No
Jamaica ou na Venezuela, em Paris ou em Elvas, com ou sem coletes, com ou sem
bandeiras, a violência estalou nos últimos tempos, em graus e relevâncias diferentes,
regionais, nacionais ou internacionais. Uma questão de escala, portanto. Escala
na consequência, mas também na causa, estou em crer, do lugar e da influência do
discurso do ódio.
O
discurso do ódio não é só o oposto do discurso do amor. Eles partilham o mesmo
denominador das emoções irracionais e, por isso, não condenamos os discursos quando
se limitam, a prazo portanto, à expressão íntima da paixão, da revolta, do
luto. Expressão que, quando ponderada e filtrada pelo uso da razão, se vai
esvaziando para permitir um convívio sustentável, um ambiente respirável. Se
quiséssemos ser fundamentalistas – e às vezes bem precisamos de saber, ou de
nos lembrar, por que é que não o somos – poderíamos afirmar que qualquer
expressão que prometa luta a alguma coisa se bandearia para o lado do discurso
do ódio. Mas depois temos as “lutas boas”: contra o cancro, contra a discriminação,
contra a poluição... E a paradoxal luta contra a violência.
Quando
com Abril, meia dúzia de anos depois do Maio, chegou o outro paradoxal
“proibido proibir”, o verbo deixou de circular clandestino, cuidadoso porque
perigoso para os dominadores e, efeito disso, para os dominados. Cantou-se em
voz alta a ideologia que combatia a deformação de carácter que a outra
ideologia ensinava. O combate, felizmente e apesar dos lutos – os reais, da
morte, e não os figurados – o combate fez-se com palavras. A palavra, na
canção, tornou-se uma arma. As paredes gritavam-nos aos olhos palavras que
ditavam ordens contra a ditadura. Pois... quando mergulhamos assim devagarinho
nas palavras, começamos a perceber as ratoeiras para a coerência, mesmo quando
sabemos muito latim.
A
escala em que usamos as palavras são como a escala musical, quer-me parecer, eu
que não percebo nada de música e já quase não sei ler um dó ou um sol... Diz-me
a enciclopédia do povo, a que alguns académicos já começaram a prestar atenção
porque mais vale entrar no sistema para o melhorar do que ficar de fora a vê-lo
degradar-se e contaminar tudo o resto, falo da wikipédia, bem entendido, diz-me
que “as escalas musicais formam a base necessária para a formação de acordes e
tonalidades”, que se pode “utilizar mais de uma escala para formar linhas
melódicas sobre uma mesma tonalidade (...)ou ainda, explorando notas de tensão
apropriadas sobre as cadências harmónicas da tonalidade.” A escala dá-nos a
medida, pois claro. E é por isso que para refrear acções e reacções
desmesuradas devemos medir as palavras. Para que a acção e a reacção, a de
violência claro que é que traz a morte e o ódio, não se intensifique e se torne
uma escalada.
Eu
sou do tempo em que se dizia que os jovens já não liam nem escreviam. Também
estou no tempo em que a ciência dos significados nos ensina a ler imagens para
além de só olhar. Em que ver é ler, porque ler resulta em interpretar, em dar
sentido a significados que lá estão, ou podem estar. Quando as pessoas olham
mais do que só por olhar e vêem também lêem. É certo que às vezes treslêem e
por isso há discursos, mesmo os das imagens, que não podem ser equívocos. E que
não podem ser pronunciados, sejam ditos ou mostrados, por quem tem a
responsabilidade de ser responsável. Se vamos dar a ler ou a ouvir a outros o
que temos para dizer – a falar, a cantar, a filmar – teremos de contar com as
reacções que provocamos, mesmo quando queremos ser contra. Porque o
contra-poder também é poder. E é também por isso que erramos menos quando
queremos, por facilitismo, generalizar conceitos usando-os no plural. (Pois, o
que é de todos mais facilmente não é de ninguém se as coisas dão para o torto.)
Nesta sequência lógica poderia parecer, então, que talvez já não haja racismo
mas racismos. E ficaríamos todos muito mais aliviados porque cada um de nós já
terá algum dia em algum lugar tê-lo sentido na pele e na alma, que estão ali
tão próximas uma da outra como a sensação da emoção. É uma espécie de remedeio. De dividir o mal
pelas aldeias. Depois o que é mesmo uma maçada é quando o mal alastra. E ganha
escala.