31.10.23

Ouvir até ao fim

As reacções às declarações de António Guterres que as acusam de serem inapropriadas e até perigosas, são bem o espelho do pior que a leveza contemporânea faz com a comunicação, seja esta social ou individual. Ninguém parece ler ou ouvir nada até ao fim, muitos descontextualizam o que lêem ou ouvem quando retransmitem conteúdos acabando por distorcê-los para que caibam na sua opinião. Ou forçando, inclusivamente, a ideia de que perceber esses conteúdos de uma determinada maneira é estar a assumir uma trincheira.

Aprender a ouvir tudo até ao fim é um bom treino para começar a ler mais do que só saber juntar sílabas e tirar alguma informação a partir desses enunciados. Os textos têm contextos e pretextos e saber ouvi-los, mesmo lidos em silêncio, é fundamental quando se procuram os seus sentidos. Sobretudo quando se pretende criticá-los, ou aprender um pouco mais sobre o que nos dizem.

Saber contar histórias, as que soltam textos de livros ou os guardam na memória, é por isso ofício a considerar muito. Quem o faz sabe escolher o texto da história certa para o lugar, o tempo e os ouvintes que estão ao pé de si. Nem sempre consola, muitas vezes inquieta e desinquieta, deixa gente que, presa à voz que ouviu até ao fim, a pensar. Pensar a partir do seu lugar, mas também do lugar dos outros, assim se tenha vagar para escutar entre as palavras que se ouvem até ao fim. Para que não haja tresleituras, para que não se desrespeite quem fala para dizer e não para odiar.

Amanhã, dia da Universidade de Évora, há uma contadora de histórias que vai receber um Prémio na cerimónia anual que marca o início solene do ano lectivo. A Bru Junça sabe contar histórias, ó se sabe!, porque aprendeu a ouvir e a ver os outros e os lugares. A história da vida da Bru vai poder ser contada durante muito tempo pela Universidade que lhe reconheceu o talento e o valor. A história da Bru vai ter um início mais completo do que as das histórias que conta e que nos envolvem e ensinam a escutar até ao fim. A história da Bru vai começar assim: “Era uma vez, era uma voz…”.

Parabéns, Bru. E obrigada por me ter dado a oportunidade de fazer a proposta que, ao dar-lhe justamente o Prémio, deixa na nossa Universidade a sua marca: a que nos ensina a ouvir até ao fim, com vagar, a pensar com critério, sem que nos deixe esquecer que aqui temos de aprender também com o coração. Como faz quem tem à sua frente 193 pessoas-histórias a quem tem de dar voz para que não se desmorone tudo, como numa turma, ou uma plateia, irrequieta e belicosa.