29.6.21

A Escandaleira

A escandaleira ganhou à bufaria. Ao fim de 47 anos, arranjou-se maneira de voltar ao mais fácil para tratar assuntos que demorariam algum tempo a explicar, e com alguma utilidade para a sociedade em geral. Passou-se da fácil denúncia do que era proibido, e que se denunciado talvez viesse a valer ao bufo algum crédito em caso de descuido futuro, para, quando cheira a indignação sobre política, se usar a escandaleira e arrumar um assunto. Mesmo quando é só uma parvoíce ou uma tonteira, sobretudo se proclamada por quem se ache que pode ter, ou vir a ter, alguma influência na vida das pessoas comuns.

A culpa desta promoção fácil da escandaleira é partilhada por muitos, o que torna difícil a aplicação de correctivos. Até quem tenha alguma boa intenção em partilhar opinião mais explicada, acaba por sentir que está a ser arrastada para um terreiro enlameado, talvez até pantanoso. É isto que ajuda ao afastamento de quem tem dois dedos de testa, três de paciência e quatro de resistência a afastar-se de participação cívica com visibilidade. Abrindo-se assim mais facilmente o caminho a quem, na lama, se sente no meio certo, onde a porcaria que faz será disfarçada, onde é mais fácil quando a escandaleira lhe cair em cima a coisa durar pouco mais de uma semana, pois na semana seguinte a escandaleira vai rebentar já ali ao lado.

Triste é também chegar-se à conclusão que se não se fizer uma escandaleira, ninguém liga às falhas, nem perde o seu tempo a tentar fazer as coisas o melhor possível. E correndo-se o risco de que quando as coisas derem mesmo para o escandalosamente torto, já os prejuízos serem muito mais graves do que só serem coisas ridículas.

E assim andamos, entretidos a ver os ciscos nos olhos dos outros para podermos levar, mais cedo ou mais tarde, com valentes tarolos em cima. Barrotes de incompetência a atravessarem-nos o caminho do esclarecimento que tão necessário é para que a Democracia melhore. É uma pena. Ainda não desisti de lutar todos dias contra isto, mas já tenho um dos três dedos de paciência com algumas cãibras.

 

22.6.21

Que gira, a bola húngara

 Outra vez multidões em estádio. Outra vez o colorido dos trajes, bandeiras, enfeites e pinturas tribais, ordeiramente de acordo com a ocasião lúdica, mas com resquícios de batalhas. Outra vez gente em festa, até ao momento em que uns continuam em festa e outros adiam a esperança. A tal que é nestes casos que renasce, na época ou campeonato seguinte, porque a outra esperança está definitivamente sobrevalorizada de tão genérica que é para esta era de especialistas. Outra vez a ouvirmos o barulho da festa em vez do ruído dos homens em campo, muito homens, a suar, a gritar, a ordenar, com impropérios muito machos.


Pela mesma altura em que o jogo sublima a guerra, no mesmo lugar onde recomeça o negócio do ócio mais famoso do Mundo, o retrocesso humanitário aconteceu. A Hungria, tão ultra-conservadora quanto anti-cristã, transforma em lei o tabu que empurra qualquer referência ao tema LGBTQ+ para a clandestinidade. Confundir educação para a integração com pedofilia, que foi a guerra que as tropas de Viktor Orbán abriram e ganharam, é próprio de uma mente tortuosa colectiva e perigosa.

A Hungria tornou-se no tapete que esconde o lixo da desumanidade que é a homofobia, contrariando o rumo de um progresso a ser construído com a civilidade que se espera de um país da União Europeia. Está na altura de agir, denunciando: nós estamos a vê-los ser tortuosos e desumanos. Está na altura de o Cristiano Ronaldo não apenas comprar guerras financeiras com a Coca-Cola (são só trocos!) e apostar tudo no combate à desumanidade. Ainda não perdi a esperança de ver um arco-íris quando se festejarem golos marcados no tapete relvado da Hungria. E ver todxs xs eurodeputadxs empenhadxs nesta causa. Ou não estivéssemos nós num estádio chamado Europa, em que a bola que importa, e que devia girar, é a do Progresso, da Cidadania, do Humanismo.

15.6.21

António Torrado (1939-2021)

Nós, os de agora, sabemos,  e cada vez mais, que o “E foram felizes para sempre” é coisa de histórias de encantar ou de fazer adormecer meninos. Primeiro, porque nem só do casamento vem a felicidade; depois, porque “para sempre” é demasiado tempo para caber nas vidas dos mortais. O mais acertado é dizer-se que certas coisas são como o Amor: eternas enquanto duram. E é por isso que gente capaz de fazer obra que deixa sucessivas gerações enlevadas com ela pode ser o real significado dessa eternidade, quase para sempre. António Torrado é feito dessa espécie de gente assim rara.

Um dos mais prolíficos autores portugueses que escreveram a pensar no leitor infantil, tudo o que lhe dedicava tinha a qualidade literária que os milhares de títulos que se arrumam nas estantes de livros infantojuvenis não tem para chegar sequer aos seus calcanhares. Senhor de um discurso que usava as gramáticas da poesia e da fantasia com igual mestria, soube sempre usar também a tradição com o respeito que o dinamismo que lhe é próprio exige, de forma a perpetuar a sabedoria e o gosto por aprender com o tradicional popular. Isso é que é herança a crescer, em metamorfoses várias, com as gerações que inevitavelmente se sucedem. 

Só uma vez, julgo que em 2009, conversei com António Torrado longamente, num júri de prémio que avaliava textos inéditos para crianças e jovens. Já o tinha visto várias vezes a encantar miúdos, a quem se apresentara como tendo sido, quando era também ele miúdo,“o Torradinho”, arrancando-lhes gargalhadas francas. Mas foi só nessa ocasião, na margem sul do Tejo, que a conversa rolou tão agradável, rica de coisas sérias e divertidas, e em que falámos da qualidade dos textos vencedores: estava assegurada a sua herança. 

Quando do 1.o Confinamento, numa das muitas iniciativas de narrativas da pandemia, recordei a sua completa e trabalhada versão da “História da Carochinha e do Infeliz João Ratão”, muito pouco superficial, ao contrário do que tantos pretendem que esta história seja. Com ela aprendemos também a lidar com a sua partida, superável, como muitas, por quem cá fica, com o tempo e a partilha da dor da perda, não parando de o ler e contar.

António Torrado falava às crianças de todos os temas sérios, como a Literatura tem de fazer. Estou certa que toda uma geração de miúdos aprendeu a gostar de ler por causa dos textos de Torrado e, desses, muitos se transformarão em herdeiros geradores de mais leitores felizes da sua obra. Se diversas variáveis se conjugarem, tornar-se-ão leitores exigentes e, mais do que só devoradores de livros, leitores literários. Obrigada, António Torrado. 

8.6.21

Janela virada para a guerra

Na semana passada, as notícias de uma geringonça em Israel voltaram a trazer notícias da Terra Santa e fértil em guerra, à janela-ecrã. A reboque vieram imagens de um desfile de pessoas do Hamas em Gaza, numa demonstração da força, dizia a voz off. O que me chocou naquelas imagens foram, naturalmente, as crianças.

Outras crianças que já não as crianças mortas, de há umas semanas atrás, e ainda assim as mesmas crianças. E sempre do mesmo lado da barricada que ora acirra, ora recua, em nome de um lugar para que também as crianças, dizem, possam ter paz. Já não exangues e semelhantes a bonecas de trapos nos braços de adultos que as embalam em choro, mas agora eufóricas e aos vivas, correndo lado a lado com aqueles adultos vestidos de soldados de cara tapada. Não pude deixar de pensar como as crianças são uma poderosa arma de guerra e a infância o lugar onde regressam, ou donde nunca saíram, os que vivem no tempo de faz-de-conta.

Faz-de-conta que estamos sozinhos e ninguém nos está a ver fazer tropelias; faz-de-conta que quem morre, ressuscita para voltar a poder brincar, a morrer e a matar; faz-de-conta que, nesta brincadeira, não há os que mandam e os que obedecem; e estes, faz-de-conta, não se importam de dar a vida por quem manda por si e em seu nome; faz-de-conta que, se chorarmos bem alto, não vai haver quem ache que estamos a fazer uma birra e todos perceberão que é porque nos dói, e muito, e que vamos mesmo morrer aos poucos; faz-de-conta que sempre que pomos uma criança à frente de uma boa causa, mesmo na sua inconsciente inocência, essa criança não está a pôr outra criança entre a arma e o alvo.

Só que já não há faz-de-conta. A ordem bíblica que dizia que se deixassem ir as criancinhas é, como quase tudo nos bons livros das religiões que se organizam em torno deles, texto sem tempo e que, por isso, se molda a contextos e circunstâncias que importa também ler com atenção. Muitos, demasiados, o fazem em função de se aceitar sem questionar o que está do lado dos bons, e recusar, ou acusar, o que está do lado dos outros. E as crianças lá estão, no meio, a servir de argumento. Quer seja de troféu por uma educação exemplar na contestação, pois claro, quer como prole de vários Egas Moniz. Não o da lobotomia, embora a imagem também pudesse ser fértil, mas o Aio do século XI, que tomou partido do filho contra a mãe, lá no início de Portugal.

Quando hipotecamos as vidas das crianças empurrando-as para servir, por ou em vez de nós, de exemplo estamos a traí-las, a usá-las, e a fazer-de-conta que somos só boas pessoas.

 

1.6.21

Eu sou dali desde pequenino

Cá vai a segunda crónica da série dedicada às eleições autárquicas, a série que intitulei há umas semanas atrás “1, 2, 3, elas aí vêm outra vez: da vida da Cidade em quatro tempos”, referência à tetra-ciclicidade que nos dá que pensar para depois decidir.

Não sou de Évora. O Vergilio Ferreira, o João Cutileiro, o Mário Barradas, o Túlio Espanca, entre outros cuja evocação do nome muita gente identifica com Évora, também não. Consciente da minha insignificância perante estes nomes, passo algum do meu tempo a trazer para Évora os elogios que lhe fazem “os estrangeiros”. A isto costuma-se dizer que “se veste a camisola”, acrescente-se que com todos os riscos que tal acarreta, quando se fazem as coisas com seriedade e a nossa cara é também a do que se representa.

Tal como a maior parte dos eleitores em Évora, até os cá nascidos, criados e “de pedra e cal”, não vejo nenhum problema com quem vem para Évora fazer por ela. Nem que seja só cá pagar os seus impostos, o que já não é pouco, e sempre ajuda. A quem queira fazer mais do que isso e, usando o poder que lhe é conferido e exerce, fazer de Évora um bom lugar para além de uma evocação do Passado ou uma boa mesa rodeada de uma bela paisagem, quem é de cá, em princípio, receberá bem, acolhendo e contribuindo para que as coisas lhe corram bem. Será talvez difícil, quando não se conhece um forasteiro, desligar o “desconfiómetro”, uma atitude ou treinada, ou quase congénita, e por isso atávica, pela experiência de gerações que viram gente de fora vir cá dar valor ao que de melhor há sem fazer pelo bem dos que já cá estavam e cá continuaram. Por isso, o melhor que tem a fazer quem vive preocupado com essa “invasão bárbara” é ver de onde vieram os que dizem vir por bem, e o que por lá fizeram.

Assim, se vierem para cá fazer nada, então o melhor é não virem. Ou, então, se vierem só para o que já estamos habituados a ver fazer há quase um quarto de século a certos ensaiadores de coros, engrossando as vozes que, os novos maestros, esperam que se transformem em ombros que os ergam em vitórias apoteóticas. É o que faz quem tem como agenda criar ambiente de contestação, inventar o caos e apregoá-lo, o que só mantém Évora sossegadita como uma curva no deserto ocupada por bonitos e ímpares monumentos e gente a trabalhar para poder sair e ir arejar até outra capital, se e quando a coisa se proporcionar.

Como tal, está aberta a época em que também se assiste, em Évora e provavelmente em muitas cidades, vilas e aldeias, a uma conversa de pessoas candidatas a lugares de poder cedidos pelas populações locais, sobre as relações umbilicais ao território. É melhor que não nos deixemos embalar por estas “cantigas de berço”. Parecem aquelas gracinhas futebolísticas de quem é adepto de um clube de topo e quando o adversário mais direto joga com um dos não tão grandes, diz que é destes desde pequenino. E isso, como sabemos, é só uma piada.