28.12.11

Melhor é o ano tardio, do que o vazio

Não me apetece nada mudar de ano. Pela primeira vez, o momento da passagem de ano, que tem para mim um significado especial, com o qual não vos maçarei, desta vez aparece-me como uma espécie de “chatice” que tem mesmo de ser. São tantos os maus agoiros, e tão prováveis que se concretizem, que parecem apelar a que se adormeça a 31 de Dezembro deste ano e se acorde só em 2013. Bem sei que esta espécie de “síndrome bela-adormecida” poderia trazer dissabores e a falta de esperança que se generaliza, e que quem nos governa também não vai dando, poderia vir a fazer falta viver um dia atrás do outro o lento retrocesso que se anuncia. E o choque do despertar seria ainda pior.

Pois o melhor é mesmo mantermo-nos de olhos bem abertos e não ceder a estas tentações egoístas. Vamos lá andar para a frente, a reboque do Tempo, e fazendo sempre o nosso melhor para que, mesmo parecendo sem forças para contrariar rumos e marés, se ir trabalhando para evitar naufrágios e encalhamentos. Esta espécie de marcar passo, em ritmo de Procissão de Senhor dos Passos, parece-me melhor do que ficar à margem a ver passar a caravana, ou seguir aqueles conselhos que nos mandam mudar de zona. Afinal, «melhor é o ano tardio, do que o vazio». Há pois que ir fazendo por nós, a quem e quando é de fazer por nós; e fazer para os outros, a quem é de fazer para os outros.

Bem sei que às vezes parece que há para aí vozinhas que nos mandam desistir. Algumas até são grandes vozeirões que, em frente a um micro, não contêm as palavras em rascunho que lhes bailam na ideia. Mas há que perdoar-lhes, porque se bem sabem o que pensam, não medem o que dizem nem como dizem. Os conselhos dos nossos atuais governantes lembram-me o que escreveu uma vez Almada Negreiros, um moderno do século XX, artista mais ou menos protegido de Salazar e que, ainda ciente do humor, lá foi dizendo: «Coragem, Portugueses, só vos faltam as qualidades!».

De facto, as palavras de ordem de quem nos governa têm sido desastrosas, até porque se escondem numa espécie de transparência que, à partida, parecia algo de louvar. No meu entender, tanta transparência assim “vira” quase pornografia. Um pouco de decência nunca fez mal a ninguém, já que por vezes mostrar tudo implica dar-se azo a olhar sem ver, não perceber o que é importante do que é acessório e, as mais das vezes, afasta o bom observador e retém apenas o olhar do basbaque. Popularucho e pouco sério.

Este ano que aí chega é pois um ano de resistência. Não de inércia, nem de defesa contra o ataque, mas como também se define no dicionário, usando as forças que nos restam para reagir contra açãoas forças negativas que nos vão surgir pelo caminho. Vai ser difícil, mas não nos poderão acusar de que a nossa resistência será o bloqueio de outros.

Boas saídas e melhores entradas e até para o ano.

23.12.11

A desgraça de Portugal dá-lhe três cheias antes do Natal


Porque esta é a última crónica antes do Dia de Natal, lá procurei nas minhas fontes um provérbio que à quadra se referisse. E não é que encontrei um que a modos que me lembrava a situação de muitos portugueses face à austeridade instalada? Dizia assim a primeira versão: «A desgraça de Portugal dá-lhe três cheias antes do Natal». Das outras versões, uma parece confirmar o sentido desta, mas a outra parece dizer precisamente o seu contrário.
Confusa com estas variantes, tentei vários exercícios de interpretação, que foi coisa que eu durante toda a minha vida tenho feito, enquanto professora de literatura, mas não só. E não é que cheguei à conclusão, talvez um bocado ficcionada porque isto nas crónicas pode ter destas liberdades, de que há nestas três versões uma gradual atualização, um upgrade como agora se diz! Vejamos as versões do provérbio pela tal ordem que acabei por lhes dar: 1º «A desgraça de Portugal dá-lhe três cheias antes do Natal»; 2º «Se queres a desgraça de Portugal dá-lhe três cheias antes do Natal»; e 3º «Mal vai Portugal se não há três cheias antes do Natal».
Ou seja, de uma constatação sobre a meteorologia, que sempre deu um jeitaço a quem usa da sabedoria proverbial para se orientar no mundo rural e agrícola, a sentença popular evoluiu para uma erudita versão irónica sobre uma certa maneira de olhar para Portugal. Uma certa maneira até fatalista. Senão vejamos…
O provérbio confirmado pelas duas versões semelhantes parece atestar que uma das desgraças de Portugal são as três cheias antes do Natal. Este ano ainda não dei por nenhuma grande cheia e ainda bem. Se calhar houve-as e quem me ouve há-de estar a dizer que eu vivo num mundo aparte e que havia de ter à minha porta a desgraça que lá têm à deles. O que é certo é que até hoje, dia em que escrevo estas linhas e faltam uns dias para o Natal, não houve assim notícia de grandes inundações provocadas por amostras do Dilúvio. Outras notícias de outras enxurradas, e mais de três, e algumas que têm a ver com Natal e férias, têm sido muito noticiadas e comentadas, e têm-nos feito a alguns mais desgraçados, mas enfim, isto são desabafos. E nem ouso dizer que existiram esses fenómenos porque se quis a desgraça de Portugal…
A última versão «Mal vai Portugal se não há três cheias antes do Natal» faz do nosso país um lugar onde a desgraça é uma espécie de estado civil da nacionalidade, e nem se é bom português se não se souber e sentir na pele o que é um trio de desgraças (e antes cheias que outras piores) para comemorar o nascimento do Menino como uma espécie de final o mais feliz possível a rematar o ano civil. Para quê lamentarmo-nos de mais alguma coisa se conseguimos ultrapassar as malfadadas três cheias da praxe?!  
Esta convivência com a desgraça, e muito em particular com as cheias, que parece o provérbio ditar-nos, entrega-nos ao lamento e ao conformismo, o que afinal só nos prepara para irmos levando com elas e as ir encarando como um património imaterial, mais natural porque meteorológico, muito próprio, e que importa acarinhar como parte intrínseca de um modo de ser português. Eu cá prefiro mesmo achar que estamos a ser castigados através da intempérie por erros de sempre, lá do tempo de Afonso Henriques, e que a expiação um dia terminará. Não sabemos é quando, porque as coisas já pareceram melhor encaminhadas…
A lógica de tudo isto, retirando a explicação geográfica e meteorológica, científica portanto, e que deve existir mas eu desconheço, a lógica deve ser a mesma do Fado e da Saudade. Explique-a quem o canta e quem a sente, se conseguir! Entretanto, um Feliz Natal a todos os ouvintes e até para a semana! 

13.12.11

Ano de bugalhos, ano de trabalhos

Nas festas de aniversário para além de darmos os parabéns aos aniversariantes, muitas vezes recordamos episódios e momentos vividos em comum. Às vezes também falamos do Futuro, muitas vezes mais em tom de desejo do que em planos concretos. É assim com pessoas, mas também com instituições. Quando é com instituições, o convívio faz-se entre instituições, muito embora saibamos que estas só se fazem com pessoas e as histórias trocadas sejam episódios de vidas humanas. No último aniversário de uma instituição em que estive presente, também em representação da Câmara Municipal, fiz pois um pequeno balanço dessa minha relação com instituições como a aniversariante que, no caso, era uma associação cultural que vive na nossa Cidade há 111 anos, a SOIR, Sociedade Operária de Instrução e Recreio Joaquim António d’ Aguiar. Neste último ano tiveram estas associações comigo e com a Câmara Municipal uma relação difícil, constante mas agitada, desencontrada por vezes mas com um respeito que nestes momentos de festa se reata, num gesto que diria quase natural de cordialidade, substantivo que tem na sua origem a mesma raiz de coração. Foi um «ano de bugalhos», pois como diz o Povo «Ano de bugalhos, ano de trabalhos». Trago-vos pois o último troço da minha conversa, em forma de discurso, que com eles tive na sua festa de aniversário, e que diz assim:
«Não cedemos nunca aos coros de tantas vozes que os senhores bem conhecem e que, se calhar de forma mais em surdina e sussurrada do que as que vos apoiam, vos vão chamando de “subsídio-dependentes” e reclamando que acabem convosco. São esses os que nunca assistem aos vossos espetáculos, os que mesmo em dias em que vários de vós têm em simultâneo atividades em diferentes áreas continuam a dizer que não se passa nada em Évora. São esses que, numa concordância que seria fácil se quiséssemos ceder a populismos, nós também combatemos, porque sabemos que sem conhecer é muito fácil falar, mas também é fácil errar juízos. E também é por isso que mesmo não seguindo princípios ideológicos ou de interesses de grupo, que muitas vezes orientam as atividades de muitas das associações e instituições deste Concelho, este nunca poderia ser por si só um fator a ponderar por nós. Pena é que muitas vezes na contestação ao desempenho das minhas funções essa, pareça pelo menos, ser uma forma de atuação. Para mim a Cultura não tem cor política, nem valores discriminatórios, e respeita a variedade e multiplicidade de gostos de quem a faz e de quem a recebe, apesar de eu achar que a atividade artística, uma das partes de fazer Cultura, tenha sempre um triplo papel estético, ético e político.
Bem sei que o que digo são só palavras a fazerem falar as ideias. Os gestos, muitas vezes, traduzem-nas a condizer, outras vezes não, sem que por isso se imputem culpas a quem as diz e tem, ou a quem as ouve e delas discorda. Mas o caminho que nos espera para percorrermos será sempre mais fácil, ou menos difícil, se a boa-fé que todos temos andar lado a lado num mesmo objetivo: servir a comunidade, acreditando no que fazemos.» Foi assim o final desta festa de aniversário.

7.12.11

Mais do que o dado, vale a maneira de o dar

Nunca aqui, no espaço destas crónicas, me tenho referido de forma direta a pessoas individualmente. Mas hoje vou fazê-lo, falando do Mestre João Cutileiro, um pouco nos mesmos termos com que a ele me dirigi no passado dia 25 quando da sessão solene comemorativa dos 25 anos de Évora Património Mundial. Fi-lo a propósito da sua oferta à Câmara Municipal, e à Cidade portanto, da conceção da medalha também comemorativa da efeméride. E, na lógica que também tem pautado estas minhas crónicas, o provérbio que achei, o mais pertinente pela forma como todo o processo decorreu, diz assim: «Mais do que o dado, vale a maneira de o dar». Não que ache que a medalha não vale. Para mim vale, também esteticamente. Mas porque sei que não é numa medalha que cabe e se acaba a obra de um Mestre. Também sei que os elogios a alguém também não se acabam nas palavras que sobre esse alguém são ditas. Aliás, já Shakespeare disse uma vez «falais baixo se falais de amor», numa clara alusão ao pouco alcance das palavras na expressão de sentimentos mais nobres.

Se o Centro Histórico de Évora é há 25 anos, oficialmente, Património da Humanidade, Évora já era e será sempre a Cidade de João Cutileiro. Falar de Évora obriga-nos sempre a falar do Mestre. E eu gosto disso. Cutileiro, entre mulheres, árvores e cavalos, esculpe na pedra e alinha na folha o perfil da Cidade onde, sem ornamento inútil de sinalética, reconhecemos de imediato Évora. Podia até não sê-lo, num trocar de voltas com que o seu espírito brincalhão, certeiro e não menos das vezes acutilante – o nome também o moldou - tantas vezes nos desafia. Mas o seu traço evoca imediatamente esse lugar, e é por isso que um não pode viver sem o outro.

Pedir a João Cutileiro que oferecesse a Évora por altura deste aniversário a medalha comemorativa pareceu-me natural e foi sem espanto que o sim chegou de imediato, acompanhado de uma condição também ela natural – que a medalha assentasse em cubo de pedra, pois claro! Também seria natural, mas correríamos sempre o risco de uma surpresa, que fosse redonda. Quem melhor do que ele para arredondar as coisas que saem das suas mãos? Faltava ainda ver o que nela esculpiria. Foi por isso emocionante ver no molde cor de tijolo a figura do cavaleiro, e perceber que a lenda deste homem intrépido, ainda que como qualquer figura de ficção com uma conduta pejada de detalhes obscuros, o Geraldo, vindo de fora para aqui tentar a sua sorte e acabando por ajudar à reconquista do território, permanece uma personagem inspiradora. Na medalha de João Cutileiro podemos ler ainda, e misturando a numeração romana com o alfabeto, “dois mil anos de história”, numa referência tão fina como o traço de Cutileiro aos tempos anteriores mesmo à Liberalitas Julia.

Se Évora é há 25 anos património mundial, Évora enquanto inspiração é intemporal. E tal como a obra de arte, pelo tempo que permanece se transforma em obra-prima, a relação de Évora com o Escultor sê-lo-á por mais de 2000 anos de história do Futuro, e muito para além da medalha. Mas esta é uma marca deste ano, nesta história de João Cutileiro e de Évora.