25.5.21

A Voluntária e o Farrapo

Estamos mesmo em tempos difíceis, estes em que para o individual ser humano é cada vez mais atraente destacar-se da social humanidade. Promove-se este destaque até como uma espécie de direito universal. Promove-se o exemplo de uma única acção de uma pessoa elevada a única, empurra-se a pessoa para debaixo dos holofotes e ali fica, à mercê dos direitos individuais de todos os outros. De todos quantos tentem laureá-la ou enlameá-la, pelas mais diversas e inesperadas razões: argumentos achados no passado dessa pessoa até à quinta geração ou na vida mais íntima; arrazoados que a anexam a outros colectivos que ou se louvam, ou se abatem, em lutas de contornos tribais, pouco dadas ao progresso já alcançado pela civilização noutras áreas.

Falo primeiro da voluntária da Cruz Vermelha que abraçou e consolou um ser humano transformado em farrapo, não só pelas últimas horas a lutar contra o mar cálido que está no meio de terras próximas e por isso se chama Mediterrâneo. Farrapos como aquele homem são o resultado de gerações e gerações de desigualdades sociais, cuja solução não se encontra só debaixo de holofotes, que também atraem todo o tipo de abrutes ou de insectos. Ambos canibalescos, agindo por oportunismos vários e rivais entre si: os que querem ser os mais bondosos, os mais patrióticos, os mais humanistas ou os mais votados, entre outros “mais” menos evidentes, mas talvez não menos perigosos para quem está ali debaixo do foco de luz, vítima de ser uma pessoa com rosto que pertence a um colectivo anónimo. E sim, falo também do mais visualizado, do mais “clicado”, que certa comunicação social, ajudada pelas suas rivais redes sociais, os outros “mais” que contribuem para este canibalismo: pessoas a tentar destruir pessoas.

Estamos em tempos difíceis, estes em que “fazer o bem sem olhar a quem” traz tantos perigos de tantos lados, que torna cada vez mais difícil que o gesto individual que se torna público, não seja substituído pelo gesto só egoísta. E mesmo o gesto já egotista não escapará a oportunismos: também ele terá direito ao seu palco e aos seus holofotes, também ele será laureado e promovido.

Há coisas boas que mal usadas se transformam em coisas tóxicas, sobretudo pela radicalização que apenas procura agregar tropas. Há coisas, à partida, boas e úteis que caem no exagero e que se põem a jeito para ser derrotadas por gente nem boa nem útil. E falo também de um outro lugar que não as praias de um reino, mas a sala de uma assembleia de uma República onde houve um dessa estirpe de gente que aproveitou essa fraqueza da forma que estraga o conteúdo e a intenção.

Neste caso, tão diferente em impactos de vários níveis, mas mesmo assim tão caseiramente mediático, não havia uma voluntária mas uma profissional. O papel que desempenhava dilui-se ao querer provar que se é mais justicialista que a Justiça, e o farrapo, um farrapo-on-going, que ali deu à costa, também soube aproveitar-se dos holofotes e do palcos e soltar a arrogância para lhe responder aumentando a arrogância para descer à provocação. Estragou um enredo já de si a degradar-se, tal não era a luta entre personagens que queriam ser todas cabeças de cartaz, de episódio para episódio.

Os casos - o da voluntária que ampara o migrante, o do grande devedor que irrita a deputada - são muito, mesmo muito, diferentes. Mas são, na minha opinião, dois de muitos mais exemplos que acontecem por esse Mundo fora que vive de holofotes e entram nas nossas vidas por um, dois ou mais ecrãs. Vamos lá tentar ser espectadores mais atentos e exigentes para que quem do outro lado do cabo ou da fibra deixe de pensar nos holofotes quando faz, ou mostra quem faz, o bem sem olhar a quem.

O caminho de herói a mártir, ou até só vítima, é curto, actualmente cada vez mais rápido do que o de sentido inverso, e relativamente evitável. Evitá-lo poupa-nos a hipocrisia, ocupa-nos com o que realmente interessa: que saberemos o que é, se pensarmos, e treinarmos o pensamento, com a humanidade e com a racionalidade que nos caracteriza como espécie.