15.6.21

António Torrado (1939-2021)

Nós, os de agora, sabemos,  e cada vez mais, que o “E foram felizes para sempre” é coisa de histórias de encantar ou de fazer adormecer meninos. Primeiro, porque nem só do casamento vem a felicidade; depois, porque “para sempre” é demasiado tempo para caber nas vidas dos mortais. O mais acertado é dizer-se que certas coisas são como o Amor: eternas enquanto duram. E é por isso que gente capaz de fazer obra que deixa sucessivas gerações enlevadas com ela pode ser o real significado dessa eternidade, quase para sempre. António Torrado é feito dessa espécie de gente assim rara.

Um dos mais prolíficos autores portugueses que escreveram a pensar no leitor infantil, tudo o que lhe dedicava tinha a qualidade literária que os milhares de títulos que se arrumam nas estantes de livros infantojuvenis não tem para chegar sequer aos seus calcanhares. Senhor de um discurso que usava as gramáticas da poesia e da fantasia com igual mestria, soube sempre usar também a tradição com o respeito que o dinamismo que lhe é próprio exige, de forma a perpetuar a sabedoria e o gosto por aprender com o tradicional popular. Isso é que é herança a crescer, em metamorfoses várias, com as gerações que inevitavelmente se sucedem. 

Só uma vez, julgo que em 2009, conversei com António Torrado longamente, num júri de prémio que avaliava textos inéditos para crianças e jovens. Já o tinha visto várias vezes a encantar miúdos, a quem se apresentara como tendo sido, quando era também ele miúdo,“o Torradinho”, arrancando-lhes gargalhadas francas. Mas foi só nessa ocasião, na margem sul do Tejo, que a conversa rolou tão agradável, rica de coisas sérias e divertidas, e em que falámos da qualidade dos textos vencedores: estava assegurada a sua herança. 

Quando do 1.o Confinamento, numa das muitas iniciativas de narrativas da pandemia, recordei a sua completa e trabalhada versão da “História da Carochinha e do Infeliz João Ratão”, muito pouco superficial, ao contrário do que tantos pretendem que esta história seja. Com ela aprendemos também a lidar com a sua partida, superável, como muitas, por quem cá fica, com o tempo e a partilha da dor da perda, não parando de o ler e contar.

António Torrado falava às crianças de todos os temas sérios, como a Literatura tem de fazer. Estou certa que toda uma geração de miúdos aprendeu a gostar de ler por causa dos textos de Torrado e, desses, muitos se transformarão em herdeiros geradores de mais leitores felizes da sua obra. Se diversas variáveis se conjugarem, tornar-se-ão leitores exigentes e, mais do que só devoradores de livros, leitores literários. Obrigada, António Torrado.