30.11.21

GP centenária

 Chegaram na sexta-feira ao fim as comemorações dos 100 anos da Escola Gabriel Pereira. Tendo tido eventos em espaço público e com público em 2019, antes disto tudo começar, o pano caiu com a publicação de um livro que conta a história mais recuada da instituição, mas encerrando com o relato das próprias comemorações.


Tenho duas declarações de interesse a fazer: primeira, que o Autor, o Fernando Luís Gameiro, é colega e amigo; segunda, fui eu quem apresentou a obra. Falei, pois, do que conheço e com a liberdade da opinião que foi relativamente fácil de alinhar: o rigor nas fontes a que um bom historiador está obrigado, a polifonia dos testemunhos com direito a entrevistas transcritas, a própria história de uma escola de excelência numa vertente, tantas vezes secundarizada, por ser escola técnica, industrial, comercial, profissional. Tudo adjectivos que, durante tanto tempo, serviram para desqualificar este ensino face ao outro, o dito orientado para percurso científico.

Mas o que me ficou do magnífico ambiente de fim-de-festa na passada sexta-feira, tão fria, foi a sensação de esforço conjunto recompensado. Pessoas que fui encontrando, com surpresa, de que logo me recompunha pela óbvia razão de ali estarem. Comunidade educativa deixou, no fim da tarde de sexta-feira, de ser uma expressão abstracta. Ganhou rostos, reencontros, cumprimentos, discursos. E consolou quem espera sempre que as instituições cresçam pelo esforço e empenho das pessoas que a compõem e não tentativas de que as coisas funcionem precisamente no sentido inverso. Foi um bom dia.

23.11.21

As arrelias na saúde

 Se dúvidas houvesse sobre as dinâmicas sociais e os seus impactos no quotidiano, relacionadas com o chamado “elevador social”, as notícias dos últimos dias sobre o estado do SNS confirmavam-mas. Note-se que estou a falar das “notícias sobre” e não do “estado do”. Este último não poderá nunca ser um estado perfeito, não só porque todos queremos sempre mais e melhor, mas desde logo porque se sabe que todo o montante recolhido pelo Estado ao cobrar IRS não chegará para pagar o que custa cuidar da saúde dos portugueses.


Imagem eloquente, este elevador social, que normalmente se aplica às oportunidades contemporâneas de não se ficar num lugar menos privilegiado, onde se nasceu, e “subir-se na vida” por maior disponibilidade financeira. E este patamar altaneiro corresponderia a outras consideradas vantagens, socialmente valorizadas por padrões que trazem ainda características de um passado onde nem todos, nem mesmo os mais afortunados, se sentiriam naturalmente integrados.

No trabalho e nas profissões da área da saúde, os senhores doutores e as senhoras enfermeiras, assim mesmo com distinção de género e tudo, tinham lugares muito distantes um do outro na bolsa de valores sociais. Felizmente foi ultrapassada esta cristalização e este enquistamento que vedava, ou dificultava, o acesso de muito boa gente, pessoas mesmo excelentes, às duas profissões. Mas a necessidade de hierarquias parece ser uma característica humana que se reflete na organização social. Tudo isto sucedendo não sem algumas arrelias, porque quem sobe, no tal elevador, vai à procura do paraíso que imaginava lá estar e não encontra. Quem lá está, nesse patamar, vê-se no meio de mais pares com quem competir e, muitas vezes, arreliado porque não chega ter título e nome, mas lidar com o que de bom e mau define um ser humano. E os que não sobem porque o elevador está cheio e o direito de admissão se faz por critérios de uma hierarquização diferente, também ficam muito aborrecidos. Pessoas a terem de se adaptar a novos critérios ou, talvez ainda pior, a velhas tácticas que eram próprias de níveis privilegiados e que, agora, também andam no elevador a fazer paragens em vários andares, como grupos de miúdos a fazerem brincadeiras parvas. E estas, quando descobertas, incomodam até os que também, de vez em quando, fazem esse tipo de “reinação”.

O que é certo é que tudo isto me leva a olhar para as arrelias na saúde como um novo retrato identitário destas duas classes, como as novas classes operárias, as do século XXI, herdeiras das do século XIX. E a recordar os movimentos sociais que usavam os “sabots”, as socas de madeira calçadas pelos operários que, quando descontentes com as condições de trabalho, punham a encravar as máquinas, criando-se até a palavra “sabotagem”. E não deixa de me permitir fazer uma leitura muito orientada e “cheia de agenda” da velha história da Cinderela, claro, mas é nisso que deixo os ouvintes/leitores a pensar…

Às vezes estas situações, vindas de quem trabalha na área para que estudou anos a fio com investimento próprio mas também público, parece-me que se prestam a que se diga que “isto é gozar com quem não trabalha”. Sendo o “com” entendido até nas duas valências: “com” no sentido de em conjunto, leitura malévola comum de fazer a distinção entre emprego e trabalho (e todos sabemos do que se trata); ou “com” no sentido de opor duas condições, os que têm e os que não têm trabalho. Eu cá conheço muita gente, jovem e trabalhadora, que tendo estudado para ter uma profissão, ainda anda à procura de um lugar nela. E estes, perante as arrelias de doutores e enfermeiros, também têm direito a “tugir e mugir”, pois têm.

16.11.21

Nem tcharam!, nem uau!

O que motivou a operação Miríade é razão de tristeza, sobretudo por contribuir para a descrença dos cidadãos em instituições cuja dignidade não merecia ser beliscada. Sabemos que em todas as instituições que se prezem, e porque são feitas por pessoas, há “maçãs podres” devidamente retiradas quando descobertas. Algumas são motivo de notícia num ou noutro jornal ou noticiário, e em vários lugares se contam histórias deste ou daquele apanhado, e a coisa fica assim, nas mãos da justiça, sem “tcharans”, nem “uaus”.

O que se passa no caso Miríade, a que se chegou com todas as cautelas de investigação que qualquer suspeita de crime exige para que o desfecho não termine em nada, sem constituição de arguidos, tem uma outra escala. A coisa, ao que parece, está a resolver-se de forma definitiva, com quem tem de ser resolvida. As Nações Unidas foram consideradas como parte a ser envolvida, o PM e o PR, não. As primeiras ter-se-ão envolvido na investigação, os outros não. Teria sido mais eficaz ou célere a investigação se tivessem estado? A resposta parece-me óbvia e a pergunta a única pergunta útil a ser feita por quem usa as sinapses para pensar a coisa pública.

Quem sabe o que está a fazer, sobretudo em assuntos tão delicados que envolvem crime, não tem de seguir outro tipo de agenda que não seja a da investigação criminal.
Mas a vontade de tcharam! a abrir primeiras páginas e telejornais, com os “cheerleaders”da oposição ao Governo a ligarem os megafones no botão do uau!, revela bem o quanto a fiscalização de poderes é assunto ainda pouco sério em Portugal. A estas tribos juntaram-se as habituais vozes que contestam, à boleia dos holofotes, e que até aproveitaram os que iam ao cheiro do podre para lançarem um livro sobre uma polémica reforma das Forças Armadas. Ficou tudo muito clarinho - era preciso fritar o Ministro em lume mais forte - só não percebe quem não quer. Felizmente também estes elementos oportunistas não são partes que representem dignamente o todo.

Sabemos também que há na Assembleia da República e na comunicação social quem, respectivamente, as use como palco e promova certos actores, para sobressaírem do seu normal desempenho de acompanhamento e escrutínio dos poderes instituídos. Mas travestidos de contra-poder, facilmente se distraem dessas importantes tarefas (olhem, como certos militares e não as Forças Armadas todas), saboreiam cada amendoim que lhes cai no colo e “pintam a macaca” à procura de casos e casinhos que lhes dão tanto jeito.

Eu sei que faz parte, que o “quanto pior melhor” é, não apenas uma táctica, como uma forma de sobrevivência (e falo de novo, respectivamente, de alguns que frequentam a AR e de uma certa comunicação social), mas que cansam e banalizam o que merece seriedade, em defesa da Democracia, lá isso cansam. E deixem ver quanto tempo dura o sururu (já quase não ouço nada!). Entretanto, julguem-se os suspeitos e condenem-se os culpados. Para que não se pense que, com tanto barulho, isto se transforme mesmo num regabofe. 

9.11.21

Da provável monotonia cheia de surpresas

Agora que já sabemos que vamos a votos a 30 de Janeiro, podemos preparar-nos para três meses de sondagens, comentários, cenarizações, casos, casinhos e quejandos. Pode ser aborrecido, mas antes isto que uma tragédia tipo pandemia ou catástrofe natural.

E Fevereiro, para além do Carnaval cíclico a terminar um mês e iniciar outro, trará inevitáveis danças de cadeiras, num swing mais ou menos enérgico, dependendo dos resultados do primeiro dia 30 de 2022. Se o ano fosse bissexto até se arrumava tudo, Carnaval incluído, no mesmo mês. Assim sendo, com a Primavera talvez chegue alguma paz ao Governo da Nação. Não parece mau ritmo e espero que traga boas coisas ao futuro próximo. Para isso, julgo que a monotonia temática ganhará com algumas sacudidelas próprias das ondas de choque de umas eleições provocadas por uma crise política e não apenas pelo voltar da página do calendário.

Para já, o que eu gostava mesmo é que todos os entendimentos necessários, dando-se o caso de os portugueses não quererem um único grande Partido a governar e mantenham votos em Partidos até agora minoritários, sejam mesmo é comprometimentos. E para tal não bastará um ou vários acordos assinados: é assumirem pastas e entenderem-se entre ministérios, tão bem como se entendem os ministérios de uma só cor.

E que não se pense que a proposta desta opinião alivia a vida a qualquer um dos dois grandes Partidos. Cada um deles vai ter de se pensar e pensar muito bem as alianças que fará. Que não se pense que confiar em radicais é bom, para qualquer lado que penda. Que se pense sobretudo muito bem, antes de querer chegar ao microfone mais depressa e falar mais alto. O microfone é um isco tramado e a memória das gravações, quando dá jeito, pode ser tão perigosa como a falta dela. 

2.11.21

A Separação

Ai, a esquerda unida é que era! Ai, que só unidos à esquerda é que combatemos a extrema-direita e o liberalismo desenfreado! Ai que só assim é que nos libertamos dos que estão pouco ou nada preocupados com quem não consegue, seja de que forma for, subir na vida, ser alguém! Ai, que para sermos felizes temos de ouvir todos esses conselhos que as manifestações como a de 15 de setembro de 2012 se gritaram pela Avenida da Liberdade abaixo! Ai, que o voto é uma arma e só a esquerda contestatária é que mobiliza as tropas! Ai, que temos de engrossar-lhes o exército e esquecer desavenças! Ai, que eles nos batalhões da esquerda não se dão, mas vamos uni-los, mesmo à força de uma minuta lavrada com esferográfica marca Cavaco! Ai, que eles se arrependeram da discussão de 2011 que tanta infelicidade nos trouxe e querem-nos fazer felizes agora, devolver-nos um ambiente respirável e com esperança como quando se distribuíram cravos vermelhos na rua!

Pois é, eu também achava que havia esperança nos gritos com punhos a bater no peito a dizerem-se patriotas de esquerda. E que ir ter com essas vozes era transformá-las em gestos que mudam mesmo o estado das coisas. Coisas que mudam porque as pessoas que são a sociedade também mudam. Fiz mal. Durou pouco.

As famílias, mesmo com educação semelhante, têm membros a seguir caminhos diferentes. Zangam-se, aparecem desavindos no enterro de uma legislatura, apresentam-se de costas voltadas na preparação do baptizado da legislatura que vai nascer, de vez em quando cruzam-se num caminho que se estreita e lá têm de se cumprimentar, porque tem de ser, não há como escapar. Vão mantendo uma tradição de tribos e clãs. Alguns, mais raros, com antepassados comuns que num dado momento se separam; outros que, de tão parecidos na forma como chegam a chefes de clã, têm o seu “ismo” manchado do sangue daqueles sobre os quais se usaram para lá chegar. E deixam sem chão os que pensam que para além dos muros também há gente que não serve só para os ir mantendo, como trabalhadores sazonais que se vão buscar na altura da colheita dos votos. Gente que toma pulso ao mundo apertando o seu próprio pulso, o que se compreende embora não fosse pior que sentissem o coração dos outros tentar bater tão bem como queremos que o nosso bata. (Isto se eu não tiver de dividir energia e perder para dar, arriscando o que é meu, só meu; tudo compreensível mesmo que inaceitável.)

Fiz mal, porque voltei a ser social e politicamente lírica, a olhar o mundo com os olhos ingénuos e inaugurais. E não me surpreendeu, afinal, porque a grande desilusão já tinha sido, ali à praça do Sertório, quando experimentei o efeito do que julgava ser mesmo um substantivo abstracto: o sectarismo. Daquele mesmo tramado, recheado e coberto de cinismo que transfigura pessoas, que temos como gente boa, em autómatos movidos a ordens gravadas vindas de um obscuro passado que martiriza o presente e aborta qualquer futuro, com medo da perda do controle.

Passados 10 anos sobre aquela discussão que nos trouxe uma vida mais difícil (e mais para uns do que para outros, para também não nos surpreendermos muito), suspiraremos outros ais. Perdeu-se nesta geração a esperança nos ais anteriores, não sem termos a certeza que o mais provável é que a história se repita. Mais por oportunismo do que por falta de memória, claro. Porque a memória se manipula.

E no entretanto vamos ali ao multibanco fazer o que temos a fazer, porque só não o faz quem já está excluído desta sociedade (ai os pobrezinhos, os pobrezinhos! “Ai” eternamente usado e esvaziado), usados para fazer dos votos armas. E contra ou a favor deles, os que se vão excluindo, há escolha à escolha, nos vários lados. Difícil mesmo é ir pelo caminho do meio. A não ser que seja em performance, escudado por câmaras, luzes, microfones. Mas isso também é só a pausa para publicidade. Marca Marcelo. E institucional!