11.5.21

Nem faunos, nem ninfas

O movimento #MeToo chegou a Portugal e acendeu as luzes da árvore de Natal dos media (com ou sem edição legitimada por carteira de jornalista), antes de percorrer, casa a casa, o demorado e significativo calendário do Advento. (O meu recurso a este vocabulário natalício de ambivalência pagã e cristã termina aqui e serviu apenas para retirar o assunto do confessionário ou do altar.)

Os comportamentos das pessoas seguem padrões condicionados por factores contextualizáveis e nós chegámos a um tempo em que sedução e assédio têm de ser entendidos como comportamentos com conceitos opostos. Embora, já se sabe, não o sejam aos olhos de quem não destrinça relações afectivas de relações de poder. Mesmo quando, entre pessoas que se relacionam, os dois tipos de relação possam coexistir sem se confundir, em exercícios certamente difíceis. A condenação no quadro contemporâneo deve, por isso, ser válida para qualquer tipo de favorzinho, resultado dos crimes de chantagem ou corrupção: o que é retribuído com um cheque ou uma peça de cristal da Vista Alegre; ou o que acaba num jantar à luz das velas ou no meio dos lençóis.

Se é para levar as coisas a sério, o que me parece sempre bem, levem-se as queixas a sério, levem-se as testemunhas a sério, levem-se as vítimas a sério, levem-se as justificações a sério e julgue-se no lugar certo e a sério. O lugar certo não é o Twitter, nem o Facebook. Esses são lugares de conversa de café, de divulgação pessoal e, às vezes, são até mesmo lugares onde se levam as coisas ou a brincar ou a fingir.

O que o movimento #MeToo implica é demasiado sério para se levar a fingir ou a brincar. Causa tragédias pessoais e não é bonito que sirva para farsas espectaculares, ou seja, de palco. Os dramas pessoais poderão transformar-se em exemplos capazes de condicionar comportamentos e evitar mais tragédias e, nesse sentido, terminado o argumento e com consentimento, é bom que suba ao palco. As farsas que transformam mulheres em ninfas e homens em faunos, ou vice-versa, são só maus exercícios que entretêm quem, armado em cabo de forcados, vem provocar a besta e depois foge para o lugar do espectador. Arma-se a tourada só porque a tourada causa sangue e há sempre uma vítima assegurada. E isso não é bonito, nem de bem. Por muita luz, cor e música que entretenha muita gente. Leve-se o que o movimento #MeToo implica, a muitos níveis, muito a sério. Não se transforme em mais uma das muitas touradas que nos entram pela vida colectiva adentro.