29.2.16

Cem anos num instante

Hoje na Universidade de Évora comemora-se Vergílio Ferreira. Foi a 1 de março de há 20 anos que o escritor e pensador passou à eternidade. Aquela que está guardada para os que, mesmo não estando por cá, não desaparecem das vidas nem de quem os quer bem, nem das instituições que foram marcadas por eles. Deixou-nos obras de ficção onde, como bem se sabe, qualquer semelhança com a realidade não é pura coincidência, e textos onde reflecte sobre o Homem e a Humanidade e a sua condição neste Mundo por onde passa e que constrói.
A Universidade de Évora, em cujo edifício principal, Vergílio Ferreira ensinou 14 anos, rende-lhe homenagem premiando desde 1997, quando dois Professores com responsabilidades governativas dentro da instituição – José Alberto Gomes Machado, que tinha sido seu aluno no Liceu Camões, e Jorge Araújo, Reitor na altura - o Prémio foi instituído com o objectivo não só de homenagear o Autor, mas também de galardoar o conjunto da obra literária de um autor de língua portuguesa relevante na narrativa e/ou no ensaio.
Da Vida que Vergílio Ferreira pôs por escrito, a Morte é uma presença constante. Ensaios, mesmo em forma de romance, para tentar ligar as coisas umas às outras e encontrar uma justificação para factos que inquietam quem procura saber como melhor “equilibrar-se” nesta bola que é o Mundo… Em Aparição, o romance funciona como uma espécie de laboratório em que o Autor experimenta a aplicação dos princípios filosóficos que organizam o seu pensamento a uma realidade que constrói pelo discurso literário e de acordo com as tendências vigentes nos finais dos anos 50 do século XX. Talvez por isso, esta obra se tenha colado tanto às “coisas reais”: a vida de um professor, à época, na província portuguesa, em particular no Alentejo e mais particular ainda em Évora; o ambiente social e político de uma Cidade pequena socialmente e enorme historicamente; a beleza da paisagem, enfim, a Cidade de Évora. E Évora torna-se assim, com a passagem do tempo sobre a escrita e a recepção da obra, o seu motivo central. Aparição é Évora e, por muito que não agrade a todos os que a leiam com atenção, e se detenham em algumas passagens, Évora é também a Aparição.
Mas voltemos a assuntos maiores e às afirmações que Vergílio Ferreira foi pensando e escrevendo. Uma conta-corrente da sua Vida que altruisticamente partilhou connosco que o lemos, como um efectivo Mestre do pensar e do contar a Vida e os Homens. Remetido agora aos livros que escreveu e foram publicados, foi neles que em Vida conseguiu dizer o que tinha para deixar para a eternidade, é neles que na Morte continuamos a interrogá-lo, nós os leitores, sobre os significados que deu ao que lhe importava. Lê-lo e pensar no que diz é sempre um motivo de nos questionarmos a nós naquele lugar que ele evoca, classifica, e tenta resolver. Como quando fala connosco e diz: «Que importa o que erraste? Não haveria verdade nos outros sem o teu erro próprio. E assim colaboraste na harmonia da vida. Se no mundo houvesse só uma cor, não haveria sequer essa cor.» Ou quando nos alivia o medo da perda que a Morte nos traz, sobretudo a nós mesmos: «Não te entristeças por não poderes já ver o que verão os que vierem depois de ti. Porque depois de mortos, terão visto exactamente o mesmo que tu.» A mim, estas “saídas” aforísticas consolam-me e fazem-me sentir, ainda mais, parte de um colectivo sem excepções, em que o Tempo, democraticamente, nos trata a todos por igual.  
Até para a semana.

21.2.16

A lição da América

Do longo processo que é a escolha do Presidente dos EUA, sobretudo numa eleição e não numa reeleição, e a que estamos a assistir este ano, podemos aprender muito sobre o mundo da cultura política em Democracia, a vários níveis e escalas. Para além do facto de o sistema ser presidencialista e, portanto, o Presidente ter uma função governativa mais vincada do que o Presidente da República em Portugal, o modo de eleição de um ou uma candidata diz muito dos candidatos e dos eleitores, mesmo num caso em que são complexas etapas em que se vota em quem vai escolher, no final, os que vão decidir quem será a ou o Presidente. No fundo, nos EUA toda uma máquina de lobbying, redes e conexões surge mais sistematizada e escrutinável, quando todos sabemos que em qualquer processo em que se reúnem apoios há este tipo de movimentações, com maior ou menor uso de valores pelos quais se distingue o carácter da verticalidade que se espera que quem mande tenha. Por se tratar dos EUA, uma potência mundial (económica, militar, cultural) até o Papa, outro Chefe de um Estado, veio fazer o gostinho ao dedo na avaliação de um dos candidatos e em matéria onde é autoridade como poucos: o que é ser-se um bom cristão.
A maior parte das vezes, o Colégio Eleitoral norte-americano segue a tendência dos votos populares, no entanto por quatro vezes ao longo da História os delegados escolheram um candidato não escolhido pelo voto popular. A mais recente, no ano 2000, o candidato democrata Al Gore teve mais votos populares que o republicano George W. Bush, porém Bush teve mais votos no Colégio Eleitoral e acabou por ser eleito Presidente dos Estados Unidos. É complicado? É. Talvez por isso sejam relativamente poucos os cidadãos americanos que se envolvem neste processo, não sendo de participação obrigatória, o que dá que quem não se mexe para eleger quem lhe parece melhor preparado para o assunto, acaba por ser governado por quem não quer, de forma algo conivente. E pode dar, de facto, a sensação de que o que cada cidadão faz pelo assunto conta menos. Mas não. E é isso que é interessante neste processo da mais antiga Democracia do mundo, quase simbólico: é que o que qualquer cidadão de um sistema democrático, onde quem manda nesse país é quem os cidadãos escolhem para mandar, faz, diz da saúde política desse país.
Escolher o cidadão mais popular, ou que se diz capaz de ser mais popular, em vez do que é melhor político e que tem melhores condições para fazer um trabalho sério em benefício do colectivo a que concorre para presidir, não me parece dizer também muito sobre quem faz a escolha. Sobretudo se se utiliza a desculpa de que os políticos experientes são uma espécie de cidadão a evitar, como se não os houvesse, desses a evitar e com quem nós nos cruzamos às vezes, em todas as ocupações, funções, profissões.
Fazer uma escolha assim, com base num discurso de paraíso perdido a recuperar, porque há quem o utilize e promova quando mais nada tem a acrescentar até pela sua conduta, é próximo de um pensamento ingénuo escondido numa aura de inocência imaculada. Quanto a isto mesmo, a esta confusão, o Vergílio Ferreira dizia: «Ingenuidade é um modo de se ser inocente. Infantilismo é um modo de se ser idiota. Faz a sua diferença.» E era bom que a idiotia se desmascarasse bem cedo quando, em passes de oportunismo, se candidata a ser poder. 

16.2.16

Sabermos da nossa Vida

A discussão sobre a eutanásia ou o suicídio assistido é um assunto fracturante, tanto na esfera pública da sociedade como no lugar mais íntimo da consciência do indivíduo. E como acontece com todos os temas fracturantes, quer-me parecer que requer, mais ainda do que nos outros, que se pesem os prós e os contras nas implicações de legislar sobre o assunto. Apesar de já ter a minha opinião formada e segura, pareceu-me bem reflectir com os que me ouvem e lêem sobre algumas hipóteses para argumentar sem alimentar ódios nem acusações de parte a parte, que é o que as campanhas para os referendos acabam por acicatar na guerra das audiências e dos shares.
Para começar a reflexão precisamos de perceber que não se está a avaliar entre uma coisa boa e outra má, mas entre duas coisas más. Tratar-se-á por isso de uma escolha da qual se pode, eventualmente e sem ânimo leve, permitir a menos má. Depois é preciso percebermos que se trata de lidar com a Vida e de como a pensamos do princípio ao fim, passando pelo meio. Perceber como pensamos a Vida na relação da nossa com a dos outros, para além do seu valor absoluto que ideologias ou crenças nos ensinam e constroem enquanto pessoas. Trata-se ainda de permitir, sem promover, que se escolha fazer um dos caminhos para chegar a um mau sítio, de uma maneira ou de outra. Um sítio inevitável, de que temos consciência desde quando começamos a usá-la para nos pensarmos, o que não acontece com mais nenhum animal. E como os há, aos animais, que reagem instintivamente, ora lutando contra o fim quando pressentem o perigo, ora em situação idêntica, por exemplo matando as suas próprias crias. Padrões de comportamentos naturais.
Depois, teremos de perceber que só estamos a colocar esta opção porque é a mesma ciência que nos permite prolongar a Vida que nos permitirá interrompê-la, de forma apesar de tudo mais civilizada do que levar um velho às costas até às montanhas (uma lenda retratada num filme japonês de culto intitulado A Balada de Narayma). O mesmo gesto contra a natureza que nos empurra do início ao fim. Não será, no entanto, de estranhar que quem se dedicou, pela ciência, a salvar vidas objecte a pôr-lhes fim. Não o fará pela ciência mas pela fé, que é outra maneira de usar a consciência e ficar de bem com ela.
Finalmente, e ponto que me parece ser o mais importante para uma decisão a aplicar em assunto fracturante no âmbito da sociedade, o facto de se legislar despenalizando e dando condições, neste como noutros casos em que a ética porque se trata da Vida está implicada, não obriga ninguém a optar pela situação despenalizada.

Vergílio Ferreira, quando iniciou a escrita do romance Para Sempre, escreveu no seu diário: «Salvar a vida, até onde é possível, mesmo à custa da morte. É o acto do suicida.» E é em nome de uma dignidade que se encontre em determinada situação ao não prolongar uma inevitabilidade para além dos limites que se deseje, porque o sofrimento não é um hino à Vida, que eu concordo em que pôr-lhe fim conscientemente será, para alguns, esse único acto de dignidade que se conquista e que, graças à evolução da civilização, se lhes pode permitir. Por muito que me custe e doa lembrar os que, antes do Tempo, foram arrancados à Vida. 

9.2.16

Papagaios Sem Penas 3

Como vos propus, vamos concluir esta tríade de crónicas sobre o mundo da política e de como ele depende muito da comunicação e do uso das palavras no discurso, com todos os riscos de poder tornar-se uma crónica com efeito boomerang, risco de quem se predispõe ao escrutínio em espaço público.  
Quem vive da comunicação como profissão vive, naturalmente,  com a preocupação de tratar os assuntos para que sejam consumidos da forma mais eficaz e não olhando, vezes demais, aos recursos utilizados e descurando o impacto que a qualidade da informação possa ter na qualidade da vida cívica. Discursos inflamados, engraçadinhos ou com chavões até à náusea fazem-nos certos políticos em campanhas eleitorais, tornando-as tantas vezes risíveis; discursos elípticos, ambíguos, com equívocos, a comunicação social trata de os fazer com maior ou menor habilidade; os discursos muito pormenorizados, em geral, os governantes evitam-nos, primeiro porque têm mais que fazer, depois porque sabem do perigo de um deslize; já as oposições refinam métodos e meios para que nunca se deixe de fazer os vários tipos de discurso: o uso dos detalhes e das insinuações numa mistura com as generalizações apocalípticas que oscilam entre o fait-divers e a boutade. Resta, então, aos muitos mais que não são nem uma coisa nem outras, escolher estar atentos ou estarem-se nas tintas quanto ao teor da informação que lhes chega.  
Por muito que os actos e as medidas de quem governa é que, de facto, interfiram com a vida dos cidadãos, estes actos e medidas vêm acompanhados, como numa máquina que é usada por quem não a fabricou, de uma espécie de manual de instruções em forma de declarações ou discursos. Ora, como tantas vezes acontece nesse mundo industrial e dos negócios, e  com a péssima qualidade das traduções desses manuais de instruções, há muitas notícias que dificilmente nos ajudam a funcionar com a realidade de forma a compreendermos bem como usá-la. É assim que tantas notícias que estão na secção da informação podiam era estar na de opinião ou propaganda. Mas é também assim que muitos se põem a jeito, porque lhes dá jeito, para serem lidos desta forma.
Se nas duas últimas semanas o teor – conteúdo e tom – do discurso político pelos comentadores foram o alvo das minhas reflexões, esta semana centro-me na dos próprios actores principais da política, e da local, não sem antes colocar algumas perguntas. Quando os cidadãos votam, será que o fazem depois de avaliarem as propostas governativas ou porque avaliam as práticas já exercidas? E quando avaliam o passado, será que se lembram de tudo e relacionam todas as condicionantes para o avaliarem ou só se lembram do que lhes diz directamente respeito ou do que acabou de acontecer, que lhes agradou ou não? E quantos de nós nos lembramos dos discursos – não a prometer mas a acusar - disto ou daquilo aqueles de quem nos queremos distinguir? Às vezes põem-se a voar papagaios que, mais do que ganharem altura e voarem controlados pelos fios que lhes demos, voam à solta. Os fios, transparentes e resistentes, nunca parecem lá ter estado e por isso dá para fazerem de conta que lá continuam…
Recordo-me de um episódio que vivi, em torno da piada que se diz a propósito do assunto que se quer menosprezar, para ilustrar como certas palavras ou uso delas, mesmo tão influentes, se perdem ou apagam quando a responsabilidade do fazer se sobrepõe à do dizer: se achei graça quando em 2010 tinha responsabilidades executivas e aconteceu um festival de música pop que a oposição baptizou com humor “festival da rotunda”, não posso deixar de seguir a mesma onda de bonomia e ser a minha vez de falar do “cinema do canteiro” que promete nascer em Évora em 2016 pela mão da então mesma oposição e agora executivo. E é bom de ver como este tipo de conversa, por mais divertida que seja, não explica nada às pessoas sobre as circunstâncias em que surgem propostas e problemas.
Recordo-vos o que disse o escritor e pensador: «Afirma com energia o disparate que quiseres, e acabarás por encontrar quem acredite em ti.» E é disto que vamos ter de nos ir livrando, ok? Como? O ambiente comunicacional das redes sociais pode ser o princípio, mas a solução parece-me que está só num lugar: na Educação. 

2.2.16

Papagaios Sem Penas 2

Com Presidente novo a preparar a posse depois de uns longos cinco anos, quatro dos quais com um Governo, uma maioria e um Presidente da mesma cor, todos sob a capa rota de um alegado rigor, o que só agora vai sendo tornado público apesar de já todos sentirmos há muito o ar a passar por entre os furos, aqui vem uma crónica que, como tinha anunciado, se socorre novamente do conselho de Vergílio Ferreira «Afirma com energia o disparate que quiseres, e acabarás por encontrar quem acredite em ti.».
Com o resultado de eleições presidenciais, de facto podemos aceitar que todas as críticas ou todos os louvores se façam a uma determinada pessoa, como demos conta com todo o zurzir até à náusea no Presidente Cavaco, que estava já quase moribundo nas suas funções. A fulanização é, pois, inevitável. O que me parece que para o que já não há pachorra é para continuarmos a ouvir os mesmos argumentos de teatro vaudeville de há décadas, por parte da grande oposição ao actual Governo, suportado por três partidos ainda assim diferentes em muitos princípios ideológicos e, sobretudo, na interpretação e aplicação que fazem desses princípios que teorizam sobre o exercício da governação.
Torna-se curioso e interessante assistir, no actual contexto, à argumentação de uma esquerda que, por muito que se divida, quer-me parecer que se se continuar a radicalizar, arrisca a nunca mais sair como candidata credível para governar. Nem como parceira de uma equipa em que os princípios que os unem se fragilizem por reforço de outros, que os separem, tantas vezes bem pouco relacionados com o bem-comum e muito mais com determinada clientela (uma coisa comum à esquerda e à direita, aos de cima e aos de baixo). Mas dizia: se é interessante ouvir a argumentação das esquerdas, tem sido confrangedor assistir às intervenções em vários lugares e através de diversos meios de ex-ministros. E é claro que se nota ainda muito mais no discurso de quem é oposição.
O clubismo continua a vigorar não apenas no Parlamento, mas nos comentadores seguidistas disseminados um pouco por toda a comunicação social, formal ou informal. O spinning e os soundbites continuam a seguir uma prática que, ficou provado nas legislativas, devem ter mais efeitos endémicos nos Partidos do que pesam na decisão dos eleitores. É que nem o discurso a espremer a situação dos pobres, nem o de acusar-nos a todos de esbanjadores que é preciso reeducar como se de corrécios nos tratássemos, parecem ter tido, em Outubro passado, muitos efeitos sobre o eleitorado vulgarmente até aqui encarado como uma horda que vai toda atrás do mesmo. Esses que eram assim, quer-me parecer que são os que já nem votam, passando de crédulos a completamente descrentes…
Acautelem-se, pois, os que usam as palavras como ferramenta ou instrumento das suas funções, porque elas têm de começar a recompor-se em discursos em que a realidade não se adapta, nem à força, ao discurso quando este se parece muito com os lugares do lazer, do entretenimento, da ficção ou do inábil lugar-comum. Eu acrescentaria ao divertido conselho de Vergílio Ferreira que, actualmente, será preciso procurar muito mais para encontrar um crente no disparate. É que eu ainda tenho esperança que a tendência do percurso desta nossa Humanidade, e portanto a reflectir-se no comportamento das novas gerações ou dos que as têm sabido acompanhar (porque os há e aqui ao pé de nós), se nos faz mais distraídos com outros assuntos para lá da governação, faz-nos menos dados a confiar, quando somos chamados a intervir, no que pareça ser próprio de outra esfera diferente da desta séria matéria.
Mas vamos continuando a acompanhar o que faz quem nos governa e quem se lhe opõe, agora que as campanhas terminaram, as câmaras da televisão e os microfones regressaram das arruadas. Façamo-lo com espírito crítico, imaginando-nos nos sapatos de quem tem responsabilidades, sejam elas na governação ou na oposição, sem deixarmos de olhar o mundo e o futuro com os nossos próprios olhos, ou melhor com as nossas celulazinhas cinzentas que, como dizem alguns, “Deus nos deu”.