19.4.12

Quem parte e reparte e não fica com a melhor parte ou é tolo ou não tem arte

A conversa sobre a interrupção do direito a pedir a reforma antecipada anda no ar e é o assunto desta crónica. A reforma nunca foi para mim um objetivo de vida a atingir o que, na mesma lógica, me levou a acreditar, ou melhor a tomar como indiscutível, que hei-de trabalhar até morrer. Claro que nunca pensei que também morreria antecipadamente, ou até mesmo na idade por assim dizer oficial da reforma. Por outro lado como fiz 22 anos de trabalho e de descontos para a segurança social, tendo eu 44 anos, verifiquei que já passei metade da minha a trabalhar. E passou depressa, pois… com a pressa que a vida tem para muitos de nós, humanos. Lembrei-me também das conversas sobre as reformas de quem tinha um determinado vencimento e que se mantinham para o período de reforma, o que equivalia a assumir-se que alguém que tinha “preparado” a vida para depois do trabalho teria direito exatamente às mesmas condições de remuneração. Só recentemente, e quando essa benesse terminou, é que me dei também conta de que as reformas correspondiam ao melhor, e por isso maior, montante que o trabalhador auferisse durante a sua vida laboral. A ideia era que o trabalhador investisse na sua vida profissional, na sua carreira mais precisamente, e que chegasse ao topo antes de se reformar ficando por isso a ganhar o máximo a que tinha direito. E havendo esse direito muitos, imagino eu, o exerceram. Suponho também que nessa altura, e falando da administração ou função pública, não havia cá sistemas de avaliação como o tal de SIADAP que faz soprar tanto funcionário público com enfado. Haveria concursos e quem pudesse e quisesse concorrer lá ia, para além de também só o facto de passarem os anos lhe desse mais algum para sustento. Veio depois um Primeiro-ministro com nome de filósofo, e a quem agora acusam de nos ter enterrado em dívida, pôr fim a esta prática e, recalcular os montantes da reforma para uma média do ao longo da vida, bem como pôr algum travão à idade em que, caso a vida corresse normalmente (o que quer dizer que é mais normal do que excecional) se pudesse, então, ser-se reformado. Agora vem outro Primeiro-ministro, acordar-nos uma manhã, com a medida de suspender liminarmente a tal reforma antecipada. Fez-me esta medida pensar na sorte que teve a geração dos meus pais, a imediatamente anterior à minha portanto, em ter tido aqueles direitos e tê-los exercido. E comecei a rever alguns casos extraordinários que se passavam então e que, em nome dos direitos a que não correspondia (percebe-se agora, está bom de ver!) igual força de deveres, fazia pessoas passarem meia dúzia de meses, e que fossem anos mesmo, nos lugares cimeiros antes de se reformarem. A bem dizer, mais não faziam do que praticar o adágio que avisa que «quem parte e reparte e não fica com a melhor parte, ou é tolo ou não tem arte». Aparentemente tudo bem: era legal. Pena é que alguns destes que usufruíram de todos estes direitos, venham ainda reclamar quais «soixante-huitards», que é como quem diz que recuam aos tempos em que os direitos não eram nenhuns ou muito poucos, das injustiças do Estado que, ainda que correndo o risco de efetivamente se estar a cair na tentação de suspender a democracia (e é preciso estar muito atento a isto!), conquistou direitos e esperou que os cidadãos lhe correspondessem com responsabilidade. Partindo do princípio que, mesmo mudando as gerações, as personagens-tipo desta humanidade se mantêm, haverá quem não pense senão em ocupar toda a vida os tais lugares cimeiros das carreiras, muitas vezes com mérito, deverá ser fácil comprová-lo, mas outras vezes com critérios que podem assumir contornos muito nebulosos. E não, não são todos os políticos, nem todos os deputados, mas muitos que circulam por organismos do Estado. Mas, enfim, isto seria assunto para outra crónica. Voltando ao provérbio e às personagens-tipo da humanidade, parece-me que se quem se queixa se põe a jeito de ser piegas, quem não faz as coisas só a pensar em si é tolo. Raio de provérbio mais deseducativo! Como é que quem é democrata, republicano e até não-laico, por isso crente a Deus, vai lutar contra esta evidência que para além de estar no teórico aforismo se pratica tanto neste dia-a-dia? Lembra-me o tolo a personagem vicentina do Parvo, de quem todos se riam mas que ganhou o direito em apanhar a Barca da Glória e seguir para o Paraíso. Grande reforma não haja dúvida! Lá está, trabalhar, mesmo tolo, até morrer… Enfim, concluo dizendo que acho que já vamos tendo uns anitos de Democracia no lombo (está na moda esta expressão, muito chegada ao governo) e que quem os viveu se ponha fino (outra expressão, desta feita chegada à oposição) porque a luta, a continuar, pode ser entre gerações e não contra quem tenta, melhor ou pior, governar-nos. Pois é, é que por muito que custe ao anónimo cidadão comum, e habituados a que estamos a que a culpa morra solteira (os exemplos “de cima” também são férteis), os candidatos a noivos e noivas somos todos nós, ou não acreditam na participação dos cidadãos…seja ela melhor ou pior?!

10.4.12

Quem não tem padrinho, morre moiro

Passou-se mais uma Páscoa, a altura do ano em que se comemoram os padrinhos. Digo “comemoram” porque é por agora que muitos se lembram deles, padrinhos e madrinhas, esquecidos que andam o resto do ano destas responsabilidades que a igreja católica nos arranja, mesmo quando a prática da fé é intermitente ou mesmo já inexistente. E a propósito da figura do padrinho lá encontrei um provérbio e diz ele que «quem não tem padrinho, morre moiro». Para além da xenofobia que o provérbio deixa transparecer, apenas desculpável porque é antigo e reflexo muito mais de guerras territoriais do que de outra coisa, padrinho e afilhado é uma relação que cresceu muito para além da tradição. Melhor, recriou-se noutra tradição, que terá o seu expoente máximo de utilidade prática e vital no meio mafioso, e que mais do que qualquer ligação entre os mundos, terreno e sagrado, é muito do quotidiano e da vidinha de cada um no dia-a-dia. Não será preciso aqui explicar que a figura do padrinho e do apadrinhamento, mais do que a da madrinha que terá eventualmente, e à revelia de qualquer plano de igualdade, outros contornos mais bondosos na sua essência, se liga ao obscuro universo da cunha e do favorecimento mais ou menos lícito. Sai mesmo quase, diria eu, do universo familiar para o do combate de machos que lutam para ganhar o lugar no território. E vistas assim as coisas quase voltávamos ao tempo da Reconquista… Ter um padrinho será ter alguém que, mais conhecedor das coisas do mundo, ajuda o afilhado a integrar-se nesse mundo. O aspeto educativo dessa relação torná-la-ia perfeita com a declaração de autonomia do afilhado em relação ao seu padrinho, terminada que estivesse a integração. E o dever de um afilhado será o de utilizar esses ensinamentos que lhe foram transmitidos, ficando por isso reconhecido ao seu padrinho. A recompensa de um e outro será o sucesso da aplicação desses ensinamentos e consequente felicidade do apadrinhado, parece-me. O problema, para mim claro, é que de educativo e pedagógico, no universo do tráfico de influências, o apadrinhamento tem muito pouco. É uma relação de poderes: entre o poderoso padrinho e o obediente afilhado, mas também entre padrinhos. Uma relação que se prolonga, que não é de troca de favores, mas de dívida eterna e cobrável, sem prazo nem vencimento definidos. Num caderno de regras conhecido e reconhecido por padrinho e afilhado, estas relações são para a vida e promovem muita coisa, exceto a autonomia das partes. Por isso é que na tradição mafiosa e outras afins, quando o sangue é quente e os valores da vida baixos, esta autonomia só se dá ou conquista depois de umas trocas de tiros. Por outro lado, dizer-se que se tem um padrinho ou apadrinhar alguém é sempre uma sensação de ser muito útil e único no mundo, de ser importante, uma necessidade humana, compreensível se pensarmos que, atualmente, tudo e todos apregoam que para se gostar dos outros temos de gostar primeiro de nós, em hinos e loas à autoestima que, aparentemente, nos des-deprime, quando, se calhar, a “depressão” chegou com a frustração, e ao percebermos que vencer na vida custa e não é para todos. Além de que há relações que, parecendo-se com a de apadrinhamento não o são nos sentidos anteriores porque relevam das idiossincrasias do relacionamento humano, tendo em conta que nenhuma das partes tenta daí retirar vantagens, colocando-se em situação de privilégio. São comuns e, vulgarmente, dão resultados saudáveis porque mais do que na relação de dependência assentam na relação de confiança. Eu cá que nunca fui madrinha de ninguém (a não ser de dois casamentos que, por sinal, acabaram em divórcio, mas isso não se comemora na Páscoa) acho que preciso de construir uma “carta ética do amadrinhamento” para alguma vez o ser. Saber bem no que me vou meter, quais os princípios que deverei seguir, e aceitá-los se não colidirem com os meus próprios princípios em que me educaram e me eduquei. Para já, e no exercício de funções públicas, conheço e tento seguir com rigor os princípios éticos da administração pública, que dizem logo a abrir que «Os funcionários [se] encontram (…) ao serviço exclusivo da comunidade e dos cidadãos, prevalecendo sempre o interesse público sobre os interesses particulares ou de grupo». Será isto acumulável com as funções de uma madrinha?

4.4.12

De livro fechado, não sai letrado

Dia 2 foi o dia internacional do livro infantil, o aniversário de Andersen. Os livros fazem parte da vida dos miúdos que, cada vez mais cedo, frequentam estabelecimentos de ensino pré-escolar. E o gosto pelos livros é generalizadamente promovido pela escola e pelos educadores e é na infância que ele é, normalmente, um gosto sincero; quando a prática da leitura, mesmo quando ainda é só a do folhear sem ler, é frequente. Depois o Mundo abre-se ao indivíduo e muitas mais tentações o desviam do livro, sem que no entanto não tenha ficado na memória de leitor, como na de ouvidor de histórias, por vezes frases ou mesmo histórias inteiras que o acompanham para o resto da vida. É por isso que neste dia, todos os anos desde há muito, uma das organizações internacionais que se ocupa da promoção do livro e da leitura infanto-juvenil (o IBBY – International Board on Books for Young people) pede a um autor que a este propósito escreva um texto que se transforma na mensagem do dia internacional desse ano, e a um ilustrador que cria assim o cartaz comemorativo. Por isso é que hoje vos trago o texto que se segue, escrito por Fernando Hinojosa, autor mexicano de livros infantis. O título do texto é «Era uma vez um conto que contava o mundo inteiro» e diz assim: «Era uma vez um conto que contava o mundo inteiro. Na verdade não era só um, mas muitos os contos que enchiam o mundo com as suas histórias de meninas desobedientes e lobos sedutores, de sapatinhos de cristal e príncipes apaixonados, de gatos astutos e soldadinhos de chumbo, de gigantes bonacheirões e fábricas de chocolate. Encheram o mundo de palavras, de inteligência, de imagens, de personagens extraordinárias. Permitiram risos, encantos e convívios. Carregaram-no de significado. E desde então os contos continuam a multiplicar-se para nos dizerem mil e uma vezes: “Era uma vez um conto que contava o mundo inteiro…” Quando lemos, contamos ou ouvimos contos, cultivamos a imaginação, como se fosse necessário dar-lhe treino para a mantermos em forma. Um dia, sem que o saibamos certamente, uma dessas histórias entrará na nossa vida para arranjar soluções originais para os obstáculos que se nos coloquem no caminho. Quando lemos, contamos ou ouvimos contos em voz alta, estamos a repetir um ritual muito antigo que cumpriu um papel fundamental na história da civilização: construir uma comunidade. À volta dos contos reuniram-se as culturas, as épocas e as gerações, para nos dizerem que japoneses, alemães e mexicanos são um só; como um só são os que viveram no século XVII e nós mesmos, que lemos um conto na Internet; e os avós, os pais e os filhos. Os contos chegam iguais aos seres humanos, apesar das nossas grandes diferenças, porque no fundo todos somos os seus protagonistas. Ao contrário dos organismos vivos, que nascem, reproduzem-se e morrem, os contos são fecundos e imortais, em especial os da tradição oral, que se adequam às circunstâncias e ao contexto do momento em que são contados ou rescritos. E são contos que nos tornam seus autores quando os recontamos ou ouvimos. E também era uma vez um país cheio de mitos, contos e lendas que viajaram durante séculos, de boca em boca, para mostrar a sua ideia de criação, para narrar a sua história, para oferecer a sua riqueza cultural, para aguçar a curiosidade e levar sorrisos aos lábios. Era igualmente um país onde poucos habitantes tinham acesso aos livros. Mas isso é uma história que já começou a mudar. Hoje os contos estão a chegar cada vez mais aos lugares distantes do meu país, o México. E, ao encontrarem os seus leitores, estão a cumprir o seu papel de criar comunidades, de criar famílias e de criar indivíduos com maior possibilidade de serem felizes.» (Francisco Hinojosa; tradução Maria Carlos Loureiro).

A leitura, como a comida, não alimenta senão digerida

No outro dia foi dia da poesia e não tarda nada será o do livro, momentos em que se multiplicam sessões de leitura pública promovidas por diversas iniciativas. Ao contrário do que muitos ainda dizem, eu cá acho que nunca se leu tanto como hoje em dia. Não são livros, nem será literatura, o suporte e a matéria dos leitores de hoje. Mas é leitura… em quantidade. O desenvolvimento da visualidade, por oposição ou complemento da velhinha oralidade, tem-nos tornado mais disponíveis para ler o texto escrito, para além do texto icónico ou da imagem não-verbal. Lemos mais em silêncio, por oposição à leitura sussurrada que indicava inexperiência no ato de ler. O processo de descodificação do que está escrito, isto é, de entendermos o que diz efetivamente o texto que se lê, às vezes exige que o leiamos com o som da voz, para além do gesto do olhar ou dos dedos que percorrem o impresso. E isso é ainda mais urgente quando se lê poesia. Fruto da democracia, ler é, então agora, um ato quase natural, e longe vão os tempos em que encontrávamos gente mais idosa no supermercado a pedir que lhes lêssemos esta ou aquela informação do rótulo de um produto. Esta democratização do acesso ao texto escrito permite-nos, para além de comunicarmos à distância e no tempo, que é no fundo uma das principais razões de ser da escrita, permite-nos a todos e todas ter também mais acesso à informação, mas também à contra ou desinformação. Tantas vezes lemos uma coisa e o seu contrário, quando factos são interpretados e expressos por opinião que os interpretam como se de textos literários se tratassem e, por isso, com significados plurais que encontram e desencontram sensações e emoções. E é muito curioso como vistas assim as coisas, e sobretudo de factos políticos, se fazem “leituras”, sendo que leitura passou então a ser sinónimo de opinião. E é por isso que o provérbio que diz que «A leitura, como a comida, não alimenta senão digerida» me parece de uma sabedoria inigualável. É que a leitura, mesmo leitura, passou então a tornar-se um ato tão corrente e banal que nalguns momentos se assemelha, e pegando na mesma área de comparação, à fast food. Não é que de vez em quando não tenha de ser, mas lá que não é grande alimentação para o espírito lermos sem pensarmos, nem que seja um pouco, sobre o que lemos ou sobre a maneira como nos dão a ler determinado facto, não é. Ler mesmo é tentar ler também nas entrelinhas, é estar atento a cada substantivo, adjetivo e verbo e o lugar que cada um destes ocupa numa frase ou num parágrafo, e a banalização de encararmos o que lemos sem questões faz muitas vezes com que percamos o sentido da crítica e de sermos, de facto, bons leitores com oportunidade de formarmos uma opinião. Às vezes as crianças, com aquele olhar inaugural sobre o mundo que alguns poetas também têm, questionam-nos sobre o sentido do que dizemos ou lemos de forma desarmante, o que nos leva a procurar, lá está, um sentido mais preciso do que é dito ou escrito. Há, pois, que não perder (quando vale a pena perder tempo com assunto por que nos interesse, claro!) a capacidade de nos interrogarmos melhor sobre os sentidos que a linguagem verbal, oral ou escrita tanto faz, nos permite ter. Olharmos um texto com olhos de ver é lê-lo com atenção, e isso ajudar-nos-á olhar o mundo nele refletido também dessa maneira e entendê-lo melhor, ver-lhe os detalhes e vivê-lo melhor. E é por isso que, para mim, esta leitura, tantas vezes feita de conversa em torno do que se lê, é tão importante.