24.6.14

Cultura do panfletário com cheiro a sardinha assada

Pois lá vou ter de citar Vergílio Ferreira outra vez. Os nossos Autores são assim, muito presentes. Desta feita é para falar da festa popular maior do nosso concelho que o escritor bem conheceu, a Feira de São João que está por agora a decorrer com a pontualidade costumeira. Mas vou fazê-lo motivada pelo discurso oficial que em torno da edição deste ano se construiu e que ficará seguramente para a história (ficará?) como um panfleto simbólico deste novo (?) ciclo em que os eborenses confiaram para gerir a sua terra.
Mas vamos lá citar o Autor, num pensamento que encontrei quando procurava algo que incluísse: a fé, afinal a feira tem nome de santo; a política, o tema da feira é incontornavelmente político e toca ainda diretamente todos e cada um dos portugueses de, pelo menos, duas gerações (a dos que conheceram o antes e o depois do 25 de Abril, e os da primeira geração nascida em democracia); e uma espécie de cultura do susto, versão light do terrorismo, e escala que me parece mais adequada ao nível do assunto e dos protagonistas.
 A frase de Vergílio Ferreira é densa, afinal o homem é um Autor, ao contrário do que se espera, e que afinal apesar de tudo se acaba por ter, pese embora toda uma gramática ideológica completamente desajustada, de um texto de apresentação de uma feira onde ócio e negócio se fazem, sobretudo, em ambiente de festa. Um discurso, ou narrativa como é mais moderno dizer-se, este do panfleto, que assenta obviamente numa dificuldade auto infligida. É que justifica o que não precisa de ser justificado, pois ou há novidades ou não há novidades e justificar umas e outras, o que há e o que não há, com base num mesmo argumento é arte para poucos. E é-se por isso obrigado, para contornar o fatalismo do discurso que só parece sobreviver se se acentuar o caos para dar brilho a uma nova luz, a usar uma tática velha e previsível entre adversários já que quanto mais forte é o outro maior é a minha vitória sobre ele. Isto quando, ao mesmo tempo, se quer deslumbrar à corrida os que, às vezes eterna e dificilmente, estão descontentes com a falta de novidade, mesmo que novidade a mais possa ser algo um pouco violento. O equilíbrio torna-se ainda mais penoso de assistir quando para se brilhar se apregoa com todas as letras a atitude do “isto tem de bater fundo para ser a nossa vez”. É o que se pode ler no excerto do texto oficial da Feira de São João 2014: «Em tempos de crise, de empobrecimento e regressão social, que atingem mais e mais eborenses e portugueses, os valores humanistas da Revolução de Abril apontam novos rumos para um futuro melhor em Évora e no país.» E é uma pena, enfim, quando só a partir de um caos, real ou construído (e os eborenses e portugueses sabem bem qual é o real e aperceber-se-ão um dia do que é o construído), só assim se consegue justificar o que se faz. Feitios…

Mas vamos lá à citação publicada em 1987 onde sem meter, metendo, o bedelho em dogmas religiosos ou políticos, o Vergílio Ferreira utiliza os conceitos de fé e esperança para falar do uso que delas se faz para criar sentimentos nas massas acríticas. E é, por isso, que em poucas palavras, Vergílio Ferreira nos fala das ilusões de uma e das cautelas de outra. E que acreditar coagido pelo sentimento de medo (susto ou terror) não é ter esperança, porque esta se vai ganhando com as respostas às questões que vão surgindo, resolvidas por outros mas também por nós, porque quer os outros quer nós também criamos os problemas a resolver, ou pelo menos tentar. E diz assim o grande Autor: «A fé é uma esperança terrorista como a esperança é uma fé democrática. A fé é um acto solitário. A esperança tem de ter em conta o que a excede. Mas na primeira está a certeza e na outra a dúvida.» Vão pensando no assunto e divirtam-se na Feira.

17.6.14

Cultura da simpatia

A simpatia devia ser obrigatória quando não é inata. Não sendo, arranjamos-lhe equivalência a civismo, talvez e para arranjar terminologia académica em época de exames. Não é a mesma coisa mas já dá para passar no trato quotidiano em que pessoas têm de interagir umas com as outras. Também lhe pode valer a cordialidade, cuja etimologia até está próxima do coração, ou a atenção, mais cerimoniosa. Mas são tudo áreas afins, também com a sua dificuldade em se adquirir ou, em algumas circunstâncias, estando lá, de demonstrar. Já a simpatia tende a ser mais natural e por isso cultivá-la podia bem ser uma forma de tornar a vida em sociedade mais fácil.
O Vergílio Ferreira, que não ficará seguramente para a história com a imagem de um homem simpático, mas para quem o lê e pela forma como se afirmou no panorama cultural português isso já não interessa nada, escrevia que "Não se tem simpatia se não houver seja o que for de admiração: tem-se apenas tolerância ou piedade." Esta simpatia é a dos sorrisos e restantes gestos que não são de fachada, mas que vêm de dentro independentemente de se sentir a tal admiração para com quem se é simpático ou porque, no sentido inverso, não se sendo espontaneamente simpático o outro com quem lidamos nos “obriga” a uma atitude simpática. Essa de que fala Vergílio Ferreira será aquela para a qual muita gente de difícil trato se deve então reservar, poupando-se no dia-a-dia, em tolerar ou apiedar-se dos outros com quem se cruza ou, mais sinceramente, sendo antipático, com todos os riscos daí decorrentes.
Quem está pouco habituado a lidar com a simpatia dos outros dificilmente se torna simpático se não o for já intrinsecamente, e isto por razões várias e tantas vezes compreensíveis pois das amarguras de cada um só o próprio sabe. Lá se disfarça às vezes, e ainda bem, com o civismo, o que faz com que muitas vezes esse esforço seja meritório. Já a tolerância e a piedade de que fala o autor, e que facilmente se confundem com simpatia, são em meu entender equivalências diretas para querer lidar o menos possível com quem as sente ou pratica.

Falo também de cultura da simpatia porque tantas vezes essa característica é tomada numa forma coletiva e atribuída a determinados povos ou comunidades, e até usada no marketing turístico. E este é um assunto recorrente, nesta época do ano quando folheamos brochuras de destinos turísticos. Confesso que acho essa distinção coletiva altamente promotora de comportamentos algo xenófobos e a roçar o incentivo ao comércio da banha da cobra. É uma espécie de contrafação do que é a simpatia enquanto característica humana e, porque não até dizê-lo e esticar o universo de convivência, do reino animal. Quando assim é, a simpatia afinal não é sequer por admiração, nem mesmo por tolerância ou piedade. Não é um traço de sentimento mas uma técnica de manual. Por isso também, quando as coisas me correm mal com quem tem no seu CV essa característica de simpatia por decreto, lá consigo pensar “ao menos foi simpático”.  Sim, porque há quem ache que a simpatia é incompatível com a sinceridade, a honestidade ou a transparência e, de facto, pouco tem a ver com estas características. E se uma não disfarça a falta das outras, as outras podem, e devem digo eu, coexistir com ela sem a desvalorizar. Cultivar a simpatia é, afinal, todo um complexo programa de crescimento que não só beneficia os outros como nos faz bem a nós. Cultivemo-la, então.

10.6.14

Cultura da solidariedade

Prosseguindo às voltas e em volta do conceito de cultura, neste dia de Portugal, falarei sobre a cultura da solidariedade, algo que podendo ser inerente à bondade quase inata das pessoas, também se pode ensinar e tornar-se uma prática civilizacional na organização de uma sociedade evoluída. De certa forma, este cultivar da solidariedade, surgiu-me a propósito de alguns assuntos recentes, sendo um deles o facto de se terem passado e assinalado os 70 anos do desembarque na Normandia, Dia D que marca a solidariedade dos povos aliados e que queria aqui simplesmente evocar.
A solidariedade às vezes parece-se com os almoços, que nunca são de graça. E tal como a caridade está para o estado social, também o antepassado mais comum da solidariedade se pode confundir com o conceito, por exemplo, de favor. Relações que hierarquizam forças entre quem pode mais e menos, mas de forma não absoluta, isto é para sempre, mas circunstancial, ou seja, em diferentes momentos da vida. É esta declinação do conceito de solidariedade que o autor francês das fábulas La Fontaine evoca quando escreve "Há que, na medida do possível, prestar favores a toda a gente: quantas vezes não precisamos de quem é menos do que nós."
Este princípio da solidariedade que existe também entre os Estados, por exemplo da União Europeia, mesmo quando em alguns desses Estados se implementem políticas neoliberais que põem em causa o próprio papel do Estado, faz com que todos contribuam para uma espécie de conta, com quantias dependentes das diferentes situações económico-financeiras de cada um, de forma a que, quando um deles atravessa um período de crise, todos os outros contribuam para essa situação de emergência. Foi o que até Portugal fez, em relação à Grécia ou, numa escala maior que a europeia, aquando da tragédia do tsunami na Tailândia também várias nações contribuíram para ajudar aquele país. Claro está que estas doações são feitas partindo do princípio que aqueles a quem é doado se empenharão em recompor-se, até porque aquilo que damos agora pode fazer-nos falta mais tarde e devemos esperar para além da solidariedade a reciprocidade. É aqui que entra a história dos almoços que nunca são grátis…
Tudo isto parece-me simples de entender, quando o caminho é evitar que haja os cada vez mais pobres e os cada vez mais ricos. As pinturas murais do tempo do PREC eram muito claras em relação a esta espécie de justiça social, ainda que só se referissem ao primeiro movimento de dar e não ao outro de retribuir. E refiro-me em particular às frases como «os ricos que paguem a crise» da extinta UDP que têm agora um outro discurso mais elaborado, mas que todos continuamos a perceber, que é o de taxar as grandes fortunas.
Está bom de ver que quando se dá alguma coisa a alguém se investe nesse alguém ou no relacionamento que se tem com esse alguém, esperando-se a dita reciprocidade. Por isso nos indignamos quando vemos a Alemanha a indispor-se quando tem de ajudar a Grécia ou Portugal, como se nós com esse dinheiro não fossemos até comprar produtos exportados pela Alemanha. O que é estranho é ouvir da boca de certos governantes que entendem que os governos que estão mais folgados não estão naturalmente dispostos a ajudar aqueles que, por razões várias e nem sempre de responsabilidade própria, têm menos capacidade de governar para que os seus cidadãos tenham o mesmo bem-estar social que os outros. Mas aconteceu.
A Câmara de Évora esteve presente na discussão de uma proposta do Governo sobre a criação do Fundo de Apoio Municipal, um fundo que servirá para os municípios recorrerem em caso de dificuldade e para o qual contribuirão os municípios e o estado central. Na discussão, que ainda decorre, as partes ou dotações que cabiam a uns e a outro eram visivelmente desequilibradas, sobretudo quando pensamos em autarquias que se substituem ao estado central em inúmeras áreas, dada a relação de proximidade e conhecimento do território. Mas eis senão quando o que também suscitou dúvidas, imagine-se, foi o facto de as autarquias que estão em boas condições financeiras terem de dar mais do que as outras. Desta vez e neste caso, os ricos não estão para pagar a crise! Onde está então a cultura da solidariedade? 

6.6.14

Assuntos de Câmara - sobre o encerramento das escolas nas aldeias e a sua (não) negociação

No dia 4 de junho foi aprovada por unanimidade a moção apresentada pelos vereadores eleitos pelo PS:

Tendo o Ministério da Educação manifestado a intenção de encerrar várias escolas do 1º Ciclo do Ensino Básico, com menos de 21 alunos, em freguesias rurais do concelho de Évora, a saber: Azaruja, Vendinha, Boa Fé, Nossa Senhora de Machede, São Manços, São Sebastião da Giesteira, Torre de Coelheiros, Graça do Divor e São Miguel de Machede; a Câmara Municipal de Évora (CME), reunida em Reunião Pública de Câmara dia 4 de junho de 2014, vem reafirmar a sua oposição a esta decisão, ou qualquer outra que não siga o que consta do parecer expresso a 7 de maio deste ano, que se anexa, e enviado à Direção Geral dos Estabelecimentos Escolares do Alentejo (DGEst). Uma oposição que, por isso, decorre também da discordância com o procedimento de negociação, ou falta dela, entre a DGEst e a CME, e que parece resultar numa tomada de decisão unilateral na maioria dos casos de encerramento anunciados.

Ainda que este assunto esteja em cima da mesa desde 2010, o município, ouvindo as partes interessadas, tem impedido o encerramento de escolas numa posição consentânea com essas partes, posição assente em pareceres que, emanados do Conselho Municipal de Educação, justificaram e asseguraram a manutenção desses estabelecimentos de ensino nas aldeias do nosso Concelho, mesmo quando o número de alunos era inferior aos estipulados 21.

O encerramento de escolas, além do significado no que se vai prenunciando como a desertificação destas aldeias e a pouca atratividade para que os jovens nela permaneçam ou se fixem, tem também graves consequências na sustentabilidade do próprio sistema de transporte escolar, um problema para as crianças que vivam longe da sua escola e que se agravará com estes encerramentos, uma questão que esteve também sempre em cima da mesa desde 2010. Estas medidas afetarão igualmente a gestão das escolas para onde serão deslocadas as crianças das aldeias, o que não é um problema menor a ter em conta.
  
Urge, como tal, que a DGest e o Ministério da Educação se predisponham a ouvir efetivamente, e não como mero cumprimento de calendário, o município, ouvindo, com a posição que este tem tomado, as comunidades escolares em causa, bem como o órgão municipal competente, e a que sejam encontradas as soluções que, sobretudo em termos de segurança e bem-estar das crianças, melhor sirvam o interesse de todos.

Esta moção deve ser enviada às Juntas de Freguesia e divulgada junto da Comunicação Social e pelos meios próprios habitualmente utilizados pela CME.


Os vereadores eleitos pelo Partido Socialista

Silvino Costa

Cláudia Sousa Pereira



3.6.14

Junho religioso, popular, cultural

Junho é o mês dos Santos populares, os da casa, que saem para a rua com o chegar do calor. Diferentes e os mesmos nas diversas zonas do nosso país, da aldeia mais interior à capital e arredores, do bairro à avenida, onde há um deles sempre com festa mais rija, às vezes por razões que se perderam no tempo. Cá para mim, tem a ver com este jeitinho humano de que sempre que haja uma boa desculpa, com a bênção do santo, se possa arejar do “ram-ram” dos dias, de preferência aqui ao pé de nós mas também com o argumento de dar uma espreitadela na festa da vizinhança. O assunto prolonga-se Verão adentro, com a desculpa do santo, da padroeira ou da tradição que alarga o altar até ao adro e o transforma em recinto de festas com bailarico, febras e sardinhas.
Mais recentemente também os festivais de música começam logo em pré-Verão, tão em catadupa vão sendo que reclamam este espaço extra no calendário. Nestes mandam as tábuas onde se inscrevem as leis do negócio, porque se o entendimento do mundo se pode explicar com o divino, mantê-lo a rodar com as leis da natureza, mantermo-nos nele implica esforço humano.
Todas elas são festas que são trabalho para muitos e inegável ócio para muitos mais. Uma indústria de lazer, de espetáculo, mas também de tradição que ou é mesmo, ou se vai fabricando rezando aos santinhos todos para que pegue a moda e fique o gosto, e os euros possam continuar a chover como fogo-de-artifício no céu, velinhas que se acendem para haver motivo de voltar-se para o ano, promessa cumprida e a repetir.
O assunto, a par de uma leitura apaixonante que tenho estado a fazer de um jovem autor, Afonso Cruz, fez-me refletir sobre o conceito de cultura. Um conceito de definição tão extensa, abrangente e vária que, quem a quer hierarquizar, com critérios de geometria variável apesar da intenção científica e precisa, distingue a cultura, num lugar cimeiro de um escala difusa e ligada ainda assim a vários saberes específicos, de um outro substantivo plural, mais coletivo, culturas, saco grande para arrumar tudo o resto em aparente igualdade de oportunidades. Há ainda uma expressão “de cariz cultural”, ou equivalente, que deixa ao gosto do utilizador desse bem assim classificado meter no saco ou elevar ao nível singular. Para mim, a noção de cultura que melhor serve a fluidez do conceito, disse-o Pessoa, como outros o disseram de outras formas: «Cultura não é ler muito, nem saber muito; é conhecer muito.» Ou seja, para mim, as pessoas cultas não se medem todas pela mesma escala. Ao que diz Pessoa acrescentaria a partilha, mas isso sou eu que não sou poeta.
Ao Afonso Cruz enquanto escritor (como ilustrador já o conhecia), tive o privilégio de o ler em “manuscrito” na sua primeira obra premiada, já que fiz, com o António Torrado, parte do júri em que atribuímos o primeiro lugar unanimemente e com muita satisfação, em 2009, ao Os livros que devoraram o meu pai. Cumpriu-se o que já ali prometia e temos hoje um escritor, para além de um ilustrador e de um músico, porque o Afonso Cruz é também membro da banda Soaked Lamb que Évora já teve a oportunidade de ouvir na Feira do Livro de 2010.

Mas o que importou para esta crónica é que o último livro por ele publicado e premiado, Para onde vão os guarda-chuvas, uma metáfora da morte, nos fala dela e da vida, e das diferentes culturas de as ligar à existência humana, isto é, a religião. Um ecumenismo que é também literário, quase me atrevia a dizer, até porque o próprio livro enquanto objeto é todo ele um lugar de confluência e convocação de várias artes que ali caibam. Desconheço, e não é uma condicionante, a fé do autor, mas parece-me que o que ali temos, para além do prazer da leitura, ajuda qualquer leitor a crescer na sua própria cultura religiosa, para além da literária, claro. Mais do que as diferenças nas devoções, uma cultura religiosa nunca o é se não se confrontar, com a devida tolerância civilizacional que se espera de quem é culto, com outras, conhecendo-as. Aconselho vivamente.