26.1.21

Siga a luta

 O balanço da campanha está feito. E o meu voto, matemático, juntou-se talvez a votos militantes e a votos simpatizantes, mas assumiu-se como um voto sobretudo antipatizante. Teve um ténue efeito, a antipatia que escolhi, no círculo eleitoral em que voto. Enfim, parece que teremos de aprender que da moderação se colhem frutos com muito menos hipóteses de serem venenosos.


Reposta a normalidade do calendário político-partidário, voltamos à pandemia que, de resto, nunca deixou de estar debaixo do olho, e do faro de quem a procurou como alarde para continuar a criar factos e a proporcionar o triste espectáculo de ver gente a dizer coisas como se tivessem toda a informação para o fazer com credibilidade. A sério que às vezes me apetece muito comentar determinadas indignações muito doutas com um “Há-de V.Exa. perceber muito desse assunto!” Claro que só isto não se faz, sob pena de estarmos a responder à ignorância com grunhice, o que se está a tornar mais comum do que seria desejável. É preciso gastar (ou melhor, investir) muito tempo e energia a argumentar e contra-argumentar, correndo o risco de não se ser ouvida, ou achar que é tudo muito estratosférico ou lírico. Enfim, o habitual quando se valoriza mais o capital de queixa do que o esforço na solução. É que há coisas que têm a sua complexidade, ora essa! Dou um exemplo: não tendo que ver com as circunstâncias pandémicas, não tendo a exigência de uma gestão nacional, há universidades em que os estudantes têm de esperar até quase à véspera do primeiro dia do semestre para saberem o seu horário. Como pode, quem gere este tipo de instituição, apontar o dedo a hesitações de nível nacional e internacional com virulência e escárnio?

Regressando à maldita COVID19 e às eleições, a luta, que nos espera, que não nos larga e vai fazer não tarda um ano, terá de contar com tantos boicotes como os que, por razões várias, ignoraram o voto como um dever. Cada um à sua maneira, abstencionista e negacionista deixam caminho aberto a que outros lhes tratem da saúde. E alguns, não tratando, ajudam muito sobretudo a empatar. Ou será só a disfarçar a sua incompetência?

19.1.21

De regresso, nem de caras, nem de cruz

 Como previsto, lá regressámos ao confinamento por decreto. Como num conflito com várias partes envolvidas, escusado será andar à cata de um só culpado. Como num assunto sobre o qual não temos toda a informação existente ao nosso dispor, escusado será aventar alternativas a quem a tem mais completa. Como numa evidência sem necessidade de explicações, escusado será imaginar sequer que, na tomada de qualquer opção com danos colaterais a prejudicar também quem tem de optar, o que houve foi só mesmo intenção de prejudicar.


Resta-nos, por isso, cumprir para que o prejuízo acabe mais depressa. Não parece difícil de entender e, no entanto, parece despertar em muitos a absoluta certeza de que fariam muito melhor. Desconfiança todos teremos, a partir do momento em que prestamos atenção aos comportamentos que nós, e por isso também os outros, tantas vezes, até inconscientemente, arriscamos, e não vale a pena tapar o sol com a peneira. Do excesso de velocidade, ao atravessar fora da passadeira, quem nunca tiver pisado o risco é porque nunca saiu de casa.

E já que é para sair de casa, que valha a pena. Tenho para mim que votar é uma das boas razões para o fazer. Ao direito conquistado por sociedades progressistas gosto de corresponder com o dever de um acto cívico. Não devendo apelar ao voto em nenhuma das pessoas que se auto-propuseram para serem presidentes da nossa República, levando com elas uns quantos milhares de assinaturas apoiando-as, apenas me resta uma confissão. Estas são as eleições presidenciais em que mais dificuldades tive em decidir o meu voto. Mas já o fiz, antecipadamente, não fosse o diabo Corona tecê-las nestes dias, e aguardo ansiosamente o serão de dia 24.

A decisão foi, pelas várias dúvidas, matemática. Nem de caras, porque nenhuma dessas pessoas representará tudo o que gostaria de ver no mais alto cargo da Nação. Nem de cruz, porque prezo demasiado o voto para o desperdiçar. No serão de dia 24 logo saberei se as contas me saíram certas.

12.1.21

João Cutileiro (Évora, sem título)

 Há uma semana a notícia da morte do João Cutileiro apanhou-me de surpresa. Mesmo sabendo-o já tão fragilizado, acreditei que aguentaria mais uma batalha. A última troca de palavras foi por escrito, e por isso breve, a contrastar com a tagarelice boa que gostávamos de fazer de quando em vez. Não me despedi dele com uma tagarelice e isso custa-me agora.


Também me parece que a partida de Cutileiro, depois de Mário Barradas há 10 anos, faz com que Évora se desfaça da qualidade de certas cidades de serem identificáveis como lugar vívido de quem a escolhe como ambiente propício à criação artística, por vezes regressando às raízes, e leve consigo para o resto do Mundo o reconhecimento e o seu nome. Évora arrisca-se a tornar-se cemitério de tempos gloriosos, mesmo que estes se colem a glórias de pessoas que não são de Évora mas que a escolheram com um afecto nem sempre recíproco.

Uma vez o João disse que gostaria que na sua morte eu lesse a “Canção de Guerra” do “primo”, o meu primo, José Régio. É o que farei hoje: ler o longo poema que o João Cutileiro sabia de cor e me recitou mais do que uma vez. Afinal, João, tu também deste voz às pedras que esculpiste. Como um Poeta. Obrigada por teres existido, tu que foste também para mim o João da tua Margarida, obrigada por existirem na minha vida.

“Lá pela noite morta,
Passaram salteadores à minha porta.
E os mimos de perfume, forma e cor do meu jardim
Que o meu sangue alimentava,
Mos destroçaram, ai de mim!
Mos destroçaram num furor de cobardia brava...
Levanta-te, minh’alma!
Eles armam-se, estão ébrios, são grosseiros...
Mas quem frágil e só, não é temível,
Se defende os seus filhos verdadeiros?
Deixá-los alardear de vencedores,
Os brutos salteadores dos teus canteiros.
Que tu és invencível!

Lá pela madrugada
(Erguera-me, e saudava a aurora perfumada)
Levaram-me a sentar praça,
Deram-me um número,
Uma farda e uma cor baça...
Levanta-te, minh’alma!
Não te acabrunhe a mochila,
Nem o brutal comando ou a cega marcha em fila.
Canta, baila, sorri.
Serva livre de Deus,
Filha dos céus!
... Que o batalhão há-de ir atrás de ti.

Lá pelo anoitecer,
Quando eu principiava a estarrecer,
Monumental,
Inofensivo,
Trouxeram-me comendas e medalhas...
Levanta-te minh’alma!
Grita-lhes que o laurel decorativo
Das suas homenagens
Não serve aos que lutaram em batalhas,
Andaram em viagens,
Penaram por incógnitas paragens,
E caem, quando já não podem nada,
Sobre a sua própria espada...

Lá pelo tempo adiante,
Quando, sobre os meus restos, o Aqui jaz
Pedir padre-nosso e avé-maria ao caminhante
E a caridade dum repousa em paz
Todos, pensando que eu os não ouvia,
No duro chão que o musgo morde, ergueram
Uma jaula de ferro e alvenaria...
Levanta-te, minha alma!
Deixa que os mortos fechem os seus mortos
Nos sepulcros caiados da cidade.
Contra tudo o que, vivo, já morria,
E, morto, ainda se aterra,
E pede avé-marias e confortos,
Declara a santa guerra
Da tua eternidade!”

5.1.21

Ciência, Senciência e Sensacionalismo

 O 2020 despediu-se como foi: um ano em que todos fomos unidos pela primeira grande pandemia do século da comunicação global. Tivemos quase simultaneamente o início da vacinação que permitirá, em princípio, o fim da COVID19 e um extermínio de 540 animais criados numa zona que existe para que nela se matem animais por diversão e não para subsistência e equilíbrio do ecossistema natural. Um crime, já que nem sequer se cumpriu a lei que implica a actividade, a que se chama “montaria”, e que revela bem o ecossistema de mercado em que vivemos.

Foi todo um ano em que as sensações estiveram à flor da pele, com muita palavra e pouco toque. Palavras a que se acrescentaram as incontornáveis imagens, de preferência móveis e sonoras, com efeito formalmente sensacionalista. Não já o sensacionalismo na sua acepção inicial que se prende ao facto menor exacerbado, mas à sua banalização com casos sérios que deveriam prender pela necessidade de agir com ponderação, de forma a que o ruído não aborte a precisão do resultado que evite perpetuar-se o crime, ou a tradição desajustada ao progresso da Humanidade.
Caminhamos, se assim continuarmos, ou a favorecer ambientes em que se tem de agir com discrição que pode descambar em coisas “às escondidas” e, por isso, pouco transparentes, ou a contribuir para deseducar quem está mais vulnerável a este novo sensacionalismo. Sob pena de, se não evitarmos confundirem-se as vozes da razão com as vozes da emoção, ambas com lugar muito importante em momentos e circunstâncias próprias, sermos arrastados por correntes, tão perigosas como hipócritas, de contradição e desumanidade. Falo de tratar com o mesmo grau de indignação, traduzida em discurso emotivo, a morte de um negro americano ou um branco ucraniano às mãos de figuras que representam a autoridade, com a chocante imagem de um troféu de caça ilegal.
Pede-se a quem lida com as Ciências Sociais e Humanas que mantenha o mesmo rigor na sua missão de educar a sociedade, colectivos múltiplos e difíceis, sem ceder à tentação de, em vez de as transformarem em massa crítica, as manterem como turbas ululantes. O mesmo rigor que se pede à Ciência que nos trouxe a vacina contra o SARS-CoV 2 e que esperamos não vir a ser desviada por interesses corporativos. A seguir ao choque e indignação que causa o chocante e o indigno, pede-se a reflexão que as confirme para além da emotividade óbvia. Precisa-se que, depois do choque, se contribua para o reverter em mudança de atitudes, mais do que ficar sem palavras ou compor uma pungente elegia, por mais comovente e bela - e úteis - que sejam o silêncio e o lamento. Pede-se que a Ciência e a senciência não se deixem arrastar pelo sensacionalismo.