24.11.20

De-bate-em-bate

 Começaram as entrevistas com os anunciados candidatos às próximas eleições, prenúncio de debates. Se os debates fazem parte de uma regra do processo eleitoral, estas entrevistas surgem como aperitivos que os órgãos de comunicação social (CS) servem. Servem a si próprios, aos potenciais candidatos e, por último, aos eleitores ainda mascarados de estimável público.


A mais badalada foi a entrevista de há uma semana, feita por Sousa Tavares a Ventura. Tratou-se de um exercício aplicado do conhecido enunciado aforístico, feito do saber com experiência em imaginar cenas de espectáculo de Bernard Shaw. É o enunciado que diz: «Nunca lutes com um porco. Primeiro, porque ficas sempre sujo e, segundo, porque o porco gosta.».

Só a vi depois de ler vários comentários que lhe foram feitos. E até piadas proféticas, das que prevêem o que se seguirá transformando fraquezas ou controvérsias em motivo de gozo. Às entrevistas que se seguirão aplicarei o mesmo método (ouvir sobre e depois ver), pois é o que me dá mais algum entusiasmo para assistir a esta espécie de sessões de pugilato verborraico. Fico preparada para o que vou.

Mas mesmo tendo-a saboreado requentada, ao assistir e falar agora da entrevista, servi-me daquele aperitivo e ajudo a dá-lo ao canal de televisão. É assim que funciona o negócio da CS - visualizações e partilhas - e sem o qual a Democracia resistiria muito mais dificilmente como sistema. E é, por isso, que lhes devemos exigir tanto, à CS, como aos que exercem poderes executivos, políticos e judiciais.

O que aprendemos com aquela entrevista é que não vale a pena tentar-se descer ao nível do interlocutor. É que mesmo que a raiva puxe pela tentação de ir até àquele lado do ringue, a habilidade está em entender a linguagem mas não ceder à tentação de a usar. Vamos ver quantos são os jornalistas que vão conseguir trazer para a seriedade do cargo a que concorrem os entrevistados. Dar a perceber quais os que apenas ali estão muito menos pelo interesse público, do que pela chico-espertice própria dos fura-vidas.

Certo é que uma outra entrevista dada, há um par de semanas, pelo ainda Presidente e expectavelmente futuro candidato ao mesmo cargo, não serviu propriamente de exemplo, cheia de atropelos, ultrapassagens e “borrifanço” olímpico ao entrevistador. A menos que fosse um treino para debates futuros, o que não me deixa mais tranquila quanto ao nível dos mesmos. Jornalistas, ponham-se em guarda, que a Democracia convoca-vos.

17.11.20

O péssimo romance das ilhas encantadas

 Jaime Cortesão, médico, político, escritor, historiador, que viveu entre 1884 e 1960, dedicou a jovens leitores um livrinho com lindíssimas ilustrações de Roque Gameiro, sobre as ilhas portuguesas, com especial relevo para os Açores. Nesse “O Romance das Ilhas Encantadas”, a história recua até quando, “Em tempos que já lá vão um bispo nigromante encantou as ilhas do grande mar Oceano”. O enredo dá muitas voltas, a maior parte delas até já conhecidas noutras versões de modelo semelhante e com final, por isso, previsível.


O bispo nigromante, ou seja conhecedor de artes que iludem os comuns mortais, queria tanto preservar como lugar paradisíaco aquelas sete ilhas açorianas, que as tornou invisíveis a todos os marinheiros e exploradores, até que uns especiais seres, netos do Oceano, as conseguissem devolver ao resto da Humanidade. E o que acontecia nos Açores, não mais ficaria só nos Açores.

Rui Rio resolveu fazer o tempo andar para trás. Ou melhor, tentou fazer o tempo andar para trás. Julgando-se com artes para fazer da amizade florida do seu Partido com o Chega um assunto invisível para o resto do País, arriscou-se a abrir o caminho para que os ventos do fascismo regressem, em amena brisa que disfarça nela um perigoso e maligno nevoeiro.

Os que, como uma parte significativa do Partido de Rio, mais do que movidos pelo interesse nacional e civilizacional, se movem para combater o Partido rival que pertence ao ainda resistente arco da governação, apontam a precedência da Geringonça. Por muito sonante que seja a lengalenga, por mais fragilidades que, de facto, a Geringonça possa ter trazido a um modelo de governação pouco habituado a estas composições de geometria variável, o impacto aberto pelo caso açoriano a nível nacional não é idêntico.

Retomo a conhecida anedota da formiga e do elefante que, relatando que caminhavam juntos, leva a formiga a olhar para trás e a exclamar: “- Olha a poeira que nós fazemos!”. Ao contrário do que aconteceu com a Geringonça em que foram as formigas que ficaram a perder ao chegarem-se ao elefante, fugazmente, com mossas internas que têm tido dificuldade em desamolgar; nesta traquitana, foi o elefante quem ficou ferido, esperemos sinceramente que não de forma irremediável, pela formiga rabiga. Nas ilhas encantadas está a acontecer um péssimo romance. Que seja de edição limitada, rapidamente esgotada.

10.11.20

Os Outros e o Papa

Vou falar de religião. Sei que é assunto delicado, motivo de desavenças e guerras, sobretudo quando discutido entre crentes. O que me aconchega o ego por já não ter de tomar parte nem partido, mas me entristece porque vem comprovar, mais uma vez, como uma boa ideia pode ser tão estragada. A religião é, na minha opinião em que não estou desacompanhada, o resultado de um caminho para organizar a vida dos seres humanos, guiados por princípios que promovem, naturalmente, o que se convenciona chamar o Bem. Admito, por isso, sentir alguma pena por não conseguir apaziguar o meu espírito, nas tantas vezes em que se desassossega, depositando a solução e o destino na vontade de um Outro superior e todo-poderoso. Ele apazigua-se, mas requer muita energia e paciência.

Também aprendi, neste pequenino mundo religioso de marca judaico-cristã que conheço, e desta feita com os cristãos protestantes, a não idolatrar seres humanos, mesmo que algures no seu percurso tenham feito muito e merecido um lugar especial num qualquer altar. Isso e a ideia de que não há cá extrema-unção no final de uma vida de sacanices que garanta, em jeito de repescagem, um lugarzito razoável no Além. Essa ideia do arrependimento final, que até “passa” bem, dá cabo do trabalho de quem tenta convencer por ter a responsabilidade de educar para uma vida de justeza, não sem sacrifícios ou revezes, e se vê ultrapassado por “sacanas de outra lei”. Enfim, nada de mais se comparado com o que por aí se faz em nome da religião, ou da apregoada relação “segurança vs religião”, e revela que por trás de cada justiceiro-criminoso desses está uma turba que acha até muito bem...

E resolvi falar de religião porque a lição da história nos ensina que esta acaba sempre por se misturar com política. Quer Trump, quer Bolsonaro foram legítima e democraticamente eleitos para os cargos que ainda ocupam muito à conta do uso da religião, ou de uma das múltiplas formas de viver a religião, que tendo origem no Protestantismo encaminhou a maioria do seu rebanho no seu voto. Igrejas que se multiplicam para abarcar almas amedrontadas reclamando orientação. Congregações sem liderança que evite derivas discricionárias e de interesse comum duvidoso. Sem uma chefia forte e influente no palco do Mundo, como a dos católicos mesmo com um passado de que não se podem orgulhar, essas polimorfas estruturas descendentes do Protestantismo nem sequer têm a hipótese de fazer sair do buraco quem conteste o líder e se sujeite ao julgamento dos pares.

A mim, nada disto me incomodaria muito, não fosse dar-se o caso de estas igrejas encontrarem figuras homólogas do Papa em cada paróquia ou palanque. E estes se constituírem em Trumps e Bolsonaros, ou seja, líderes idolatrados, o que a sua própria congregação deveria recusar por princípio. Ao menos havendo um Papa, posso sempre dar umas boas gargalhadas quando oiço católicos praticantes, como o Dr. Ventura a proferir alarvidades ou a retorcer a conversa para contestar a postura, lá está, cristã e por isso institucional, do seu líder. E partilhada por muitos e sérios protestantes. Querem lá ver que o André um dia destes descola das Lajes e vai a Roma despentear o Papa?

 

3.11.20

Os olhos postos a poente

 É durante o dia de hoje, 3 de Novembro do aziago bissexto ano de 2020, que acontece mais um facto capaz de alterar o rumo do Mundo político. Não será uma catástrofe natural, muito embora se dê num contexto de catástrofe criada pelos hábitos sociais com impacto no rumo natural da vida do ser humano e outras espécies. Falo, claro, das eleições nos EUA e na possibilidade de os seus cidadãos emendarem a mão que escolheu um indigno ser humano para comandar o País há quatro anos.


Fui das que achou que Donald Trump conseguiria ser transformado num homem civilizado pelas instituições com que teria de lidar. Como outros, enganei-me redondamente. E isso, ao fim destes anos, disse-me pior das instituições do que de Trump, e lamento-o profundamente.

O que poderia ter sido uma encenação a sério para enganar quem acha que para comandar o circo é melhor ter o palhaço rico, muito menos interessante que o palhaço pobre, do que o director do circo, afinal revelou-se uma simples vitória da incompetência em todos os níveis, sobretudo naquele em que se sobrepõem outras características das personagens à competência necessária para exercer certos cargos. Os Republicanos bem podem limpar as mãos à parede, depois de terem fabricado não apenas o candidato, como por não o terem sabido controlar na dignidade que se devia exigir da sua magistratura.

Isto é coisa que acontece muito mais do que parece, apenas com impactos menos estrondosos do que este da presidência dos EUA. Menos estrondosos, mas não menos prejudiciais para as instituições e quem nelas trabalha. Acontece quando candidatos a geri-las são levados ao colo por uns, ou cuja ascensão é uma mera pro forma ou, por assim dizer, um alegre e solitário passeio no parque. Não basta querer muito e demonstrar disponibilidade, não basta prestar-se a ser instrumento para outras lutas, não basta ter dois dedos de testa e uma família influente ou amigos bem posicionados. Tudo isso pode e importa muito para tornar a vida mais fácil até se chegar ao desejado lugar altaneiro, mas, se sobrar a incompetência, de nada valerão, à instituição que se espera que gira, todos esses catalisadores.

A competência de quem lidera mede-se também pela competência da equipa que se escolhe para ajudar ao governo (ah! sim, que as más companhias duram muito para além da adolescência); mede-se pela capacidade de equilibrar o desejável com o possível (e sim há inevitabilidades na governação, não vale a pena enganar ninguém dizendo que não as há); e mede-se com a capacidade de transformar a famosa empatia num sentimento político, e por isso relativizado pela escolha da resolução de um problema que não crie outro maior, em vez de a entender, à empatia, ou como um substantivo concretizado noutra palavra bonita que só serve para consolar sem resolver, ou, pior ainda, num jeitinho a uns que prejudica outros e só contribui para o desequilíbrio e o desgoverno. Ninguém disse que governar era fácil, ou se o disseram era porque queriam enganar quem ouvia, desatento, e com os olhos postos noutro lugar qualquer.