26.4.16

O 25 de Abril de Vergílio Ferreira

Recordarei hoje o registo que, na sua Conta Corrente, com a memória dos dias que pensava e escrevia, Vergílio Ferreira recebeu a notícia da Revolução dos Cravos. «Às sete da manhã, um amigo telefona-me: “Ouça a rádio.” Ouço sem entender: rebentou a Revolução. A Revolução? Que Revolução? Por fim lá vou compreendendo. Toda a manhã a rádio nos vai esclarecendo com notícias. Passámos o dia à escuta. Será possível?» E no dia seguinte: «Vitória. Embrulha-se-me o pensar. Não sei o que dizer. Uma emoção violentíssima. Como é possível? Quase cinquenta anos de fascismo, a vida inteira deformada pelo medo. A Polícia. A Censura. Vai acabar a guerra. Vai acabar a PIDE. Tudo isto é fantástico. Vou serenar para reflectir. Tudo isto é excessivo para a minha capacidade de pensar e sentir.»

E como, um ano depois, num comício do Partido Socialista, onde a Sophia e o Torga também estavam, leu à multidão na praça pública ainda que sem o sistema de som ligado, porque teria sido sabotado:
DIZER NÃO
Diz NÃO à liberdade que te oferecem, se ela é só a liberdade dos que ta querem oferecer. Porque a liberdade que é tua não passa pelo decreto arbitrário dos outros.
Diz NÃO à ordem das ruas, se ela é só a ordem do terror. Porque ela tem de nascer de ti, da paz da tua consciência, e não há ordem mais perfeita do que a ordem dos cemitérios.
Diz NÃO à cultura com que queiram promover-te, se a cultura for apenas um prolongamento da polícia. Porque a cultura não tem que ver com a ordem policial mas com a inteira liberdade de ti, não é um modo de se descer mas de se subir, não é um luxo de “elitismo”, mas um modo de seres humano em toda a tua plenitude.
 Diz NÃO até ao pão com que pretendem alimentar-te, se tiveres de pagá-lo com a renúncia de ti mesmo. Porque não há uma só forma de to negarem negando-to, mas infligindo-te como preço a tua humilhação.
Diz NÃO à justiça com que queiram redimir-te, se ela é apenas um modo de se redimir o redentor. Porque ela não passa nunca por um código, antes de passar pela certeza do que tu sabes ser justo.
Diz NÃO à unidade que te impõem, se ela é apenas essa imposição. Porque a unidade é apenas a necessidade irreprimível de nos reconhecermos irmãos.
Diz NÃO a todo o partido que te queiram pregar, se ele é apenas a promoção de uma ordem de rebanho. Porque sermos todos irmãos não é ordenarmo-nos em gado sob o comando de um pastor.
Diz NÃO ao ódio e à violência com que te queiram legitimar uma luta fraticida. Porque a justiça há-de nascer de uma consciência iluminada para a verdade e o amor, e o que se semeia no ódio é ódio até ao fim e só dá frutos de sangue.
Diz NÃO mesmo à igualdade, se ela é apenas um modo de te nivelarem pelo mais baixo e não pelo mais alto que existe também em ti. Porque ser igual na miséria e em toda a espécie de degradação não é ser promovido a homem mas despromovido a animal.

E é do NÃO ao que te limita e degrada que tu hás-de construir o SIM da tua dignidade.»

18.4.16

A outra face

Agora que estão apaziguados os ânimos daquelas figuras mais ou menos públicas a quem deu para prometer uns tabefes virtuais ou fazer queixinhas do chefe, online e urbi et orbi, parece-me que voltar ao tema da comunicação social em modo democrático é uma matéria que se impõe a quem se ocupa de dinâmicas sociais e educa, a vários níveis, para a cidadania.
O Facebook®, para além de um imenso negócio proporcionado por milhões e que enriquece poucos, é uma aparentemente simpática rede social que permite, na era das tecnologias ao serviço de (quase) todos, manterem-se as pessoas em contacto e comunicarem. Passámos muito depressa de uma sociedade em que se dizia que os valores individualistas também se deviam à falta de comunicação entre as pessoas, para uma sociedade em que a toda a hora podemos estar a comunicar os pormenores mais íntimos com todos, ou com aqueles com quem escolhemos criar uma rede. Não tenho dúvidas que, por exemplo, muitos de nós que a utilizamos já por lá reencontrámos amigos de infância, de juventude ou de trabalho que a vida se encarregou de afastar, e que temos podido acompanhá-los com som e imagem ou desabafos, nos momentos que queiramos partilhar uns com os outros.
O que se passa, então, é que para nessas comunidades que criamos acabarmos por ter as companhias que merecemos isso dá-nos o trabalho de termos de filtrar, sem estratégias de censura de má memória, aqueles com quem não nos apetece conviver, nem virtualmente. Isto não quer dizer que não haja quem use precisamente esses métodos, em versão caseira da espionagem, e crie os chamados perfis falsos para, simulando dar a cara, “sacar” informações sem o fazer. E “sacar” informações já é quase só uma brincadeira de meninos, porque há quem o faça para achincalhar, difamar, enfim perturbar e influenciar os ainda crédulos ou, pronto, mais preguiçosinhos (e sim, penso nos jornalistas que se dão a pouco trabalho de investigação e se limitam a ser megafones daquilo que têm disponível numa rede social, apesar de poucochinho e obviamente longe da imparcialidade da informação que uma boa notícia tem). E os mais crédulos, o chamado público em geral, tendem tantas vezes a julgar que “onde há fumo há fogo”, e muitos utilizam os sinais de fumo para levar a sua avante ou trazer a água ao seu moinho. Uma prática muito pop, para usar uma simpática abreviatura aplicada a comportamentos de grandes colectivos ou massas.
As atitudes, mais chocantes para uns do que para outros, que se têm em perfis ditos públicos, ou seja abertos a todos, são por definição alargados para fora do nosso círculo de amigos e todos os cuidados, quer connosco quer com os outros, devem ser por isso muito levados em conta. E como em tudo, há que conhecer e reconhecer as circunstâncias em que as grandes declarações escancaradas ou os innuendos mais matreiros são expostos nestas novas plataformas de comunicação por indivíduos às massas. E os indivíduos que as produzem, sem os media a tratar do assunto para o bem e para o mal, devem saber, e muitos até sabem, reconhecer-se como principal alvo de avaliação dos outros, para além da vontade que têm que os que os leiam avaliem aqueles de quem dizem coisas.
É também por isso que quando conhecemos as pessoas, porque fazemos efectivamente parte da sua rede social ou porque já lhes conseguimos tirar a pinta, muito do que vamos lendo não nos ofende, choca ou espanta. A alguns até podemos elogiar como coerentes, com ou sem ironia. Nada, no entanto, colide com o facto de que, quando se assumem diferentes cargos e ser nesses cargos que somos avaliados por outros em público, ser também assim que, em público, devemos perceber que representamos muito mais do que aquilo que somos, tornando-nos um exemplo alargado, ou seja uma parte que qualifica um todo. O nosso autor dá um conselho, não aos que sabem exactamente o que estão a fazer e querem continuar, mas aos que pensam que se pode dizer tudo, ou talvez nem pensem que aquilo que dizem é o que acaba por defini-los. Diz o Vergilio Ferreira: «Uma forma de o medíocre convencido imitar a grandeza é não dizer mal de ninguém.» O espaço público, digo eu, seria muito mais seguro e sério, mas também muito menos divertido.

11.4.16

O Panama Papers e a Mulher de César

Impossível não falar do caso mundial que vai servir para, daqui a muito tempo, se explicar como era o mundo no tempo em que havia um deus-dinheiro de pelo menos duas caras, como numa moeda, o bom e o mau, e que o fazia girar; como era quando quem mandava no nosso dinheiro, aquele que dávamos para um bem-comum que servia a priori para todos, eram os políticos que elegíamos, na melhor das hipóteses; como eram os interesses privados que ditavam o valor desse dinheiro, num mercado dependente de várias energias para o nosso próprio conforto e de armas para que os que mandavam no nosso dinheiro pudessem ser ainda mais poderosos; mas também como havia os que não tinham poder nenhum sobre os nossos destinos, mas até os usavam, e viviam era mesmo empenhados em tratar dos seus; e, finalmente, como era com quem não aproveitasse para fazer, à escala do mundo em que vivia, o seu negociozinho tantas vezes disfarçado de se tratar do melhor negócio para todos os outros. (Chama-se a isso burla, parece-me.)
Digo-vos que não tenho pena nenhuma de não estar cá para ver. Mas tenho uma espécie de vergonha alheia futura. Isto não é herança que se apresente a ninguém, mesmo não sendo, ó crédulos, nenhuma novidade. É porque parece mesmo que voltámos atrás no caminho do jovem sistema democrático, que vigora apenas ainda numa parte considerável do Mundo mas não em todo, em que a luta de classes que acompanhou a evolução civilizacional trazida, com boas intenções e resultados, pela evolução técnica, se transformou numa festança de copos entre todas as classes que, inebriadas por tanta coisinha boa, gozam à tripa-forra. Ou é como se todos se armassem em peritos e desatassem a abrir e a desfazer a máquina de que mais dependem para viver melhor em sociedade e a quisessem remontar à sua exacta medida, borrifando-se na medida de outros a que também serve.     
«Toda a explicação pressupõe o conhecimento do inexplicável, ou seja, do que seria mais interessante explicar» diz o Vergílio Ferreira, e é também por isso que as explicações já não me servem de nada. Sento-me em frente às notícias, como no cabeleireiro com as revistas, a saber o Who’s Who desta história toda e a fazer os julgamentos morais que outros já fazem do escândalo do jetset, a partir de outros valores como os da família, do pudor, da intimidade. Já não me interessa como é o esquema, já só me interessam as pessoas e, por isso, começo a perceber que estou no limite de continuar a acreditar tanto como tenho acreditado neste Homem (com maiúscula) feito à imagem e semelhança de um ou mais Deus(es).
E perceber que os comportamentos de quem devia ter em conta a sua exposição pública e ser sério, para generalizar aquela expressão, até um pouco machista, de comparar quem o devia ser à mulher de César, replicam a de quem vive na lama e faz de tudo, literalmente, para sobreviver, ou seja por necessidade, deixa-me assim. É como a má moeda que dá cabo da boa moeda. Ou a necessidade que aguça o engenho e, pelos vistos, a “chicoespertice”, para não dizer pior.
Já agora, como as explicações também já não me interessam, sabem a mais do mesmo e sabem mal, aproveito para partilhar convosco esta história da mulher de César, que tem um nome, Pompeia, e não devemos confundi-la com as outras duas que também foram mulheres de César. Numa história em que, está bom de ver, o importante era o todo-poderoso não passar por marido-enganado, uma história que ficou para a História mesmo não sendo seguro de ter mesmo acontecido, conta-se que Pompeia vivia muito sozinha, enquanto o poderoso marido passava meses fora e que nesse cenário perfeito surge um nobre admirador de Pompeia que, numa noite, para conseguir aproximar-se dela, entrou no palácio disfarçado mas acabou por se perder pelos corredores e ser descoberto e preso. Levado a tribunal, e sendo o próprio César convocado para prestar esclarecimentos, este declarou ignorar o que se dizia sobre a sua mulher e julgou-a inocente. O “penetra” foi absolvido (pois a ocasião é que faz o ladrão, não é verdade?) mas Pompeia não se livrou da fama e, dizem, do repúdio do marido. Para quem o acusava de ser contraditório, ao defender a mulher no tribunal e a condená-la em casa, ele teria usado a dita expressão de que não bastava que a mulher de César fosse séria, era preciso que parecesse séria. Enfim, as aparências contam há já muito tempo e com elas a arte de as forjar. Não precisamos de mais explicações.

5.4.16

Factos, notícias e opiniões

É normalmente quando os assuntos nos tocam de mais perto que procuramos conhecê-los melhor. Ora é precisamente também nesses momentos e nessas circunstâncias que é mais fácil deixarmo-nos toldar pela subjectividade na análise e a, por vezes, ajustarmos os argumentos mais ao que nos interessa do que à chamada “verdade dos factos”. E isto é natural no indivíduo da espécie humana que vive desde sempre a interpretar tudo o que lhe acontece ou, não sem alguma inércia intelectual, a acreditar em interpretações que lhe vão apresentando mais ou menos à força.
Este tema não podia escapar ao autor, pensador e escritor, que me inspira esta série de crónicas e que chegou a afirmá-lo da seguinte forma: «Toda a cultura assenta na interpretação dos factos. Os factos em si permanecem, sujeitos embora a emendas como factos que são. Mas não a sua leitura.» O interessante nesta afirmação de Vergílio Ferreira é, não apenas ela opor-se à vulgar sentença que diz que «contra factos não há argumentos», como sugerir que os factos se podem emendar. Vamos pois, por partes, ver se nos entendemos.
Utilizar-se o argumento da não argumentação de factos é renunciar à possibilidade de qualquer tipo de discussão tratando os factos como fatalidades. Como se todos os factos fossem actos isolados. Sê-lo-ão os factos ilícitos, que são os que quebram as leis, ou os factos consumados, que são os que não se podem reverter. Mas se os primeiros são julgados e a repreensão depende da avaliação da sua gravidade, os segundos servem-nos para estarmos mais alerta, da vez seguinte em que essa irreversibilidade indesejada se possa dar. Na vida em sociedade, que é a que em princípio temos de viver, existem os factos sociais. São aqueles em que se deve ter em conta as relações entre os indivíduos e o ambiente colectivo em que decorrem, sendo impossível analisá-los sem se observar a totalidade do seu desenvolvimento na sociedade. Os factores tempo e espaço são, por isso, indissociáveis desta noção de factos. E são também eles que nos permitem contarmos a nossa história e, consequentemente, sugerir outras e mais leituras.
Que toda esta conversa vos faça pensar nos perigosos rebeldes (sublinho a ironia) recentemente condenados em Angola como uma associação de criminosos. Os jovens foram detidos durante um encontro em junho do ano passado no qual partilhavam a leitura do livro "Da ditadura à democracia". Rejeitaram sempre as acusações que lhes foram imputadas e declararam em tribunal que os encontros semanais que promoviam visavam discutir política e não promover qualquer acção violenta para derrubar o regime.  

E já agora, também espero que a conversa vos faça avaliar a reacção de membros de uma associação ideológica que, tantas vezes parecendo reclamar para si o monopólio da liberdade e o discurso da justiça social, se escudam em factos que arrumam como inevitabilidades. E todos sabemos do que estou a falar.