27.9.16

Oportunidades e comboios

Um assunto de comboios tem estado a apoquentar os moradores junto à antiga linha ferroviária de Évora. Um projeto estratégico para o País que, aparentemente, teria de incluir esse atravessamento, num processo por agora, também aparentemente, mais calmo, mas em que a intransigência de uns parecia estar a levar à resistência exacerbada de outros que, não sendo muitos, perceberam muito bem o perigo da situação. Já assumi a minha posição publicamente e declarei o que tinha a declarar sobre o assunto em concreto, mas não queria deixar de falar um pouco dessa expressão que, das duas umas, ou reflecte uma atitude ou se reflecte numa agenda própria de alguns. Falo da expressão “ficar a ver passar os comboios”.
Usada para significar que se perde uma oportunidade, o seu porquê e de onde vem não consegui apurar. Seguramente que em português a expressão não pode ter nascido antes da segunda metade do século XIX ou, se nasceu, já poderia ter sido por indignação dos que queriam ver os comboios a circular em Portugal mas não havia meio de isso acontecer. Parece que as primeiras tentativas terão sido de 1840, a obra só arrancou em 1853 e o primeiro troço, Lisboa-Carregado, terá ficado concluído em 1856, há 160 anos portanto. Também poderá ser uma tradução das expressões em francês ou inglês, que falam em “perder o barco”, e ser tão antiga como a época dos Descobrimentos com uma actualização oitocentista. Curiosa é a expressão que funciona como onomatopeia e, portanto, serve para imitar o ruído do comboio - «pouca terra, pouca terra» - a que se junta a onomatopeia “u-uuu”.
Entre uma e outra expressão, não consigo deixar de imaginar que se a primeira se aplica aos que ficam apeados e parados, a outra parece entoada por quem lá vai dentro, a fazer quilómetros atrás de quilómetros. Sem emitir juízos de valor, pergunto-me sempre quem será mais feliz: se o que escolhe acomodar-se, se o que não sossega sem mudanças constantes. É que os primeiros podem acomodar-se porque, de facto, conseguiram o ambiente ideal para o fazer e essa comodidade é a oportunidade que agarram. E os outros podem sempre, inconformados, desejar o melhor que não encontram por onde passam e não ficam, não sem antes tentarem esse melhor para aquele lugar. Mais uma vez, em meu entender, é o tempo, a consciência que dele temos, que nos faz criar ou aproveitar oportunidades. Quando o fazemos só para nós e em prejuízo dos outros até lhe chamamos oportunismo.
Em Évora, nos finais dos anos 90 - início deste século, quando um pouco por todo o país se erguiam centros culturais, deve-se ter achado que não eram precisos e nenhum se fez ou se recuperou um salão que, tão central quanto em ruínas, ainda para ali está. Em Évora, quando um pouco por todo o país, nasciam centros comerciais com cinemas, por aqui chegava aquele que ficava ali ao canto e que, de tão esconso, não atraía espectadores. Em Évora, quando em todo o país qualquer sede de concelho já tinha um sistema de águas que evitava os longos verões sem pinga na torneira, o sistema encontrado, para o assunto ser rapidamente resolvido, que foi mas mais tarde, sai caro aos bolsos da autarquia num “casamento” com parceiros que ainda anda a correr mal. E em Évora, para se ter uma pista de atletismo foi preciso um projecto que começou com uns localmente, que continuou com outros centralmente, e se concluiu de novo com os primeiros e os outros, e a que se juntaram mais outros, localmente, para cortar a fita e assumir a gestão.
Um cenário político-partidário destes, em que todos procuram ser os que fizeram isto ou aquilo, parece acompanhar com «pouca terra, pouca terra» a atitude proactiva que afinal só pode beneficiar Évora. Não se pode é promover durante anos essa atitude de ficar sossegadito a ver passar os comboios, agitando bandeirinhas a exigir isto e aquilo, e depois querer que quem se habituou ao “poucochito” que lhe deram mas a refilar muito por mais e melhor, saiba fazer mais do que isso. Mas isto sou eu a pensar, que nem todos os comboios se apanham só porque sim e, retomando a referência da expressão nas outras línguas, há outra expressão que nos ensina o valor do tempo e da oportunidade: «há mais marés que marinheiros».

20.9.16

Metaforizar

É um prazer voltar às crónicas em que, da letra à voz, a Rádio Diana me vai dando a oportunidade de emitir opinião e, talvez até, fazer opinião junto daqueles que me ouvem ou lêem com toda a paciência. Tenho seguido uma norma, pessoal e possivelmente intransmissível, de submeter as séries de crónicas a um motivo constante, à volta do qual surgem os temas, ou assim os suscitam as circunstâncias, e que me vão levando a partilhar a minha opinião. Já o fiz com ditados populares, com verbos, com estrangeirismos, com citações de Vergílio Ferreira. Nesta série pensei na metáfora como pólo agregador de ideias, argumentos, lógicas discursivas. E talvez seja por isso interessante começar por ajustar o vastíssimo “mundo da metáfora”, muito conhecido e esmiuçado para os relativamente poucos que trabalham as teorias e a filosofia da linguagem, ao mundo dos cidadãos que entre as ondas hertzianas e os bytes vão apanhando as palavras de que são feitas estas, e quaisquer outras, crónicas de opinião.
A metáfora é talvez o recurso expressivo que a linguagem humana mais utiliza. Por vezes até inconscientemente e, pasme-se, por falta de vocabulário próprio para precisar uma ideia ou uma definição. Isso acontece muito com as crianças que, com o seu ainda pequeno dicionário, lançam mão de imagens que parecem até poesia a sério, intencional. É que a metáfora consiste, num sentido lato, em usar-se um termo, ou uma expressão, ou até mesmo uma ideia – quando o nível de elaboração do discurso é mais estável e consolidado – com o sentido de outro termo, expressão ou ideia. Obviamente que se mantém uma relação de semelhança, fazendo-se o transporte de um sentido para o outro – num sentido para a criar, no outro para a decifrar - ainda que por vezes difícil de descobrir, gerando verdadeiros quebra-cabeças a quem queira entender exactamente o que se está a querer dizer. Aliás, começamos por aprender que a metáfora é, e simplificando, uma comparação sem o “como”. O que a partir daqui se pode fazer é que vai complicando a identificação de vários recursos expressivos que se podem distinguir com base nesta relação simples ou que simplificamos. Uma metáfora é uma imagem e nós sabemos como ela é tão importante.
Mas o que é verdadeiramente interessante para aqui, em meu entender, é o facto de a metáfora ser sempre uma representação simbólica de alguma coisa. E como tal, ela representa, nas dinâmicas próprias de todas as culturas, formas de regular atitudes e comportamentos próprios de grupos, dos mais locais aos mais globais. Muitas vezes, em diferentes línguas mas em contextos e referências semelhantes, utilizam-se expressões metafóricas muito diferentes, que até se tornaram expressões idiomáticas, completamente intraduzíveis, pelo menos à letra. De tão banalizada a sua utilização este e outro tipo de metáforas podem até considerar-se metáforas mortas, uma vez que a intenção do uso como recurso estilístico já lá não está. Mas normalmente contam histórias muito interessantes, também.    
Ao longo desta série de crónicas que nos levarão até às próximas eleições autárquicas, a propósito de temas desta e de outras actualidades, não haverá com certeza falta de metáforas, mais ou menos óbvias, que se aplicarão a várias circunstâncias. Como estamos, por exemplo, a assistir a esta da “geringonça”. O tempo, sempre o tempo acima do que nós fazemos, se encarregará de dizer se a metáfora, inicialmente tão negativa, não se transformará, quem sabe, em sinónimo de “coisa que funciona bem”. Ou se palavras que nada têm de metafórico, como informação por exemplo, não estão cá no lugar de propaganda e não deva ser lida como nos estando a “atirar-nos areia para os olhos”. E isto para arranharmos desde já uma metáfora, ainda que com uma imagem sensorial um tanto dolorosa que, de certa forma, nos alerta para uma atitude defensiva.