2.11.21

A Separação

Ai, a esquerda unida é que era! Ai, que só unidos à esquerda é que combatemos a extrema-direita e o liberalismo desenfreado! Ai que só assim é que nos libertamos dos que estão pouco ou nada preocupados com quem não consegue, seja de que forma for, subir na vida, ser alguém! Ai, que para sermos felizes temos de ouvir todos esses conselhos que as manifestações como a de 15 de setembro de 2012 se gritaram pela Avenida da Liberdade abaixo! Ai, que o voto é uma arma e só a esquerda contestatária é que mobiliza as tropas! Ai, que temos de engrossar-lhes o exército e esquecer desavenças! Ai, que eles nos batalhões da esquerda não se dão, mas vamos uni-los, mesmo à força de uma minuta lavrada com esferográfica marca Cavaco! Ai, que eles se arrependeram da discussão de 2011 que tanta infelicidade nos trouxe e querem-nos fazer felizes agora, devolver-nos um ambiente respirável e com esperança como quando se distribuíram cravos vermelhos na rua!

Pois é, eu também achava que havia esperança nos gritos com punhos a bater no peito a dizerem-se patriotas de esquerda. E que ir ter com essas vozes era transformá-las em gestos que mudam mesmo o estado das coisas. Coisas que mudam porque as pessoas que são a sociedade também mudam. Fiz mal. Durou pouco.

As famílias, mesmo com educação semelhante, têm membros a seguir caminhos diferentes. Zangam-se, aparecem desavindos no enterro de uma legislatura, apresentam-se de costas voltadas na preparação do baptizado da legislatura que vai nascer, de vez em quando cruzam-se num caminho que se estreita e lá têm de se cumprimentar, porque tem de ser, não há como escapar. Vão mantendo uma tradição de tribos e clãs. Alguns, mais raros, com antepassados comuns que num dado momento se separam; outros que, de tão parecidos na forma como chegam a chefes de clã, têm o seu “ismo” manchado do sangue daqueles sobre os quais se usaram para lá chegar. E deixam sem chão os que pensam que para além dos muros também há gente que não serve só para os ir mantendo, como trabalhadores sazonais que se vão buscar na altura da colheita dos votos. Gente que toma pulso ao mundo apertando o seu próprio pulso, o que se compreende embora não fosse pior que sentissem o coração dos outros tentar bater tão bem como queremos que o nosso bata. (Isto se eu não tiver de dividir energia e perder para dar, arriscando o que é meu, só meu; tudo compreensível mesmo que inaceitável.)

Fiz mal, porque voltei a ser social e politicamente lírica, a olhar o mundo com os olhos ingénuos e inaugurais. E não me surpreendeu, afinal, porque a grande desilusão já tinha sido, ali à praça do Sertório, quando experimentei o efeito do que julgava ser mesmo um substantivo abstracto: o sectarismo. Daquele mesmo tramado, recheado e coberto de cinismo que transfigura pessoas, que temos como gente boa, em autómatos movidos a ordens gravadas vindas de um obscuro passado que martiriza o presente e aborta qualquer futuro, com medo da perda do controle.

Passados 10 anos sobre aquela discussão que nos trouxe uma vida mais difícil (e mais para uns do que para outros, para também não nos surpreendermos muito), suspiraremos outros ais. Perdeu-se nesta geração a esperança nos ais anteriores, não sem termos a certeza que o mais provável é que a história se repita. Mais por oportunismo do que por falta de memória, claro. Porque a memória se manipula.

E no entretanto vamos ali ao multibanco fazer o que temos a fazer, porque só não o faz quem já está excluído desta sociedade (ai os pobrezinhos, os pobrezinhos! “Ai” eternamente usado e esvaziado), usados para fazer dos votos armas. E contra ou a favor deles, os que se vão excluindo, há escolha à escolha, nos vários lados. Difícil mesmo é ir pelo caminho do meio. A não ser que seja em performance, escudado por câmaras, luzes, microfones. Mas isso também é só a pausa para publicidade. Marca Marcelo. E institucional!