propagandística que escolheu, será “só” presidente de Junta – a identificação dos seus fregueses com ela não é já só uma reacção, mas uma projecção. Eu cá se fosse aos fregueses daquela parte de Águeda pensava mesmo bem antes de deixar que me tratassem por Salomé... É que a mais famosa das “Salomés” que conheço mora no Novo Testamento e é apontada como responsável pela execução do profeta João Baptista ao seduzir, com danças e meneios, o velho tetrarca Herodes.  Ai Salomé, Salomé! o mal que nos deixaste ficar a nós, também mulheres...
Atenção, pois, aos meneios e sorrisos e truques propagandísticos e não se deixem levar a brincar à Democracia. Que nada disto vos impeça de querer saber para escolher e de saber exactamente a quem vão pedir que vos preste contas.

6.6.17

Adoptar

Este ano, em Portugal, acordámos no Dia da Criança com a notícia de que, em 2016, 40 crianças em regime de pré-adopção foram devolvidas aos cuidados do Estado. Não sabemos os motivos, claro está, e esquecemos de perspectivar os números, porque nem que fosse uma só criança o motivo para a tristeza privada de cada um já seria suficiente. Mas no plano do público, importa talvez referir que, nessas condições de pré-adopção, se encontravam mais de 350 crianças. Aquelas 40 crianças não podem fazer de um só alguém um Ali Babá ou o seu irmão ganancioso... Houve mais de 300 que fizeram com que famílias ganhassem crianças (e obrigações, e dores de cabeça, e condicionantes várias) e que crianças tivessem novas famílias que, desta vez sim, as desejavam (e de quem receberão mimos e ordens, regras e cuidados, alegrias e tristezas). No plano privado, também parece que a idade das crianças devolvidas parece inflacionar o choque e acicatar os ânimos de tantos casais à espera de um bebé feito por outros mas destinado exactamente a estes pacientes pais, e restante família e amigos, que, não tenhamos dúvidas (ou teremos?), os recebem sempre de braços abertos. Como se as situações que despoletam o conflito que leva à devolução não fossem tão ou mais traumatizantes em crianças mais crescidas... E como se adoptar uma criança, mesmo quando ela nos sai de dentro, fosse fácil, instintivo, óbvio e portador de uma constante felicidade mútua.
Adopção é sinónimo de acolhimento e aceitação, para além de ser um processo, também judicial, que se define pela aceitação espontânea de alguém como filho, respeitando condições juridicamente definidas. É quando o Estado se substitui à Natureza e faz nascer numa família uma criança. Mas como o Estado não é a Natureza, a quem respeitamos iras e fenómenos, caprichos e desastres, os processos têm de ser cuidadosos, criteriosos, dependentes de uma ideia de culpa onde não deve haver lugar a erros que, tantas vezes, aceitamos à Natureza, inclusive atribuindo-lhe uma vontade divina e não lendo precipitadamente o erro como pena aplicada aos seres humanos. Os contos e as lendas é que fazem bem esses curto-circuitos entre o divino e o humano e a explicação mágica do imprevisto infeliz. (E parece-me, já agora, que o tal Trump, nem no mês do Dia Mundial do Ambiente, se coibiu de escrever o seu próprio conto de fadas e ignorar que há coisas da Natureza que são mesmo responsabilidade do ser humano que, quer queiramos quer não, faz parte dela... mas adiante.)
A devolução daquelas 40 crianças não tem só de dizer mal de alguém ou de alguma instituição. É a prova de que nem todos estão preparados para ser pais e isso assume-se. E até mesmo os que cumprem os deveres exigidos para se ter direito a ser pai, biológica ou legalmente, o fazem tantas vezes com erros. São os seus erros e as suas crianças, e só o crime ou o Tempo poderão alterar essa condição. Devolver uma criança é assumir a incapacidade ou o erro de se querer ser mãe ou pai. Quando se aguenta até à autonomia essa obrigação, devolvemo-los, melhor ou pior, à sua própria Vida. Quando se tem um filho porque sim, ou por descuido, ou por amor (a outro ou a si próprio), ou por instinto hormonal, ou por tradição, ou por obrigação, em todos os casos, há sempre um período de pré-adopção que é o prelúdio do que desejamos que seja uma vida melhor. Quero acreditar que, quando o Estado recebe estas crianças devolvidas, está só a evitar que tenham uma vida pior. Ainda pior.