25.4.23

Serviço público, imparcialidade, proporcionalidade e lealdade (III)

Termina hoje a tríade de crónicas que teve a carta de princípios éticos da administração como base e os tumultos sociais que, aqui e noutros países da Europa, estão a marcar o primeiro quartel deste ano, como pretexto.

Se quem comunica para todo o Mundo, em massa, já promove comportamentos consentâneos com o que se segue, numa espécie de educação informal, é de notar que um destes princípios detalha, e não é demais lembrar porque ainda há quem não tenha aprendido e faça disso gala, que não se pode “beneficiar ou prejudicar qualquer cidadão em função da sua ascendência, sexo, raça, língua, convicções políticas, ideológicas ou religiosas, situação económica ou condição social”. Pode parecer redundante dizer-se que esta é uma regra para quem é funcionário público, visto tratar-se da condição de base mínima para se ser civilizado. Mas às vezes vê-se e ouve-se cada coisa, que se percebe o porquê de ainda estar na dita “tábua”.

Aliás, há duas das regras que deveriam ser recitadas e comentadas interiormente, pelo menos uma vez por mês, como numa pregação aos seus botões, por quem convive com gente e gosta de evocar o apreço pela empatia e a humildade, virtudes que estão muito na moda. Uma das regras aparenta, num certo momento, roçar a utopia, o que, conselho meu, beneficiaria com o uso, antes e depois de a recitar, de um breve ditado popular. É a regra que diz que “os funcionários devem prestar informações e/ou esclarecimentos de forma clara, simples, cortês e rápida”. E o refrão, está bom de ver, é o que dita que “depressa e bem não há quem”.

Enfim, se as regras parecem apertadas, se a missão pode parecer impossível, se o que se espera de quem depende destes profissionais é que todos para quem trabalham assim os considerem com todo o respeito, parece-me de acrescentar que qualquer sector privado que dependa, para ter lucro, de ter mais e mais clientes, não perdia nada em dar-lhes uma olhadela. Sendo sabido que, normalmente, os limites de tolerância para as falhas no sector privado são bastante mais baixotes, que este medir de esforços não seja desculpa para aumentar a sanha entre os dois sectores.

O último princípio com que encerro estes três capítulos parece-me um bom conselho para quem um dia perceba que tem uma profissão, seja no público ou no privado. É o princípio que diz que os “funcionários agem de forma responsável e competente, dedicada e crítica, empenhando-se na valorização profissional”.

Responsabilidade, competência, dedicação, espírito crítico e empenho na melhoria é o que se pede a todos em funções públicas, na medida exigida para cada função que se alcança. Ou seja pode-se exigir mais a quem tenha mais responsabilidades e que tenha chegado a esse “mais” porque demonstrou competência e dedicação. E que o espírito crítico seja a capacidade de autonomia própria de quem investe a melhorar o trabalho em que o emprega.

Haverá outra melhor tabuada como esta para entoar em ambientes construídos e mantidos em equilíbrio, na articulação hierárquica necessária? E esse equilíbrio não estará, com razões e sem desculpas, no saber multiplicar esta mão cheia de qualidades e dividi-las como quem espalha doses irrecusáveis de respeito conquistado? Um trabalho muito bem empregado, parece-me. Ou tudo isto dito de outra maneira: já que dá trabalho, que fique bem feito, ou o melhor possível.

Agora vou ali descer a Avenida que tem nome de Liberdade. 25 de Abril, sempre.


18.4.23

Serviço público, boa-fé, integridade, lealdade e justiça (II)

Prosseguindo na leitura da carta de dez princípios éticos da administração pública, percebe-se o quanto conta o indivíduo num sistema complexo como este grande colectivo que presta serviço a todos e a que chamamos Estado. Quem o governa, ao Estado, sujeita-se a tomar ou a sofrer as dores do que, como um todo ou uma soma de partes muito díspares e hierarquizadas, o constituem. Em especial os que o põem a trabalhar, funcionários de carreira geral ou nas diferentes carreiras especiais que, mesmo especiais, não são poucas. Por isso se espalham mantras que se ajeitam às dinâmicas: ou se escarnece liminar e facilmente o Governo; ou, em pose quase institucional, se poupa o Governo maldizendo apenas os Governantes.

“Os funcionários, no exercício da sua actividade, devem colaborar com os cidadãos, segundo o princípio da Boa Fé, tendo em vista a realização do interesse da comunidade e fomentar a sua participação na realização da actividade administrativa.” diz o sexto princípio. No fundo, esta é a versão da famosa convocatória de Kennedy para que não perguntássemos apenas o que o Estado pode fazer por nós, mas o que nós podemos fazer pelo Estado. Era mesmo bom que não esquecêssemos este desafio…

Convocam-se, então, os cidadãos especificamente com funções públicas a regerem-se “segundo critérios de honestidade pessoal e de integridade de carácter”. O que lhes confere o estatuto de modelo de comportamento, sendo a exemplaridade condição essencial, como sabemos, quando queremos que os outros se comportem connosco com igual integridade. Tarefa que obriga funcionários públicos a que “no exercício da sua actividade, devem agir de forma leal, solidária e cooperante.” Isto não quer dizer que em cada serviço exista uma tertúlia de amigos, não senhor. Até convém que não se confundam as coisas, o que leva a que, eventualmente acontecendo essa fusão de profissionais com ligações extraprofissionais, por vicissitudes várias, ela tenha de ser bem gerida pelos implicados. E não terem motivos óbvios para ser alvo automático de críticas que a transformam em amiguismo ou family-gate.

As relações interpessoais, internas ou externas aos lugares e momentos em que as pessoas que servem profissionalmente o Estado, tão socialmente naturais, são uma dificuldade acrescida ao indivíduo no cumprimento do princípio da imparcialidade. Quando se aconselha que “no exercício da sua actividade, devem tratar de forma justa e imparcial todos os cidadãos, actuando segundo rigorosos princípios de neutralidade”, e se todos estivermos cientes disto mesmo, talvez não sejamos tão injustos com quem tende a parecer frio ou intransigente quando está “só” a ser competente. Por muito que tenhamos razões de queixas na nossa interacção quotidiana com serviços públicos, imprescindíveis, talvez seja de considerar que, por muito que se queira fazer parecer e haja quem dê razões para tal, ninguém decretou que o serviço público fosse fácil. E será, seguramente, quer menos difícil, quer mais fiável se todos percebermos os princípios éticos que guiam os que o tomam como profissão. E são muitos.

11.4.23

Serviço público, igualdade e proporcionalidade (I)

Nestas próximas três semanas de Abril, a caminho do Dia dos Trabalhadores, falar-vos-ei dos dez princípios de carta ética da administração pública. Não é a primeira vez que a menciono, a esta “tábua” de regras que ajudam as coisas a correr melhor, mas a outra vez já foi há muito tempo e como tem sido grande a conflituosa contestação por direitos no sector público, criando o ambiente social que não nos deixa indiferente, pareceu-me um bom exercício voltar ao assunto. E organizando-o por capítulos, já que também estamos no mês do Livro, em três crónicas assim anunciadas. E hoje é a primeira.

Abre esta Carta a dizer que “Os funcionários [se] encontram (…) ao serviço exclusivo da comunidade e dos cidadãos, prevalecendo sempre o interesse público sobre os interesses particulares ou de grupo.” Com isto percebemos como agem as organizações com consciência do princípio e se concentram em defender direitos de grupos que representam, tal como as há que o ignoram e até excedem a razão da sua existência: por exemplo, ordens profissionais que se transformam em sindicatos, fazendo-lhes concorrência; ou outras agremiações que dão colo a organizações cuja sindicância parece mais interessada em cilindrar os serviços públicos tutelados por certos governos do que outra coisa qualquer. É que, no que diz respeito ao que se espera ser o atencioso serviço público, não se trata aqui de fazer um jeitinho ao primo ou vizinho, ao colega ou sócio do mesmo clube, prática tão comum quanto popular. E sobre isto também se ensina na “tábua” a quem trabalha na administração pública, do Presidente da República a quem desce para trabalhar em catacumbas onde estão serviços que servem todos, funcionários que “não podem beneficiar ou prejudicar qualquer cidadão em função da sua ascendência, sexo, raça, língua, convicções políticas, ideológicas ou religiosas, situação económica ou condição social.”

Sabermos que privilegiar uns pode prejudicar outros não é o mesmo que ignorar especificidades de certos casos que, uma vez resolvidos, até poderão passar a facilitar futuras decisões ou implementar práticas que beneficiem os serviços e, por isso, sirvam todos. De resto, se a ideia é facilitar a vida às pessoas, sem que a rebaldaria seja a consequência em que o jeitinho descamba, quem serve o interesse público deve também saber que “Os funcionários, no exercício da sua actividade, só podem exigir aos cidadãos o indispensável à realização da actividade administrativa.” Isto não só exclui o tal favorzinho que se retribui, e predispõe à opacidade, à ilegalidade e à fraude, como indica uma relação de distância saudável e cordialidade em doses certas entre quem serve o Estado, servindo todos e, consequentemente, a si próprio também.

Voltarei para a semana com outra dose de princípios que, espero, deixem a pensar também quem não é funcionário público, ou seja muito defensor da mítica excelência dos serviços privados. É que ninguém, numa sociedade organizada, consegue dispensar uma constante interacção com a administração pública e muitos dos seus funcionários.


4.4.23

E há um dia em que…

Pode-se ter uma família, amigos, educação, formação mas pode haver um dia em que a adversidade bate à porta e parece que tudo o que é amor de e por pessoas e conhecimento não chega para se continuar a levar a vida com equilíbrio. O equilíbrio é até mais difícil de encontrar do que a paixão, que é o que nos arrebata e move e nos leva a conquistas e a aventuras. E das quais se fazem ilustrados balancetes públicos, e pelas quais até muitos se avaliam como tendo uma vida muito cheia, ou não.

Talvez equilíbrio seja a palavra que significa o que se treslê na palavra amor. Fez-se do amor a âncora da vida humana, mas confundiu-se com paixão e essa confusão fez o seu caminho. Tanto assim é que até se deixou a paixão dentro de nós, na relação com pessoas e coisas, e se entregou o monopólio da representação e distribuição do amor a um ser invisível e omnipotente. Tanto assim é que alguns, nos piores momentos das suas vidas de crentes, se sentem abandonados por essa força superior e inigualável. Até dizem sobre o tema coisas bonitas como poemas ou canções pop: “Não é sobre se eu acredito no amor, mas se o amor acredita em mim.” cantam os U2 num momento de rendição.

É por tudo isto que, sendo uma tragédia, o que aconteceu ao homem que matou duas pessoas no centro Ismaili em Lisboa, é tão humano. Mas ele passou a ser um criminoso apesar da família, dos amigos, da educação, da formação. Esqueceu tudo e num plano em que o desequilíbrio que até àquela manhã foi, heroicamente, conseguindo ultrapassar, se instalou. Nada parecia, apesar de uma vida cheia de drama que alguns foram ajudando a reequilibrar, conduzir àqueles crimes. Não houve lógica, não houve racionalidade, mas naquele dia aconteceu.

E também é por isso que a criatura do ser humano a que chamamos Inteligência Artificial (IA) parece tão ameaçadora a uma certa Humanidade. A frieza do algoritmo depende do equilíbrio de quem torna a máquina replicante uma parceira para a vida: a criatura repete a equação com os estados de alma do criador. A menos que descenda do Hal de Kubrick, o seu comportamento constante, lógico, confortável, recíproco, emula o que parece amor: confortável, calmo, sem discussão nem conflito. Em paz, como o amor quer que estejamos. A IA ameaça-nos ultrapassando-nos em virtudes que achamos inimitáveis, que nos dizem que só dependem do que nos habituaram a chamar amor. Um descanso, parece. E talvez a oportunidade para a percepção do peso das palavras e do seu uso ganhar alguma escala, como se costuma dizer.