25.2.20

Vote Marega!

Claro que o título que dei a esta crónica é uma brincadeira, mas, como toda a brincadeira, parte da simulação de assunto sério. Neste caso, o de Marega, criou-se uma confluência de assuntos sérios, sobre os quais muito mais já havia a fazer. É que o mundo do futebol não serve de referência para o mundo da Política séria, porque predispõe para certos comportamentos apaixonados que, muitas vezes até, toldam a visão sobre o próprio desporto como um todo. Além de que, quase sempre, o motivo para os jogadores e treinadores pertencerem a uma equipa é profissional, contratual entre partes, e não para beneficiar a modalidade. Quando muito, os valores de base do desporto em geral, e geralmente desvirtuados, podem ser relembrados e usados como ferramenta de sensibilização para comportamentos exemplares. O desespero de Marega parece ter feito mais do que muitas campanhas sobre os comportamentos inapropriados dos adeptos. Ficava mais contente ainda se o Marega, para além do combate ao racismo e à xenofobia, defendesse, também exemplarmente, o fim de comportamentos sexistas e homofóbicos.
Além disto, fico quase aliviada pelas questões do racismo em Portugal terem deixado de ser monopólio da deputada não-inscrita da Assembleia da República. E parece-me bem que uma data de gente tenha passado a ter provas de que eram tidos como aceitáveis comportamentos racistas a reboque do calor da emoção no futebol, mas que ultrapassam o uso de linguagem de fino recorte vicentino e são, na verdade, também inadmissíveis ofensas, em público e com testemunhas.
O outro motivo do meu “Viva” em forma de “Vote” foi o faux-pas no tweet - depois cobardemente retirado, como é próprio dos populistas - do deputado “Chaga! Besta!”, ou lá que interjeição é que o define. Julgando que os anti-dragões se punham ao lado dos racistas assanhados pela bola, resolveu chamar hipócritas aos que apoiaram Marega. Mediu mal os Portugueses que ouvem quem tem responsabilidades e cuja opinião influencia.
Posto isto, uma andorinha não faz a Primavera e o caso Marega deveria ser só a primeira de mais iniciativas que figuras públicas e populares podem fazer para contradizer, sem nada a perderem individualmente, figuras que, para ganhos pessoais, assumem discursos populistas para se tornarem populares. É que se os vermes começaram a sentir o lodo ao seu dispor para aparecerem a chafurdar, todos os outros, sem se agacharem ao nível do verme na esperança de um lugar de topo nesse lodo, podem começar a caçá-los. E usá-los como isco para outros iguais a eles. Com astúcia e, sobretudo, com muita elevação. Não será fácil, mas o ambiente melhorará, conclusão a que a História e a Memória nos ajudarão também a chegar.

18.2.20

A Boa Morte


Quando sabemos de alguém que morre velhinho, sem sofrimento, apagando-se como uma vela que arde até ao fim, achamos que é uma boa morte. Também há lugares que se chamam da Boa Morte, o que seria equivalente a chamarem-se da Eutanásia, já que etimologicamente é o que a palavra que mais se ouviu e ouvirá por estes dias significa.
Morrer é sempre mau, sobretudo para quem gosta de viver, mas é o prognóstico infalível para quem corre o risco de ter nascido. Nasce-se por vontade de outros, quando até temos sorte e somos desejados, o que não acontece a todos; o ideal seria podermos escolher como morrer. E ter a coragem ou a loucura - não há exclusividade de perspectivas - de ter essa decisão na mão, se o caso for uma questão de forma de vida. O que também não rejeito, especialmente se os danos colaterais do acto suicida forem mínimos. Morrer às próprias mãos, dir-se-ia. Eis também a questão ética que a lei da eutanásia levanta, como a da criminalização das tentativas de suicídio de má memória.
Se nascer e morrer são condições naturais, as circunstâncias em que acontecem são condições que dizem respeito à sociedade e respectiva organização, numa perspectiva de melhorar o bem-estar. A Assembleia da República faz essas leis e elas são, apesar das opiniões que permitem e que divergem, tão mais úteis à sociedade em que vigoram, do que as leis sobre o sentido da Humanidade, como aquela que escreveu o Quinto Mandamento. Sim, que dos outros Mandamentos as adaptações não parecem ter sido polémicas.
Eutanásia, a boa morte. Como não poder ter-lhe acesso quando a vida chega à fase terminal com dor e sofrimento? Falo da vida biológica, desculpem a redundância, não da vida dos prazeres e alegrias breves que, quando falta, é tratável pela mesma ciência que pode assistir a morte quando não se quer ficar à espera de uma intervenção divina, ou o que se lhe queira chamar, à morte natural.
Não entendo a posição da Igreja: para quê um referendo se a opinião já está feita e a catequese a ensina? Mas essa espécie de provação que impõe aos seus mais fiéis seguidores é o lado religioso da questão, a que quem quiser obedecer a lei em discussão continua a permitir. Da perspectiva jurídica, ninguém é obrigado a matar, nem ninguém é obrigado a escolher morrer. A ética fica na opção. É mais difícil do que só obedecer? Talvez, para alguns. Eu cá gosto daquela parte que algumas religiões ensinam e que se chama o livre-arbítrio. E é por isso que gosto desta lei que, espero, nasça no lugar próprio onde nascem as leis. Também é por isso que eu voto e quero que o meu voto seja usado, ali, naquela assembleia. Espero que aqueles em quem eu votei para me representarem, não me desiludam.

11.2.20

E o Óscar vai para...


Foi fim-de-semana de Óscares em Hollywood e eu comecei a escrever esta crónica antes da 92a cerimónia desta academia, não só porque já tinha os meus favoritos definidos, mas porque, no meio das últimas idas ao cinema ou de maratonas na TV por cabo, vários “filmes” se foram cruzando comigo e, provavelmente, com o ouvinte/leitor mais atento ao que se passa nos lugares de governação e direcção com responsabilidades a vários níveis.
Talvez os protagonistas da cena política sejam os mais escrutinados e sobre quem se acenderam holofotes mais fortes e durante mais tempo, mas também vamos ouvindo cenas oriundas de desempenhos técnicos que, no mínimo, permitem deixar-nos preocupados. Veja-se o exemplo de um artigo[1] da revista da Ordem dos Médicos, que ouvi num noticiário dos que acontecem à hora certa, anunciando que Portugal nada tinha aprendido com os surtos ou pandemias anteriores e que estava impreparado para o novo corona vírus. Lancei-me em busca do texto completo, assinado por três técnicos, onde eu esperava ter mais alguma informação, já agora, técnica, concreta e útil sobre o que estava em falta. Pois o que li, e que consta do título e de um único parágrafo de um artigo com pouco mais de duas páginas, bibliografia incluída, mais não é do que uma conversa de café. Se este é o contributo que a Ordem dos Médicos dá na transferência de conhecimento, confesso que preferi ver o filme do avião de resgate, a aterrar, a esperar, a levantar e a voltar a aterrar em Beja.
Também tivemos do faroeste duas peças dignas de filme: a resposta de Nancy à grunhice de Trump com o rasgar dos papéis do discurso do estado da nação; e a bronca do Caucus no Iowa, método arcaico, e ridículo, de eleição que ao usar as novas tecnologias foi sabotado pelos Republicanos, num golpe próprio de comédia de adolescentes de domingo à tarde.
Mas talvez a atribuição do Óscar vá, nas diversas principais categorias, para os actores que compõem o semicírculo da Assembleia da República e para a longa-metragem da discussão e aprovação do OE. Houve de tanto: das “plot twists” provocadas por pressão de sindicatos, ou a questão do IVA da electricidade, ou ainda a da incompreensível suspensão das obras do Metro em Lisboa, passando pelo ressuscitar de complexos colonialistas nos dois extremos do espectro partidário, até ao aparte do nascimento de uma nova estrela, ungida pelo destino, no mundo da Política parlamentar. Enfim, tudo espectáculos dispensáveis, que nada acrescentam em abono do público para o qual actuam. Se tudo isto é de gente que se acha preparada para dirigir alguma coisa, não parece. Prefiro usar, também o meu tempo livre, com a ficção nos livros, nos palcos, no ecrã, o que enfim me faz não parar nunca de trabalhar, mas paciência… e saúde e alegrias breves também, já agora! Que foi a que senti com as estatuetas atribuídas a “Jojo Rabbit”, “Parasitas” e “1917”.

4.2.20

Entre rasteiras e rasteiros não muda só uma letra


Dias confusos virão aí para quem alguma vez achou que, quando se chegava a lugares de poder, era porque se tinha um determinado nível. Claro que não estou a pensar naquela atitude típica de quem se esvai em sangue azul, ou azulado, ou seja mesmo só um snob. O snob é o grau obtido “sabe-se lá porquê”, tradução muito livre e cómica que ouvi sobre o título atribuído “honoris causa”. E que bem aplicado é a certos casos! Os snobs são, para mim, os últimos e mais fundamentalistas marxistas, os que julgam que a explicação da máquina do Mundo está nas classes. Mas adiante.

Toda a gente que já teve alguma actividade na Política, mais do que só o importante e político gesto imprescindível de votar para participar, não terá dúvidas de que, nesse mundo, para além da inteligência é necessária muita resistência. Nos dias que correm, estou em crer que para alguns dos que estão atentos ao que se passa na Política, e que é só com quem consigo ter uma conversa em que sinta que estamos mesmo a trocar impressões e opiniões, a resistência será a de não cair na lama em que novos líderes partidários, mesmo de velhos partidos, se vão movendo.

As boas estratégias e tácticas político-partidárias sempre viveram da pequena e cirúrgica rasteira que se pregava a adversários ou inimigos. Nem que fosse não fazer nada, com pose e elevação, e deixá-los espetarem-se sozinhos depois de tropeçarem nos próprios pés. Mas isso parece chão que já deu uvas. O que está a dar é mesmo chegar ao nível baixo de cultura política dos cidadãos e deixá-los lá. Deixá-los, não. Convencê-los a ficarem lá, contentes com o seu descontentamento, através de argumentos rasteiros, em discursos rápidos e fluidíssimos, que soam tão clarividentes como “a lógica da batata” e que os fazem sentirem-se ali bem, enquanto eles caminham em ombros no seu percurso de grandes líderes. Mas rasteirinhos, rasteirinhos.

Por outro lado, aos que detêm o poder no contra-poder também já ouvi discursos a pedirem já só uma palavrinha ... de afecto, talvez. O que me parece uma forma de contestação assim a dar para o chamado romance cor-de-rosa e, lá está, com um discurso também muito rasteirinho. Como nunca, parece-me cada vez mais útil, para além das entrelinhas, começar-se por ler mesmo as linhas com que nos vão cosendo os destinos do País.