30.5.17

O código de Manchester

Estou quase a acreditar num milagre. Incrédula rendida que sou perante todas as razões tão bem montadas que justificam a existência de uma entidade superior que nos comanda a Vida, oiço-as com atenção quando dizem respeito ao uso que fazemos de um livre-arbítrio que nos terá sido concedido a todos, nós os seres humanos, indiscriminadamente. O livre-arbítrio é o espaço e o tempo que, nessas narrativas e seus comentários, uma qualquer entidade superior nos concedeu para que nós, os seres racionais, pudéssemos, dentro das nossas impostas e fatais limitações, escolher como utilizar o nosso tempo em Vida e o caminho que lhe vamos dando. Fácil acreditar nisto, quando se percebe o que isto quer dizer: que “não adianta olhar para o Céu com muita Fé e pouca luta”, como diz o cantor poeta com nome próprio de anjo.
O que qualquer religião faz neste universo de que conhecemos uma parte tão pequenina, mas tão valiosa, é uma tentativa de regular a Vida que cada um de nós nela vive. E como o fazem de formas tão várias mas tão irrepreensíveis nos textos que as constituem e que são o fundamento de cada uma delas! Mesmo aquelas cujo texto circula ancestralmente num suporte apenas feito da memória que passa de boca em boca e que as outras, as dos livros e das instituições bem organizadas, tantas vezes chamam seitas, confundindo-as com o sempre presente nas suas próprias crenças tão documentadas, com o fanatismo.
Esta semana não podia deixar de falar em Manchester. E dessa noite de massacre, onde sobretudo o de crianças e jovens nos choca mais, parti para uma noite já com alguns anos (corria talvez o ano de 1999) em que de Timor nos chegavam as imagens da fuga de famílias, durante a noite, para as montanhas e em que uma criança, ao cair, se controlava num choro mudo. Tão diferente do que estamos habituados a ouvir às nossas crianças quando fazem um simples arranhão... Uma prova de que mesmo pequeninos nos habituamos a tudo, infelizmente até àquilo que está mal, faz sofrer e não devia ser uma fatalidade designada por uma entidade superior que nos comandaria a Vida. Vamos aprendendo um novo código.
É um código de sobrevivência o que se continuou a escrever em Manchester. Um código que reage ao outro código, o que também vem nas narrativas fundadoras de qualquer religião ao lado da crença que dá muito mais valor ao que encontraremos depois da Vida do que durante a Vida. Um código de resistência a roçar a banalização, este que aprendemos. Mas um código que coopera com os outros, os das instituições, se calhar com prazo de validade, pois vamos tendendo, perigosamente, a perder a confiança com a persistência dos massacres. Uma cooperação que não pode fazer delas, das instituições, uma entidade igual àquela entidade superior em que alguns, muitos, crêem. Mas cooperar passará também por cada indivíduo, em lugares e tempos vários e com forças diferentes, fazer parte delas, dessas instituições. E a isso também se costuma chamar Política ou Cidadania. 
Estou quase a acreditar num milagre que não é bonito de imaginar, nem transmite fé, nem esperança, embora aconteça, felizmente, muito mais vezes do que certos acontecimentos, inaugurais ou actuais, em que alguns nos querem fazer acreditar, e que relatam em tão bem construídas, demasiadas vezes treslidas, narrativas. É o milagre de encontrar quem use o livre-arbítrio, a que eu gosto também de chamar inteligência, para fazer o que qualquer entidade criadora superior, a existir, deverá ter como desígnio para as suas criaturas: valorizar toda esta Vida que conhecemos, a nossa mas também, e tanto, a dos outros.

23.5.17

O mestre macaco e a língua portuguesa

Parece que um dos novos fait divers são os erros e gralhas da tese de mestrado do multifacetado líder da claque dos dragões. Aquele que é conhecido no milieu como “Macaco” anunciou: "A partir de hoje têm de me chamar Mestre". Terá passado mais ou menos despercebida esta graça cheia dela mesma, atitude, feliz ou infelizmente, cada vez mais vista nos nossos tempos. Digo felizmente porque é sinal de que os vários níveis de educação estão cada vez mais acessíveis a todos os que provem ter mérito para os obter, independentemente do berço ou meio social que frequentem. Digo infelizmente porque, para além de um sinal exterior sempre um pouco pirosamente pomposo, este alardear significa também que talvez sejam os únicos da família a consegui-lo, numa tantas vezes injusta exclusão de gerações e membros dessas mesmas famílias no acesso a essas oportunidades. Mas adiante.
O estranho que possa parecer a notícia só agora ser explorada, tendo o caso ocorrido há já alguns meses, mais precisamente em Novembro do ano passado, desaparece se estivermos atentos ao facto de o PM António Costa ter inaugurado na sexta-feira passada, semana em que o fait divers nasceu, umas instalações desportivas no instituto de ensino superior que conferiu o grau ao dito jovem. É que nem mesmo aquando do episódio com aquele clube de combate de nome Clube de Futebol Canelas de Gaia, ou coisa parecida, e de que o “Mestre Macaco” é um dos responsáveis, o caso académico cresceu. E isto, para quem queira fazer leituras mais profundas, há de ter a sua razão de ser. Mas adiante.
A tese é, parece-me, em Gestão do Desporto, como já tinha sido aliás a sua licenciatura na mesma instituição. O candidato parece ter levado a sua tarefa sempre com diligência (até porque lhe era matéria querida) o que, de facto, só pode ser provado e comprovado por quem lhe deu aulas e o avaliou, numa instituição que está para tal creditada, como tantas outras por esta Europa fora. Curioso que muitas das notícias que li na Comunicação Social mais insuspeita, onde quer que ela esteja, deram também elas mostra de muito desconhecimento das designações dos que são certificados, fazendo anteceder ao grau de Mestre a designação de Doutor em vez de Licenciado. O que tanto rigor puseram e exigiram noutros casos, curiosamente também de gabinetes governamentais, abandalharam aqui por completo. E chegamos ao que me interessa, porque é a única coisa que posso avaliar no que está disponível e circula por aí do relatório de conclusão do curso de mestrado do jovem: o abandalhamento também do uso da língua em que escreve.
Se bem que na opinião de muitos, que eu partilho sem particular militância e sobretudo por razões diferentes, o novo acordo ortográfico (novo porque “só” teve um período de discussão e implementação de 25 anos!) possa contribuir para um ainda maior abandalhamento do uso que fazemos da língua portuguesa, o que vemos são erros graves que têm pouco que ver só com ortografia. (E sim, eu sou das que acha que este AO90 podia ter sido uma verdadeira revolução ou, então, não serve para mais nada se não alimentar discussões entre o que parecem ser claques de académicos, mas adiante). É a outros níveis da gramática que verdadeiros pontapés de canhão são dados. É todo um cuidado que para tão importante obra, como o próprio aluno sente que é, não existe a vários níveis.
O abandalhamento parece, pois, estar a tornar-se um novo acordo de tolerância para justificar a vertigem da contemporaneidade, e não, não acontece só no mundo do desporto. Aliás, o que mais me tem chocado é ele aparecer, também neste uso da língua portuguesa, até em candidatos a políticos e alguns com formação superior, imagine-se, em educação. E isso sim é uma coisa digna de aldeia de macacos. 

16.5.17

O novo pacto político-ficcional

Era uma vez um jornalista de opinião de direita que gostava de ter sido governante político. Como a vida o levou para outro lado – aquele lado em que, qual Egas Moniz o Aio (procurem a lenda que também vale a pena, aprende-se sempre), os filhinhos, agora mais em número do que em género, são colocados ao serviço dos interesses dos progenitores –, o jornalista de opinião de direita optou por levar a vida junto dos bem sucedidos humoristas daquele pequenino país, mas grande e acertado com o resto do Mundo mundial e tudo. Era nessa mesma vez um governante habilidoso que sabia bem que, só às vezes, era preciso praticar a máxima “se não os podes vencer, junta-te a eles” e resolveu aceitar um pacto ficcional que lhe propunha o tal jornalista. E foi assim que aconteceu...
Certo dia, o governante, a propósito da visita de uma figura importante do estrelato mundial que move multidões, resolveu proporcionar aos seus fãs uma folga no trabalho. Era a oportunidade de estarem com aquela figura, ou no recinto mesmo, ou por transmissão directa nos vários órgãos de comunicação que, como todos sabemos, constituem suporte básico de vida de jornalistas, governantes, anti-governantes e gente que tenta ficar a saber mais do que se passa à sua volta. Se a alegria foi muita, houve, como em todas as histórias, quem tivesse achado que era uma chatice acontecer assim uma espécie de feriado convocado à laia de greve, com pré-aviso tão curto. Ora, o jornalista era um desses aborrecidos com a habilidade do governante e encontrou ali a sua oportunidade para fazer um número à maneira dos humoristas (atenção que entre quem tem humor e quem é humorista vai uma distância tão grande como quem dá umas voltas à cidade para manter a forma e a saúde e quem tem mínimos para competir nos campeonatos mundiais de atletismo!). E resolveu protestar contra o facto de aquela medida o ter deixado, naquele dia, sem o lugar habitual onde os seus filhos o passariam se não estivesse fechado para que os que ali trabalhavam exercessem a tolerante oportunidade, concorde-se ou não com ela, de sacrificar pontualmente o bem público por outro que até poderia vir a tornar-se-lhe mais útil (como as greves, que reclamam melhor bem-estar económico-social dos indivíduos, mas aqui ao serviço de uma identidade de contornos mais espirituais e invisíveis). Ameaçou então deixar os seus filhos à porta daquele de quem tanto parecia desconfiar, o dito governante da nossa história.
O governante habilidoso, e porque o era, pensou antes de agir. Imaginou um cenário de outras possíveis situações em que, por encerramento de instalações, lhe pudessem vir ali deixar hordas de criancinhas ou outros produtos (sim produtos, que é o que normalmente numa sociedade contemporânea se deixa à porta sem garantia de que lá de dentro alguém os recolha). Mas de cada vez que foi pensando essas possibilidades só imaginou, assim de repente, como cenários mais prováveis: sindicatos, câmaras municipais, estações aero, rodo e ferroviárias, centros de saúde ou hospitais. E depois, pensou ainda, se tanto mal diziam dele, o mais natural era que os extremosos progenitores não arriscassem vir deixar os seus amados filhos à guarda de quem normalmente diziam o que Maomé não disse do toucinho. E se bem o pensou, melhor o fez. Aceitou a ameaça e os meninos lá tiveram a oportunidade de passar um dia num dos epicentros dos destinos daquele país pequenino. Do que se passou a seguir, muitas histórias e finais mais ou menos felizes se ouvirão, uma vez que, como felizmente se sabe, os colegas do jornalista de opinião de direita e os governantes são gente que sabe como as palavras podem mudar as realidades.
Entretanto, numa galáxia bem perto de nós, um empresário chegado de fora àquele país pequenino  punha à venda um produto, contemporâneo e muito útil aos que assistiram ao vivo ao motivo mais ou menos óbvio do episódio acima narrado, e falo do recinto em que aquele grande acontecimento deu folga a muitos. Tratava-se de um inovador recipiente cheio do ar legítimo do dito lugar, uma adaptação local da tradição do mundo global religioso das recordações de lugares sagrados. E a isto tudo assistiam os, por ora, muitos e felizes habitantes daquele país, ao som de banda sonora original de balada de Eurovisão e dress code próprio com traje acessível a todos, composto por peça de roupa vermelha (sim, já não há cá encarnados e vermelhos, vermelho é mesmo o new-red).
Ora digam lá se não parece mesmo que comprámos bilhete, ou o ganhámos nalgum concurso sabe-se lá por que artes, e estamos dentro de uma sala de espectáculos à maneira? Vitória, vitória, acabou-se a história.

9.5.17

Werther e a baleia azul

O termo “desafio” está estafado. Desafios eram, há uns anos, os de futebol. Antes até, havia os que visavam duelos e de onde, com sorte, “só” um saía ferido. Antes mesmo, havia-os em torneios a cavalo e lança, para provar valentias em simulações de guerra, mas de interesse individual. Hoje, iniciar uma nova função também é considerado por muitos um desafio. E o perigo, sobretudo quando são funções públicas de responsabilidade, é que esse público em nome do qual tantas vezes se diz aceitar o desafio, seja gravemente ferido pela incompetência que se revela. E isto acontece pela inconsciência com que, muitas das vezes, ou as pessoas autoavaliam as suas competências ou se rodeiam de falsos amigos que, não sendo críticos, acabam por se tornar cúmplices da asneira. Enfim, o resultado extremo é por vezes trágico e o impacto dramático, para quem lhe sobrevive.
É que um desafio não é uma missão, nem uma tarefa, nem uma obrigação. Uma missão é um encargo, uma incumbência, um propósito, uma função específica, ou tarefa, que se confere a alguém para fazer algo. É um compromisso, um dever, uma obrigação a executar. Já um desafio resulta do acto de instigar alguém para que realize alguma coisa, normalmente além das suas competências ou capacidades. Como tal, aceitar um desafio parece ser muito mais uma prova de inconsciência do que de valentia. E muito mais quando é o valor da Vida, nossa ou dos outros, individual ou colectiva, que está em causa ou, para prosseguirmos no mesmo campo, em jogo.
Pais e educadores estão a braços com um fenómeno que toma o nome de Desafio da Baleia Azul. Uma brincadeira de mau gosto, classificação que várias brincadeiras tomam só quando ocorre uma tragédia e onde os avisos e as cautelas, em vez de serem como “caldos de galinha”, são já só “sopas depois de almoço”. E não, em meu entender, a culpa não é só de quem propõe a brincadeira parva, mas de quem se sujeita a juntar-se a ela não distinguindo, mais do que até é muito vulgar ver gente comum a confundir, a ficção com a realidade. E não, a culpa também não é das tecnologias mas das pessoas e do uso que delas fazem.

Já no século XVIII houve um livro que parece ter causado uma onda de suicídio na Europa, levando até, dizem, o seu autor a pedir que os leitores não seguissem o herói da história. Os Sofrimentos do Jovem Werther foi publicado por Goethe em 1774, quando este tinha 25 anos, e pode considerar-se a obra como um dos marcos literários do início do Romantismo. Tratando-se de um romance epistolar, o jovem Werther envia cartas poéticas para o amigo Wilhelm em que conta os seus sentimentos sobre o  amor que está a viver. Werther é um jovem inteligente, que saiu da cidade grande para a província onde acaba por se apaixonar pela filha de uma família nobre. A moça, Charlotte, também se interessa por ele, mas está noiva e por isso só o trata como amigo, não querendo mais conversas com Werther. Tudo isto leva o jovem Werther ao suicídio, contagiando os leitores. A área da psicologia fala até do “efeito Werther” para fenómenos de suicídio em massa. Está visto que, nos dias de hoje, o jovem Werther terá sido destronado por uma Baleia Azul e, muito provavelmente, outros desafios se lhe seguirão. É o que dá viver-se a vida de outros e não a nossa, o que é uma coisa até bastante banal, mais desmascarável quando os termos de comparação não estão lá, nem de perto nem de longe, para se poder sequer imitar. 

2.5.17

Ler, ver vs falar, olhar

Nunca se leu tanto como agora. Tanto não quer dizer bem ou mal, quer dizer isso mesmo: muita gente que para comunicar tem de codificar e descodificar uma mensagem através do verbo ou palavra, neste caso a escrita que permite a presença à distância no espaço ou no tempo. Quando há umas décadas, na massificação do audiovisual pela televisão, as gerações mais velhas receavam o cataclismo da palavra escrita, foram-se esquecendo de aprender, para ensinar, a ler as imagens e outros sinais que, usando códigos, diferentes, requerem as mesmas características do verbo inicial: informação, sentidos, procura de reacções para fins diversos.
A mesma visão apocalíptica surge agora com os ainda renitentes à utilização das redes sociais, o que os afasta de conhecerem melhor o que é uma parte considerável da sociedade em que vivem todos os dias. Respeitando essas posições, reconhecendo que isso não transforma essas pessoas em indivíduos menos eruditos e interessantes, apenas o lamento pelo que, de certa forma, estão a perder e pelo que com a sua intervenção, erudita e interessante, poderemos estar a perder, nós “os digitalizados”. Seriam mais a contribuir para a “humanização do digital”.
Decorreu na semana passada em Copenhaga a Digital Media Europe 2017, uma conferência anual (ainda que não tenha descoberto desde quando se realiza) que trata dos negócios que se fazem através de plataformas digitais e onde o jornalismo teve um lugar de discussão importante, nomeadamente pelas circunstâncias a enfrentar que condicionam todas as plataformas que comunicam com as massas: a capacidade de vender e vender-se, termos feios para alguns, ainda líricos, mas acertados no incontornável capitalismo vigente em toda a parte, que não precisa de ser desenfreado se o conhecermos, estivermos atentos e tomarmos bem conta dele. O que passará sempre por um comportamento ético estabelecido, ou seja, pela educação. 
Nessa conferência falou-se também da uniformização da experiência dos utilizadores nas redes sociais e como se tornou indiferente a marca por detrás do conteúdo. Assistimos a isso o tempo todo. Anunciam-se livros, carros, viagens, roupas, líderes, sentimentos, experiências, que partilhamos, não se percebendo a uma primeira incauta impressão, em muitos casos, se são para contagiar os outros ou querer elevar-se acima dos outros.  Ficamos, vezes demais, sem perceber se alguns de nós, dos que nos expomos, por diversos motivos, com várias intenções e em círculos mais ou menos alargados, querem ser lidos e vistos ou se apenas que nos oiçamos falar enquanto olhamos para nós, eles e elas. Essa é a marca que podemos assumir e imprimir nos outros. E os outros devem, por isso, ler com atenção para perceberem se estão apenas perante algo que distrai ou chama a atenção. Ambas válidas, a distração e a atenção, nos seus lugares próprios.
Vamos recomeçar a assistir, neste Verão eleitoral, a um aumento da venda de líderes pelas redes sociais. Assistiremos também a diversas paródias desses mesmos anúncios e a outras coisas que querendo ser sérias parecem paródias. As melhores serão as que fizerem com qualidade isso tudo. E aprenderemos certamente alguma coisa com elas. E até haverá quem lhe baste aparecer para já ter ganho, mesmo que quem assista a essa aparição não tenha, de facto, tido uma visão. O que como todos fomos percebendo, neste Maio de 2017, de há 100 anos para cá pode confundir-se, mas não é a mesma coisa.