8.6.21

Janela virada para a guerra

Na semana passada, as notícias de uma geringonça em Israel voltaram a trazer notícias da Terra Santa e fértil em guerra, à janela-ecrã. A reboque vieram imagens de um desfile de pessoas do Hamas em Gaza, numa demonstração da força, dizia a voz off. O que me chocou naquelas imagens foram, naturalmente, as crianças.

Outras crianças que já não as crianças mortas, de há umas semanas atrás, e ainda assim as mesmas crianças. E sempre do mesmo lado da barricada que ora acirra, ora recua, em nome de um lugar para que também as crianças, dizem, possam ter paz. Já não exangues e semelhantes a bonecas de trapos nos braços de adultos que as embalam em choro, mas agora eufóricas e aos vivas, correndo lado a lado com aqueles adultos vestidos de soldados de cara tapada. Não pude deixar de pensar como as crianças são uma poderosa arma de guerra e a infância o lugar onde regressam, ou donde nunca saíram, os que vivem no tempo de faz-de-conta.

Faz-de-conta que estamos sozinhos e ninguém nos está a ver fazer tropelias; faz-de-conta que quem morre, ressuscita para voltar a poder brincar, a morrer e a matar; faz-de-conta que, nesta brincadeira, não há os que mandam e os que obedecem; e estes, faz-de-conta, não se importam de dar a vida por quem manda por si e em seu nome; faz-de-conta que, se chorarmos bem alto, não vai haver quem ache que estamos a fazer uma birra e todos perceberão que é porque nos dói, e muito, e que vamos mesmo morrer aos poucos; faz-de-conta que sempre que pomos uma criança à frente de uma boa causa, mesmo na sua inconsciente inocência, essa criança não está a pôr outra criança entre a arma e o alvo.

Só que já não há faz-de-conta. A ordem bíblica que dizia que se deixassem ir as criancinhas é, como quase tudo nos bons livros das religiões que se organizam em torno deles, texto sem tempo e que, por isso, se molda a contextos e circunstâncias que importa também ler com atenção. Muitos, demasiados, o fazem em função de se aceitar sem questionar o que está do lado dos bons, e recusar, ou acusar, o que está do lado dos outros. E as crianças lá estão, no meio, a servir de argumento. Quer seja de troféu por uma educação exemplar na contestação, pois claro, quer como prole de vários Egas Moniz. Não o da lobotomia, embora a imagem também pudesse ser fértil, mas o Aio do século XI, que tomou partido do filho contra a mãe, lá no início de Portugal.

Quando hipotecamos as vidas das crianças empurrando-as para servir, por ou em vez de nós, de exemplo estamos a traí-las, a usá-las, e a fazer-de-conta que somos só boas pessoas.