28.6.11

O Fim

O Fim é o título de uma peça de teatro de António Patrício que, de resto, foi belissimamente encenada pelo CENDREV no início deste ano no âmbito das comemorações do Centenário da República. Neste mesmo contexto, o grupo de teatro a Barraca fez igualmente leituras encenadas deste texto que retrata também a Lisboa num fim tumultuoso e sangrento da monarquia. Uma das personagens a que o Autor chama Desconhecido, que vai reportando o cenário de todos os horrores das armas e do sangue, empenhado em salvar a monarquia e a própria nação do caos, ainda insiste em falar com a Rainha-Mãe D. Maria Pia que, enlouquecida e indiferente à situação apocalíptica, se prepara para um banquete imaginário respondendo ao apelo do Desconhecido com duas palavras «Tenho fome.»

O contexto mundial político, social e sobretudo económico em que vivemos não se compara obviamente à mudança de regime que o texto literário usa como tema. Nem é minha intenção ao referir-me à peça de Patrício, eu republicana convicta, dizer que naquela mudança há uma pobre realeza, coitada, de quem devemos condoer-nos e que representa um regime de que alguma vez devamos ter saudades. Nada disso. É o drama pessoal e íntimo das personagens patente no texto, e revelado na expressão dos actores que lhe deram corpo, que me traz à minha crónica de hoje. O cenário de falência de um paradigma que se esgotou (e não adianta falar da culpa que aliás já foi tema de crónica anterior). Um modelo da vida em torno do que se vende e se compra, mesmo quando alguns (poucos mas capazes) tomam a expressão «ganhar o seu pão» literalmente e acham que o pão nos cai por sorteio ou concurso e não se compra com o trabalho. Esse modo de exercer a vida, a que todos, mais uns que outros, é certo, nos habituámos chegou ele também ao fim.

O Desconhecido e a Rainha somam o desespero e a “irrazoabilidade”, as duas faces de uma mesma moeda (metáfora que vem tão bem a propósito ao caso dos dias de hoje), o estado de espírito de quem se vê confrontado com algo de terrivelmente inevitável, como parecia tão inevitável o estado que precedia este caos.

É o que vou sentindo a crescer nas populações, em desabafos individuais ou acções colectivas, na rua, na praça, na cidade, no país, no mundo. O confronto com a luta, alguns até pela própria sobrevivência, quase faz parecer riquezas as misérias que se choraram antes. Uma luta que para já, e muito pelo próprio evoluir cultural da espécie humana enquanto tal, recusa ou pelo menos faz atrasar o recurso às armas. Como o Desconhecido exige razão e acção a uma Rainha de um regime já inviável, numa quase óbvia extorsão aos olhos de todos, vai-se reclamando, protestando e implorando direitos como se de inevitabilidades se tratassem e que se tornaram tão fatais para o regime que se encontra agora tão moribundo. O protesto que antes se calava com o dinheiro, persiste agora pedindo a vida a quem tenta também sobreviver. 

Como se afirma no texto de apresentação da encenação eborense desta peça para o Centenário «O Fim é uma espécie de laboratório teatral no qual o dramaturgo António Patrício prenuncia não só a extinção do regime monárquico em Portugal (…) mas também toda uma atmosfera de tragédia colectiva que parece ser premonitória dos conflitos bélicos que devastaram o mundo ao longo do século passado.» O tom pretérito do verbo devastar, acertado na sintaxe, parece-me mais um desejo do que a realidade de um futuro mais indicativo do que desejaríamos. Preparemo-nos para ouvir àqueles a quem imploramos que nos façam renascer duas palavras «Tenho fome».

21.6.11

As Feiras (21.06.2011)

As feiras chegam para marcar no calendário das populações uma época de ar livre, de lazer e diversão, de ver e ser visto. Vão-se modificando, elas mesmas, mas também aos olhos de quem as vai vivendo de ano para ano, de quem vai crescendo com elas. Uma espécie de silly season popular, que não sai nas revistas cor-de-rosa mas preenche sobretudo as noites de quem as frequenta ou de quem, não as frequentando, vai delas tendo relatos, apreciações e juízos, ou nela tropeça como se se tratasse de obstáculo a uma rotina que não se quer alterada. Procura-se ambiguamente a novidade e a tradição, ou simplesmente se aceita o que outros fazem para nos marcar os dias, para o bem ou para o mal, consoante se seja mais ou menos festeiro ou pacato cidadão em dias sacrificados por sons, cheiros e movimento.

A elas se colam opiniões e reacções epidérmicas, impressões e expressões, comerciais ou políticas. Há o “gosto mais ou menos do que a edição anterior”. Há o “está mais fraco ou melhor” o negócio, o que trata do ócio mas não só. Há o apropriar da feira por quem a organiza e que, normalmente, procura no sucessor um pior sucesso que aquele que foi o seu, ou do qual se apropriou. Uma espécie de guerra de mordomos de romaria que se quer sempre igual, mas maior e melhor, o que pode ser tão verificável como questionável. Até porque se há lugar por que todos passam de melhor ou pior vontade, mas nunca indiferente, em princípio, esses lugares são estas feiras anuais que se instalam no nosso caminho do dia-a-dia, tornando-se na imensa maioria das vezes completamente incontornáveis.

Neste sentido, as feiras são como lugares de afirmação de quem as cura, recebendo esse património a que se quer acrescentar mais ou diferente, deixando para a geração seguinte uma herança mais recheada. Se não é assim devia ser, digo eu. O maior e o melhor são, no entanto, barómetros que se calibram por medidas flutuantes, ao sabor mais de verbas do que de verbos de vontade e intenção. E serão sempre medidas sem mediana definida, porque o que agrada mais a uns deixa outros indiferentes e o que incomoda fulano enche as medidas a beltrano.

Ainda assim há todo um enorme esforço dispendido a vários níveis na concepção, montagem e funcionamento de uma feira como é a de São João que chega a Évora, ainda e sempre, nesta semana. Exercícios de fazer oitos com pernas de noves, nesse esforço que será sempre mais reconhecido pelas enchentes que reincidem noite após noite no bulício da festa, do que em qualquer crónica ou opinião de rádio ou jornal. 

Entre farturas, caipirinhas, cachorros e poncha, fica a memória do polvo, de cheiro intenso e de consumo limitado a dentes de leão e a quem gostasse, claro, nas estórias que se vão contando à geração seguinte, crescendo a Feira com as gentes. Uma dinâmica que veio fazer com que a geração que lhes sucede, sobretudo àquelas feiras que ocorriam mais amiúde por ano, seja a dos hipermercados e centros comerciais, aonde acorrem romagens em tudo semelhantes, e que apenas alguns, não sem algum pedante elitismo, vão recusando, acusando a descaracterização, ignorando o efeito do Tempo que passa e de quem não são nem nunca serão donos. Passear, comprar, passar o tempo, encontrar conhecidos, verbos que se conjugam da mesma maneira em cenários que se modificaram na luz, no som e nos cheiros e a que não adianta reagir sob pena de se olhar sempre o Futuro com a nuca.

14.6.11

Lições da campanha (crónica da Rádio Diana, 14.06.2011)

Vou ainda falar das eleições porque esta foi a campanha eleitoral em que estive mais atenta a debates, comentários, reportagens, o que fez com que aprendesse um pouco mais sobre uma parte da vida.
As eleições representam para mim uma conquista da geração dos meus avós e dos meus pais e faz parte da cartilha dos valores democráticos que ensino aos meus filhos. Mas alinho com quem nestas eleições viu oportunismo. Não que o direito de uma maioria interromper o trabalho de um governo não seja legitimamente democrático, porque o é, mas porque afinal se interrompeu um ciclo com argumentos de uma situação que foi resultado de todos e de ninguém: de todos os que foram sendo poder e contra-poder no país, de ninguém porque de todos, mas também por reflexo de uma situação que nos chegou de fora e chegará a outros que alguns têm como melhores que nós. Primeira conclusão minha: não terá sido a queda e subsequente substituição do governo que virá alterar o rumo de Portugal nos, pelo menos, próximos dois anos, o tempo que restaria ao governo que sai agora.
E desta campanha tirei algumas lições: a primeira foi a do fenómeno de “os que cá andam por ver andar os outros”, expressão pouco simpática, é verdade, para designar aqueles que estão normalmente do lado dos que aparentam ser mais fortes e melhor posicionados para a vitória. É um fenómeno acalentado, naturalmente, por aqueles a quem as sondagens, esse novo instrumento de propaganda partidária, dão a vantagem. Afinal, parece-me que a lógica desse cálculo parece estar certa, pois se “todos” acham que uma escolha é a mais certa é porque deve ser mesmo. Também é aquele meio-mundo que pensa assim, o público-alvo do lado mais folclórico das campanhas, que depois é tão criticado pelo outro meio-mundo que aponta a falta de debates sérios entre candidatos. Vejo nestas atitudes a oposição massas-elites e pergunto-me se estamos todos – governantes e governados – preparados para lidar com este fenómeno aplicado a assunto de política, vital para a afirmação de um país. Encarar uma campanha política apenas como uma campanha publicitária, não me parece um bom serviço prestado à Nação.
Por outro lado, outra lição, a taxa de não-participação dos cidadãos faz-me pensar se, aquilo que se apregoa como a grande insatisfação do Povo perante alegado mau governo que alguns quiseram deitar abaixo, não terá sido precisamente a prova de que foram mesmo só alguns que quiseram alterar ou interromper o ciclo eleitoral.
E pergunto-me se este direito ao voto que conquistámos com Abril não deve tornar-se um dever a que só com justa causa se pode falhar, para que de facto se incluam todos os portugueses no destino do país (aliás, o recenseamento automático é já um adiantar de trabalho neste sentido). Um pouco como a escolaridade obrigatória, contra a qual eu não conheço ninguém que esteja, e que alguns não tendo sido abrangidos por ela tiveram nos últimos anos uma nova oportunidade de dela beneficiarem. É certo que não se evitarão os votos em branco, que poderão significar sempre equivocamente protesto ou ignorância, mas talvez leve muitos a estar mais atentos às propostas de quem se organiza em partidos, movimentos e coligações. Parece-me uma medida em prol do bem público, da efectiva educação para uma cidadania que se exerce também com o voto, sensibilizando para a importância de fazer opções, de respeitar as decisões e de perceber que quando se toma partido é porque se deseja uma determinada orientação, forçosamente diferente, muito ou pouco, de outras orientações que se proponham, numa valorização da alternativa. Não faria mal a ninguém, poderia até fazer muito bem a alguns que por uns momentos de tempos a tempos se habituariam a participar na Democracia, o que já representaria, incontestavelmente, um ganho para o país. E para os Portugueses, claro!

8.6.11

Pessimismo (crónica da Rádio Diana, 07.06.2011)

E agora, José? É título de obra de Cardoso Pires e mote a que este Autor dá umas voltas num texto autobiográfico intitulado Fumar ao espelho. Nessas confidências do Autor estão reflexões sobre o pessimismo, um substantivo que me assalta de quando em vez, mesmo quando o meu trabalho é caminhar com o optimismo, para que esse caminho possa dar frutos e não erguer barreiras à construção de um mundo melhor ou, pelo menos, uma cidade melhor. Mas também porque o pessimismo alimenta alguns discursos que ganham a sua força com a miséria dos outros, expondo os casos como atracções de feira para dar força a protestos e exigir medidas que só existem no País das Maravilhas, e de que se conhecem alguns retratos mesmo quando só lá se vai a banhos e luxos.   

Diz Cardoso Pires sobre o assunto: «O pessimismo acaba sempre por funcionar como uma superstição de prudência: prevê o pior para ir acumulando resistências contra o mau mas sempre na esperança de que o mau nunca venha a acontecer. E se acontecer, percebes, também já não perde tudo, ganhou pelo menos a glória da razão.» É o que diz José, o Cardoso Pires.

O ponto de equilíbrio entre o pessimismo e o optimismo parece encontrar-se no realismo. Coisa tão difícil de conseguir como a escolha sempre acertada, como a precisão de um percurso sempre escorreito, com resultados sempre óptimos. Mas o realismo é também ter os pés assentes na terra, o que parece ser sinónimo de esperar sem agir. É por isso que julgo que se há um optimismo e um pessimismo, só pode haver vários realismos. Plurais, circunstanciais, mutáveis como os seres vivos. Resultados de diferentes opções de vida, de diferentes visões do Mundo, de diferentes ideais, de diferentes conceitos como, por exemplo, o de Pátria. Escrevia o Vergílio Ferreira «A pátria, como tudo, és tu. Se for também a do teu adversário político, é já problemático haver pátria que chegue para os dois.»

Governar vai ser agora também um jogo de equilíbrio entre o pessimismo que nos espera e o optimismo que esperam dos governantes. E os governados? Como se governarão? A escolha foi feita, fez-se uma cruz. E os braços? Ficarão cruzados? O que é que cada um pode fazer se tiver a coragem de pôr mãos à obra e não deixar-se prender numa apatia de espera. Olhar-nos-emos ao espelho, todas as manhãs, e pensaremos não só naquilo que vemos reflectido, mas naqueles que nos esperam lá fora. Poderemos ir só deixando passar o tempo e o dia-a-dia, poderemos ir ajustando os realismos e procurando ultrapassar o pessimismo para um dia podermos afirmar o optimismo.   

Pode ser aguentar e ser-se realista, com esse realismo que tem o efeito semelhante ao do nevoeiro num aeroporto. Ou pode ser agir, num círculo de confiança com outros que sentem os mesmos realismos que nós, encontrar outros que engrossem as nossas fileiras e, na hora certa, quando quer que ela chegue ou que nós a façamos, estarmos lá para receber os louros da tal glória da razão de que falava Cardoso Pires, e que trazem consigo a responsabilidade de agir em conformidade com o que fomos esperando, juntos.

«E com esta me despeço,», diz Cardoso Pires e repito eu, e continua «adeus até outro dia, e que a terra nos seja leve por muitos anos e bons neste lugar e nesta companhia.» E exclama ainda «Pá, apaga-me essas rugas. Riscam o espelho, não vês?». E digo eu: valeu a pena a luta, José, Sócrates, fizemo-la juntos, aprendi com ela e continuo a minha, em boa companhia, espero.