29.1.19

Racismo e violência: uma questão de escala(da)


No Jamaica ou na Venezuela, em Paris ou em Elvas, com ou sem coletes, com ou sem bandeiras, a violência estalou nos últimos tempos, em graus e relevâncias diferentes, regionais, nacionais ou internacionais. Uma questão de escala, portanto. Escala na consequência, mas também na causa, estou em crer, do lugar e da influência do discurso do ódio.

O discurso do ódio não é só o oposto do discurso do amor. Eles partilham o mesmo denominador das emoções irracionais e, por isso, não condenamos os discursos quando se limitam, a prazo portanto, à expressão íntima da paixão, da revolta, do luto. Expressão que, quando ponderada e filtrada pelo uso da razão, se vai esvaziando para permitir um convívio sustentável, um ambiente respirável. Se quiséssemos ser fundamentalistas – e às vezes bem precisamos de saber, ou de nos lembrar, por que é que não o somos – poderíamos afirmar que qualquer expressão que prometa luta a alguma coisa se bandearia para o lado do discurso do ódio. Mas depois temos as “lutas boas”: contra o cancro, contra a discriminação, contra a poluição... E a paradoxal luta contra a violência.

Quando com Abril, meia dúzia de anos depois do Maio, chegou o outro paradoxal “proibido proibir”, o verbo deixou de circular clandestino, cuidadoso porque perigoso para os dominadores e, efeito disso, para os dominados. Cantou-se em voz alta a ideologia que combatia a deformação de carácter que a outra ideologia ensinava. O combate, felizmente e apesar dos lutos – os reais, da morte, e não os figurados – o combate fez-se com palavras. A palavra, na canção, tornou-se uma arma. As paredes gritavam-nos aos olhos palavras que ditavam ordens contra a ditadura. Pois... quando mergulhamos assim devagarinho nas palavras, começamos a perceber as ratoeiras para a coerência, mesmo quando sabemos muito latim.

A escala em que usamos as palavras são como a escala musical, quer-me parecer, eu que não percebo nada de música e já quase não sei ler um dó ou um sol... Diz-me a enciclopédia do povo, a que alguns académicos já começaram a prestar atenção porque mais vale entrar no sistema para o melhorar do que ficar de fora a vê-lo degradar-se e contaminar tudo o resto, falo da wikipédia, bem entendido, diz-me que “as escalas musicais formam a base necessária para a formação de acordes e tonalidades”, que se pode “utilizar mais de uma escala para formar linhas melódicas sobre uma mesma tonalidade (...)ou ainda, explorando notas de tensão apropriadas sobre as cadências harmónicas da tonalidade.” A escala dá-nos a medida, pois claro. E é por isso que para refrear acções e reacções desmesuradas devemos medir as palavras. Para que a acção e a reacção, a de violência claro que é que traz a morte e o ódio, não se intensifique e se torne uma escalada.

Eu sou do tempo em que se dizia que os jovens já não liam nem escreviam. Também estou no tempo em que a ciência dos significados nos ensina a ler imagens para além de só olhar. Em que ver é ler, porque ler resulta em interpretar, em dar sentido a significados que lá estão, ou podem estar. Quando as pessoas olham mais do que só por olhar e vêem também lêem. É certo que às vezes treslêem e por isso há discursos, mesmo os das imagens, que não podem ser equívocos. E que não podem ser pronunciados, sejam ditos ou mostrados, por quem tem a responsabilidade de ser responsável. Se vamos dar a ler ou a ouvir a outros o que temos para dizer – a falar, a cantar, a filmar – teremos de contar com as reacções que provocamos, mesmo quando queremos ser contra. Porque o contra-poder também é poder. E é também por isso que erramos menos quando queremos, por facilitismo, generalizar conceitos usando-os no plural. (Pois, o que é de todos mais facilmente não é de ninguém se as coisas dão para o torto.) Nesta sequência lógica poderia parecer, então, que talvez já não haja racismo mas racismos. E ficaríamos todos muito mais aliviados porque cada um de nós já terá algum dia em algum lugar tê-lo sentido na pele e na alma, que estão ali tão próximas uma da outra como a sensação da emoção.  É uma espécie de remedeio. De dividir o mal pelas aldeias. Depois o que é mesmo uma maçada é quando o mal alastra. E ganha escala.


22.1.19

A importância da pergunta



Entre o nacional alarido com a crise no PSD e a internacional preocupação com o modo de concretização do Brexit, assim decorreu a passada semana noticiosa. Quer uma, quer outra circunstância foram consequência de processos de auscultação democrática. Num caso, quase familiarmente íntimo de escolher entre candidatos a chefes de família; no outro, a opção de um reino composto por várias famílias se manter ou não ligado a um conjunto de outros países, reinos e repúblicas.

Em ambos os casos as opções de escolha não foram muitas, antes quase só em alternativa. Se no caso do Brexit essas duas únicas opções de resposta à pergunta eram inevitáveis, no caso do Partido português as perguntas ao “Quem quer, quem quer liderar o PSD?” poderiam ter sido, de facto, de escolha múltipla, ainda que com resposta única, bem entendido. Nem no Brexit, nem no último congresso do PSD foram feitas perguntas retóricas. Ou não deviam ter sido...

As perguntas retóricas são aquelas que não têm como objectivo obter uma resposta mas sim, das duas, uma: ou estimular a reflexão sobre o assunto sobre o qual se pergunta; ou ser sarcástico. Este tipo de perguntas é muito interessante em discussões conceptuais, em conversas de salão ou em reuniões de “partir pedra”, esse coloquialismo que designa os processos em que se colocam hipóteses, se traçam cenários, uma espécie de rascunho para uma versão definitiva e pública o mais atinada possível. A pessoa que faz uma pergunta retórica já sabe ou imagina a resposta. Mas isto também só se a pergunta, ainda que retórica, for bem feita, pois arrisca-se, quem pergunta, num momento de “rodriguinhos”, a levar como resposta uma outra pergunta, até mais embaraçosa.

Mas voltemos às perguntas em Democracia, sejam elas em forma de eleições ou referendos. O sistema político democrático exige esforço por quem se propõe geri-lo de forma a que ponha, de facto, os cidadãos a quem serve a participarem assumindo a centralidade do mesmo. Inclusive, exige um esforço, talvez o mais hercúleo, de explicar o uso da Democracia pelos seus próprios beneficiários. E este é um trabalho constante e interminável, que quando desleixado apenas serve para que uns se sirvam da Democracia em vez de a servir. Escolher é estar preparado para responder a uma pergunta. Perguntar é estar preparado para receber as diferentes possibilidades de resposta escolhidas. Como dizia o título de um antigo programa de rádio entre um psicanalista e um pedagogo, e que virou livro: “se não sabe porque é que pergunta?” Uma pergunta mal feita, ou feita na altura errada, significa falta de capacidade de quem a faz. Ou então, lá está, revela que a vontade de fazer a pergunta ao abrigo da definição de Democracia é só mais um instrumento tacticista de manipulação de quem responde. Como exemplos temos precisamente os dois casos noticiados que vos trago: não fazer parte da resposta a uma pergunta numas eleições, só para tentar voltar a fazer a pergunta mais tarde, em altura mais oportuna para o próprio, se não foi o que aconteceu no PSD, parece ter sido; ou por outro lado, fazer uma pergunta não se medindo as consequências da resposta, como quando convocou o referendo do Brexit David Cameron no Reino Unido, e, ao contrário, Mariano Rajoy não o validou na Catalunha. Na Catalunha já se calaram as vozes dos que, para se servirem do momento mais oportuno, o seu momento mais oportuno, criaram um ambiente de guerrilha. No Reino Unido, o imbróglio é grande e repetir o referendo parece contribuir pouco para o prestígio da Democracia, como se tivessem estado a brincar com ela até que a melhor resposta fosse dada. Aos britânicos, mais do que ter feito a prematura pergunta de resposta “sim ou não” importava ter apresentado todo um caderno dos encargos que as mudanças com a saída da UE impunham. É que perguntar pode mesmo ofender.

15.1.19

Uma no cravo, outra na ditadura


A expressão adaptada no pós-25 de Abril que foi título de espectáculo de revista, “uma no cravo, outra na ditadura”, foi-me relembrada há um par de semanas. Não a propósito do assunto desta crónica - o “tarantantam” sobre um primeiro chumbo e consequentes forçadas negociações do Orçamento Municipal de Évora - mas a assentar-lhe muito bem.
Como é sabido, a expressão popular original - “dar uma no cravo e outra na ferradura” - que usa o vocabulário de quem prepara cavalos, significa, na sua expressão idiomática, o não comprometimento numa polémica que reclamaria, em princípio, pender-se a opinião, e a acção, para um dos lados. A falha das duas, isto é, tomar partido e agir consoante, para quem trabalha em circunstâncias como as do ferreiro parece admissível, mas a hesitação em defender uma posição contra outra não é tão benevolente na adaptação quer metafórica, quer revolucionária. Pede-se a radicalização, de resto típica do ambiente das revoluções. Da naturalidade própria de quem não faz sempre tudo com os resultados ideais, apesar do máximo profissionalismo e competência, passa-se, na metáfora, à exigência de uma difícil coerência que a actividade política requer, mas que só bafeja políticos sérios e a sério, pois, como talvez não seja sabido por muitos, em Política as circunstâncias alteram-se muito rapidamente e há que ter fibra para lhes resistir de cabeça erguida.
Voltando a Évora: quis-me parecer, das diferentes declarações que li em meios de comunicação mais ou menos convencionais, de várias pessoas com responsabilidades por exercerem cargos políticos, e por isso públicos, e algumas delas até devedoras às forças políticas enquanto colectivo que as ajudaram a serem eleitas; quis-me parecer que o “tarantantam” serviu, no que se vai tornando normal no jogo político mais básico, para revelar a distância que separa essas pessoas, políticos, da verdadeira Política. E sem grande preocupação, ou habilidade, em sequer disfarçarem que seria disso mesmo, da Política, que se devia tratar.
Mas concentremo-nos nas declarações oficiais. A posição da CDU e do Presidente da Câmara é quase só risível. É sabido e provado em actas de há vários anos, para quem quisesse ter a paciência de as procurar e ler, sobre atitudes respeitando a responsabilidade e as que podem reflectir irresponsabilidades nas discussões, negociações e votações de vários Orçamentos Municipais. Da CDU poder-se-ia dizer que já esqueceu a democracia que o cravo simboliza e parece lamentar profundamente que a expressão “maioria absoluta” não seja mesmo sinónimo de ditadura. Isto diz tudo sobre a possibilidade, sabe-se lá por que meios, de alguma vez ser o Comité Central do PCP a comandar os destinos nacionais. Vade retro!
Por outro lado, achei, digamos, “fofinhas” as exigências do PSD do concelho nas negociações para eventual aprovação do Orçamento. Agora a sério, já que o adjectivo “fofinhas” foi mesmo simultaneamente provocador e carinhoso: há duas condições que são, na minha opinião, bastante responsáveis e em defesa do interesse dos Eborenses. Uma delas segue uma solução finalmente proposta pelo Governo no devolver da dignidade a uma escola de Évora que tem sido sucessivamente esquecida, e que a Câmara não contempla como prioridade; a outra, também na área da Educação, que reconhece a importância e as potencialidades, agora mais previsíveis com as restantes medidas para a descentralização de competências para as autarquias, da gestão das Escolas e do seu pessoal não docente. Uma oportunidade para a efectivação do que é a Política de proximidade, tão confundida por tantos com os “jeitinhos” e “favorzinhos”. O meu elogio deve certamente ter também que ver com as novas orientações que aquele Partido parece estar, muito a custo, a tentar tomar. A ver vamos!
Quanto às exigências que o PS propôs, presumo e desejo que com o total apoio dos eleitos nos diferentes cargos autárquicos e com a experiência dos que sentiram na pele as dificuldades da gestão do concelho “abrindo o peito às balas” (apanhando até por vezes, demasiadas, com o hipocritamente chamado “fogo amigo”), revelam o conhecimento do território local e a intenção de melhor fazer na construção da cidadania eborense e pelo progresso dos cidadãos que desejam também servir o melhor possível. Aliás, a rejeição pelo Presidente da Câmara em aceitar uma das propostas, a de um Orçamento Participativo quase simbólico, teve na minha opinião uma leitura plural. Desconfia, o Executivo, da capacidade dos Eborenses para saberem o que escolher no uso a dar a dinheiros públicos, um receio só desculpável se quisermos, nós os que acreditamos na Política para as pessoas, desistir delas e acharmos que os resultados destes processos têm de ser todos parecidos com os do último Orçamento Participativo nacional. E esse só revela o quanto ainda há a fazer pela participação cidadã na vida que lhes diz respeito. Mas essa recusa vem confirmar, só com mais um exemplo, o fachadismo deste Executivo, neste caso quando, volta e meia, ainda exibe o epíteto de Cidade Educadora. É que não só não o pretende ser, trabalho interminável eu sei, como polui o conceito e respectiva aplicação com a sua presença na Rede das Cidades Educadoras, ao lado de outras autarquias, de cores políticas várias e, politiquices à parte, que levam o assunto a sério.
Depois, venham falar-me de cravos…



8.1.19

A vitória da mediocridade ou a crise da Democracia


Antes de mais, os meus votos de bom 2019 aos ouvintes da DianaFm.
Este ano outros votos vão dar a oportunidade aos cidadãos de poderem expressar, para além de o fazerem através do queixume, do insulto ou da indignação nas redes sociais, a sua vontade de escolher quem os vai governar. Em Maio para o Parlamento Europeu, aquele que para muitos parece estar lá longe mas que tem, ou devia ter, enorme importância e impacto nas políticas nacionais e na convergência de ambientes sociais e económicos de bem-estar entre os Estados-membros. Em Outubro, nas nossas legislativas, será para escolher quem, no executivo ou na oposição, condicionará a aplicação de medidas que reflectem forçosamente opções ideológicas que importa conhecer e reconhecer, não apenas nos discursos mas também nas práticas. E pelo meio há também na Madeira eleições para o Governo regional que actua com particularidades que, consequência da condição da autonomia, quando dá jeito a madeirenses ou continentais são chamadas à berlinda, de forma inconstante e intermitente.

Mas este ano começou também com uma evidência da profunda crise em que a Democracia, a que nos permite escolher pelo voto e no mundo em que ela vigora graças a lutas importantes e avanços civilizacionais que tomamos como seguros e eternos, parece estar a cair: falo da mediática tomada de posse de Bolsonaro, resultado da vitória dada pelo Povo brasileiro, democraticamente, à mediocridade. Esta mediocridade é não só evidente no discurso pobre de Bolsonaro, quer como candidato, quer já empossado, como é evidente em todo o seu percurso público de 27 anos enquanto político. Não faltam por aí artigos e testemunhos que atestam estas mediocridades. E não se trata apenas das referências ao poder divino, que já Lula e Dilma nos seus discursos também não conseguiram evitar, e que como está bom de ver não tem importância nenhuma na actuação política. É que tanta invocação do nome de Deus deixa bem à vista, conhecendo quem o faz, que apenas interessa como anzol para que os crédulos mais desinformados e desatentos assim se mantenham. Diz-se que aquela foi uma cerimónia solene. Pois de solene pouco lhe vi. Desde o comportamento digno de uma turma de corrécios daquelas que reclamam redução do número de alunos por turma e professor de apoio, até à frase extra do discurso de Bolsonaro sobre as cores da bandeira nacional do Brasil e da promessa-ameaça de sangue.

E depois foi também o discurso de Ano Novo do Presidente Marcelo. Este foi um sério aviso ao perigo de que a crise da Democracia se transforme em mau estado permanente da mesma. Um discurso pedagógico que só pecou por não ter continuado no que fez à saída da sua reunião com Bolsonaro. Se tendo a achar necessário que um Chefe de Estado se comporte como tal e não vire as costas a um Estado que tem a representá-lo alguém que personaliza precisamente o que Marcelo diz temer, era escusado ter-se referido a um “encontro de irmãos”. Os ouvintes dos dois discursos hão-de ter sido, na sua maioria, os mesmos, mas se o primeiro discurso foi para o Povo, o segundo foi popularucho. E há uma diferença nisso.

A Democracia está acima de tudo nas mãos dos Cidadãos: os que votam e os que se juntam para constituir ou transformar os Partidos e as restantes instituições públicas. Em época de eleições, e uma vez que é dos Partidos que normalmente saem os governantes, é bom que cada Partido que esteja verdadeiramente interessado em governar e em salvar a Democracia contra os ataques de vários lados, não se rendam à equação que valoriza sabe-se lá mais, para sermos ironicamente ingénuos, do que a competência, a seriedade e a defesa coerente dos valores e princípios em que assentam. É que eu que sou uma leal simpatizante de um Partido fico banzada com posturas e acções (ou inacções!) antipatizantes de certos militantes a quem, depois, se consola com relevos de vária espécie. Se isto assim continuar nos Partidos, o que acontece discreta ou “desbragadamente” em todos, acabam por se tornar ou em eucaliptos que secam tudo o que lhes podia ser benéfico à sua volta, ou em “tudo farinha do mesmo saco”. E se não se tomar atenção a isto mesmo, com o empurrãozinho que tanta Comunicação Social vai dando, não tarda nada mesmo já “chegámos... não à Madeira mas... ao Brasil”.