Recordarei hoje o
registo que, na sua Conta Corrente,
com a memória dos dias que pensava e escrevia, Vergílio Ferreira recebeu a
notícia da Revolução dos Cravos. «Às sete da manhã, um amigo telefona-me: “Ouça
a rádio.” Ouço sem entender: rebentou a Revolução. A Revolução? Que Revolução?
Por fim lá vou compreendendo. Toda a manhã a rádio nos vai esclarecendo com
notícias. Passámos o dia à escuta. Será possível?» E no dia seguinte: «Vitória.
Embrulha-se-me o pensar. Não sei o que dizer. Uma emoção violentíssima. Como é
possível? Quase cinquenta anos de fascismo, a vida inteira deformada pelo medo.
A Polícia. A Censura. Vai acabar a guerra. Vai acabar a PIDE. Tudo isto é
fantástico. Vou serenar para reflectir. Tudo isto é excessivo para a minha
capacidade de pensar e sentir.»
E como, um ano depois,
num comício do Partido Socialista, onde a Sophia e o Torga também estavam, leu
à multidão na praça pública ainda que sem o sistema de som ligado, porque teria
sido sabotado:
DIZER NÃO
Diz NÃO à liberdade
que te oferecem, se ela é só a liberdade dos que ta querem oferecer. Porque a
liberdade que é tua não passa pelo decreto arbitrário dos outros.
Diz NÃO à ordem das
ruas, se ela é só a ordem do terror. Porque ela tem de nascer de ti, da paz da
tua consciência, e não há ordem mais perfeita do que a ordem dos cemitérios.
Diz NÃO à cultura com
que queiram promover-te, se a cultura for apenas um prolongamento da polícia.
Porque a cultura não tem que ver com a ordem policial mas com a inteira
liberdade de ti, não é um modo de se descer mas de se subir, não é um luxo de
“elitismo”, mas um modo de seres humano em toda a tua plenitude.
Diz NÃO até ao pão com que pretendem
alimentar-te, se tiveres de pagá-lo com a renúncia de ti mesmo. Porque não há
uma só forma de to negarem negando-to, mas infligindo-te como preço a tua
humilhação.
Diz NÃO à justiça com
que queiram redimir-te, se ela é apenas um modo de se redimir o redentor.
Porque ela não passa nunca por um código, antes de passar pela certeza do que
tu sabes ser justo.
Diz NÃO à unidade que
te impõem, se ela é apenas essa imposição. Porque a unidade é apenas a
necessidade irreprimível de nos reconhecermos irmãos.
Diz NÃO a todo o
partido que te queiram pregar, se ele é apenas a promoção de uma ordem de
rebanho. Porque sermos todos irmãos não é ordenarmo-nos em gado sob o comando
de um pastor.
Diz NÃO ao ódio e à
violência com que te queiram legitimar uma luta fraticida. Porque a justiça
há-de nascer de uma consciência iluminada para a verdade e o amor, e o que se
semeia no ódio é ódio até ao fim e só dá frutos de sangue.
Diz NÃO mesmo à
igualdade, se ela é apenas um modo de te nivelarem pelo mais baixo e não pelo
mais alto que existe também em ti. Porque ser igual na miséria e em toda a
espécie de degradação não é ser promovido a homem mas despromovido a animal.
E é do NÃO ao que te
limita e degrada que tu hás-de construir o SIM da tua dignidade.»