28.3.23

Casas, jóias e a tartaruga

 A falta de casas acessíveis volta a ser assunto nacional, mas não só. É como se as palavras, pintadas por muitos muros onde se escreveu em português, mas não só, certo desabafo, tivessem voltado a tinir no despertador das consciências de quem passa na rua e na vida. Mas agora, numa troca dos segmentos da frase: “Tanta casa sem gente, tanta gente sem casa”.

Se o grito inicial começava por “tanta gente sem casa”, até nas falanges mais à esquerda as prioridades parecem baralhadas. Será, muito provavelmente, a reviravolta resultado do investimento, sempre curto, em casas de renda acessível. Depois do importante “boom” das cooperativas de habitação no pós-25 de Abril, que foram entretanto desfalecendo, e do meritório trabalho das associações de moradores que tomaram conta do sentido de bairro nos conjuntos clandestinos de casas, as empresas municipais de habitação revelaram-se peças fundamentais de políticas locais para o assunto. A Habévora, por exemplo, foi uma empresa municipal criada em 2004, durante uma tão vilipendiada legislatura no Concelho.

A preocupação de certos burgos, e burgueses, parece recair agora sobre os proprietários, alguns transformados legitimamente em senhorios, uns bons, mas outros negligentes com paredes e almas. E esquece-se os que não conseguem sequer ser inquilinos e ter o estatuído direito à habitação. Há até alguns proprietários, de entre habitantes, senhorios e dos que só cuidam do título de propriedade guardado em pastas de arquivo, que têm sido isentados de um imposto municipal. Não sem, durante muito tempo, termos andado às voltas em peripécias a que chamamos burocracia, como chama à sua tartaruga, pesada e lenta, a Mafalda do Quino, e que também serve para apanhar burlões.

Depois, durante algum tempo, a tartaruga foi de férias. Mas agora regressou, nesta conjuntura que quer repor justiça no direito à habitação, para que quem tem casa e a usa, para viver nela ou dela, o prove. Até em certos lugares onde, à partida, esses proprietários podem estar isentos do tal imposto. Ou seja, quem tratar a sua casa como um monumento pode ver aprovada a isenção. Enquanto a tartaruga foi de férias e até agora, mesmo quem só tinha ruínas também se regalava com o benefício de ter “nascido” no berço de ouro.

À frente desses certos burgos que se orgulham, e bem, de serem património do mundo todo e terem o poder de isentar do tal imposto as casas cuidadas e usadas, a medida incomoda. Uma chatice porque vai causar reclamações… lá virão dos alguns que vão ter de lidar novamente com a tartaruga, como os que vivemos (como eu) no tal lugar que para alguns é de berço (não é o meu caso) e para todos é de oiro.

E desengane-se quem pensa que quem gere esteja só muito condoído com quem tem de “guardar tartarugas”. As contas certas também entram na equação, debaixo da capa de heróis-autarcas defensores dos proprietários das jóias da coroa. É que em troca da isenção que podem atribuir agilmente querem ver recompensa. Vinda de quem? Do resto do País, o Estado central, claro, no refrão habitual, fácil de trautear.

É que isto de cuidar de berços de oiro e jóias em coroas tem custos e dá trabalho e chatices. E o Mundo todo sabe, por isso são inúmeros os programas, projectos e iniciativas a que estes lugares ao sol se podem candidatar. Dá trabalho? Dá. Implica aceitar as moedas vindas de onde não queriam ter nada a ver, a saber, da Europa? Implica. Precisa de ir mais além da fachada e do palco desmontável na praça? Precisa. Mas é com isto que se cuidam não apenas as paredes em que até se colam cartazes, mas de quem vive lá dentro. E à volta. E até de quem queira vir conviver ou viver connosco.


21.3.23

Comemorar a Social-Poesia

 Felizmente que vai longe o tempo em que se usava chamar a certas pessoas “intelectuais de esquerda” e que o epíteto foi perdendo validade. A expressão revelou durante décadas um tique monopolista a quem dava jeito de vez em quando disfarçar preconceitos e, de quando em vez, criar preconceitos. Um tique que, ao contrário do que o uso do intelecto proporciona - pensamento livre e oportunidade de com ele construir argumentário para discurso crítico -, fez proliferar um rebanho elitista. E até marcado por uma espécie de fardas que desejavam tratamento discriminatório. Mas, pronto, já passou e aos fósseis tratamos com o carinho nostálgico que merece qualquer ser humano.

A conversa vem a propósito de dois aniversários que se comemoram este mês e este ano, um local, outro nacional. O primeiro é o aniversário da Escola de Ciências Sociais da Universidade de Évora, que assinalou o seu 14º aniversário na semana passada. O outro, anual, é o centenário de Natália Correia, mulher, poeta, política, intelectual, vulcânica, que morreu fez também na semana passada 30 anos. Em comum têm, estes aniversários, a oportunidade e, diria, o dever para quem tem o trabalho intelectual não apenas do modo tão necessariamente amador, voluntário, autodidacta, mas é por ele remunerado, de colocar as Humanidades ao serviço da “coisa pública”. E que à mesa, redonda, das Humanidades onde se servem as Ciências Sociais, também está sentada a Poesia.

Natália, nos tempos em que a palavra de honra não era a do populismo, seja de que lado do risco ao meio artificioso dos púlpitos este se impinge, era uma intelectual e não era de esquerda. Era o tempo da palavra das ideologias que se assumiam e viviam na acção cidadã. Natália Correia dizia que a intervenção política cabia aos poetas e quem não faz, mas estuda Poesia também sabe disso.

É, no entanto, comum que quem não vive tão próximo da Literatura veja em quem lá vive o lirismo a ser usado como único monóculo para interpretar o mundo e os outros. Não é que não aconteça, mas não é o que define os que sabem que a Literatura pode ter um lugar mais central nas Ciências Sociais do que parece. Às vezes andam é, como tantas outras pessoas que não têm sequer a leitura como o hobby preferido, mais preocupadas com as suas vidinhas. Nada que os transforme em estranhos criaturas, mesmo podendo dar-lhes jeito.

Quem, porque ou escolhe fazer da escrita vida ou é pago para ler essa escrita, está habituado a escrever e a ler vidas - personagens, enredos, sentimentos, vulnerabilidades, reacções - tem a oportunidade de interpretar mundos que transforma em discursos (é o que fazem os escritores) e discursos que revelam mundos (como acontece aos leitores). E muito para além de momentos comemorativos. O caminho para esta oportunidade é mesmo partir do princípio - que tomo como bom, na minha interessada posição de professora de Literatura - de que todo o acto discursivo traz um peso tão mais valioso quanto desvende ou revele sentidos que não podem ser lidos como instruções de manuais de máquinas. Estes manuais, quando não são seguidos à risca, não deixam as máquinas funcionar bem (e é por isso que também estes textos têm de ser de qualidade, não-literária).

A Literatura tem tanto lugar na história da Humanidade que muitos, e muito importantes, lhe entregam as memórias da sua vida. Estou a pensar nas do Comendador Rui Nabeiro, que partiu há uns dias, e que o escritor José Luís Peixoto guardou no seu Almoço de Domingo. E que vale bem a pena ler-se em várias direcções, política inclusive.

Vamos ter tempo, ao longo do ano, para estar atentos e conhecer melhor a figura de Natália Correia pela sua obra que foi palavra e acção política. Na semana passada, pudemos perceber no anfiteatro da nossa Universidade que o Conhecimento sobre Guerra e Paz, título de um clássico russo, suscitou discursos que versaram algumas tipologias, e até géneros, que encontramos na Literatura. E até no público deu para reconhecer “leitores-implícitos” para cada discurso, como quem dá a ler o que se chama um livro de conforto, também conhecidos por best-sellers, que o estudo da Literatura não pode ignorar. Foi bem interessante a festa, pá!

14.3.23

Da esperança triste na fé

Não tinha ainda falado no assunto do processo aberto sobre os abusos sexuais de menores, cometidos por membros com responsabilidades efectivas oficializados pela instituição que é a Igreja Católica, a chamada hierarquia, porque fiquei à espera de este ter chegado à fase em que a comissão independente o devolveu à instituição. Embora não tivéssemos dúvidas sobre os resultados, a novidade está na forma como o que era assunto resolvido casuisticamente, com ou sem direito à reparação possível dos danos, estar a sair do “sempre foi assim” para o “vai ter de ser diferente”. Isto visto de fora, em massa, porque de dentro há muitos, não todos, que mantêm a expressão: “se sempre foi assim porque é que agora é que há-de ser diferente?”. 

A Igreja Católica adaptou-se relativamente bem à mudança de paradigma da caridade da esmola, para ser um importante parceiro da imensa máquina do Estado social que se quer a funcionar bem, sistematicamente. Terá chegado a altura de se adaptar à não imunidade dos seus membros perante a suspeição de crime, reconhecendo inclusivamente que o sacerdócio não retira a humanidade das pessoas que o tomam como forma de vida. E quando provado o crime, como foi pela comissão independente e nós já sabíamos e a Igreja também, a impunidade não se aceita e o crime já não se resolve pelo encobrimento caso a caso, como uma esmolinha.

Esta grave situação, que agora chegou ao sangue das tintas e dos pixéis da comunicação social para ir mais além, deveria servir para as igrejas em geral mudarem muito. Falo no plural, porque sabemos que a Igreja Católica não tem o monopólio do exercício do poder através de práticas sexuais não consensuais, nem o de se achar a coberto dessa tal imunidade em qualquer pensamento, palavra, acto ou omissão desumanos. Há uns bons anos, algumas igrejas, numa espécie de boçalidade de bancada de campeonato de bola, rejubilavam com os crimes da IURD. Nos dias que correm, o que é feito em nome de um Deus a que chamam Alá, envergonha milhões de saudáveis crentes que também continuam a ser social e injustamente enxovalhados. Está visto que o progresso civilizacional acabará por tocar a todos, mesmo se o avanço se faz com vários tropeços e desvios. A grande lição, depois de justiça ser feita, será semelhante à de substituir a caridade pelo serviço social: a sensação de impunidade terá de ser substituída pela vivência plena da apregoado humildade dos e nos fundamentos das instituições que vivem em função da religião. Seja ela qual for. 

Segue uma palavra de solidariedade para os católicos tão tristes e desiludidos de hoje, os que esperavam que as vozes destes oprimidos chegassem finalmente à Terra. Como a envio, esta palavra, aos muçulmanos tão acusados de terroristas, aos judeus gozados pelo zelo do que é propriedade herdada das suas tribos, aos protestantes diabolizados por ousarem desafiar o Vaticano, aos evangélicos olhados de lado pela proliferação de templos e estratégias de catequização populares, e a outras religiões que não conheço bem mas que padecerão das mesmas desconfianças de certa gente de fé de todas as outras. Sim, para todos os que activamente fazem da sua fé um modo de vida segue o meu abraço solidário de descrente, mas com muito respeito por instituições que congregam muitas gerações de boa-vontade, longe das suas cúpulas que as mal representam. Se fossem a votos como nas democracias…  

7.3.23

Mas que m**da é esta?!

Se eu tivesse por hábito ler os títulos destas minhas crónicas quando as gravo para a rádio, talvez não tivesse escrito o que escolhi para a crónica de hoje, perceptível apenas para quem a leia com os olhos. 

Logo aqui me penitencio por não ser habitualmente inclusiva nestas intervenções. Até porque, mesmo sabendo que há já tecnologia para que quem não vê tenha, quando tem, acesso a programas ou aplicações que possam ser esses olhos e lhos leiam em voz alta, sentir-se-ão comigo como eu me sinto quando vou àqueles serviços de atendimento ao público, e muitas vezes serviços públicos, e só se ouve o sinal de que chamam uma senha nova, mas não dizem que número é, nem para que balcão nos devemos dirigir. Fico quase sempre ou colada aos ecrãs, ou em movimentos de vai-e-vem ao toque dos gongos electrónicos. Mas adiante, porque a esses ouvintes destas crónicas garanto que não perdem nada não sabendo delas os títulos, e que este só é assunto por ser a versão menos própria da exclamação que afinal se traduziria por um civilizado “Mas que porcaria é esta?!”

Ora, esta provocação assim explicada serve mesmo para opinar sobre a vaga de moralmente ilegítimas e infantilizantes alterações que certas editoras se propõem fazer a obras literárias no mercado anglo-saxónico. Livros que se caracterizam por serem bastante mais populares do que muitos outros, infelizmente ainda assim entre uma minoria da população mundial que é a que lê literatura. A minha indignação para com esta gente que lê e dá a ler e assume estas ridículas posições, dá ao esforço quotidiano de ensinar a ler e apreciar artes o que se confirma ser um papel importante das chamadas Humanidades Públicas. Trata-se de não apenas “desenredomar” a literatura e tirá-la de uma conversa elitista e inacessível a não iniciados, mas sobretudo trazê-la para o quotidiano das pessoas sempre que vier a jeito. Apesar deste trabalho quotidiano, ou por causa dele, ainda não consigo deixar de sentir que a exclamação deselegante do título da crónica de hoje não faça jus a esta onda censória que, afinal, só ridiculariza a base ou o berço da agenda woke. 

Claro que nos dias que correm, em face dos comportamentos pouco civilizados que os manifestantes, que o são muito legitimamente, têm demonstrado, e perante a porcaria em que se tornaram certos argumentos, também poderia exclamar com o mesmo nível mais grosseiro o que escrevi no título da crónica. Que, diga-se, foi o que exclamei em frente à televisão quando dos assaltos ao Capitólio em Washington e à Praça dos Três Poderes em Brasília. 
Não sendo este o caso, mas outro, ambos revelam a importância do uso e da força da palavra. E da sua manipulação com fins de duvidosa benevolência, a não ser para quem faz muito mais gosto na preguiça ou na provocação do que na explicação. E fica a sensação de que estas provocações, infantilizantes, também podem ser manobras de marketing. E estas, como também já sabemos, podem ser de níveis diferentes. Umas transformam o marketing na venda da banha da cobra, outras puxam de forma quase subliminar pela inteligência humana que, não evitando tantas vezes a satisfação de pequenos prazeres que reconhecemos inúteis ou não aconselháveis, a boa campanha nos “obriga” a comprar.

As palavras têm força quando não se gastam, quando se usam no ou para o contexto próprio. Podendo chocar, e ainda bem que chocam, quem perceba, porque lhe explicaram, que o mundo e a civilização avançaram. Explicar é o papel do adulto que deve e ganha em conhecer o que dá a ler às crianças; explicar é o papel do prefácio, do posfácio ou da nota de rodapé que contextualiza o que não é, ou não queremos que seja, usual e correcto. É esta a forma justa e limpa de lidar, sendo picuinhas como temos de ser, e o Ondjaki ainda há pouco nos aconselhou aqui em Évora a ser, sem censurar, nem tomar leitores por criaturas estúpidas. Ao não o fazer, como parece estar a tornar-se uma tendência, é seguir a via insultuosa, a que contamina e provoca reacções que só baixam o nível da conversa. O título de hoje prova-o, intencionalmente.