12.10.21

Crónica pessoal mas retransmissível

Todos temos momentos nas nossas vidas em que precisamos de lançar aos sete ventos e apregoar aos quatro cantos do mundo redondo o que, sendo do foro pessoal e nos vai cá dentro, queremos partilhar, desabafar. Alegria ou dor, indignação ou louvor, são estados de alma que, atirados assim ao “Deus dará”, até evitam que se acerte em alguém especificamente, permitindo que aterrem em quem os enfie como carapuças, não sem abrir o guarda-chuva por não se descartarem responsabilidades próprias da alma e no estado. Tal desfulanização também pode acontecer, como é o caso, quando há intenção, apesar da “ventania”, de preservar outros que, eventualmente metidos no assunto, temos pudor em trazer para a ribalta: seja porque não queremos dar-lhes um só centímetro de palco, seja porque o desabafo não se lhes aplica de todo.

Na semana em que os currículos académicos chegaram aos jornais, por via de uma pessoa desta classe profissional que acumula com a actividade de pop-star do comentário mediático, deu-se a coincidência de eu própria me ter voluntariamente submetido, num pedido feito há um ano e um mês, à apreciação do meu trabalho de décadas. Foi a última prova pública da carreira que comecei há 31 anos e que apenas interrompi por quatro para dar ao concelho de Évora o que podia e sabia, sem cursos que ensinam a fazê-lo. (Anos que, aviso já, naquele tribunal funcionam como cadastro, assunto a que talvez volte um dia nestas crónicas). Mas também se diga, em abono da verdade, que das outras duas provas académicas (anteriores também ao aparente desvio político), posso dizer que foram, de facto, provações e não “passeios no parque”. É que também os há, nesse Olimpo imaginado e frequentado por alguns que lá se passeiam envergando o traje que lhes esconde a humanidade. Ainda assim, justiça no balanço, nas três provas em três décadas houve doses de civilidade muito diferentes, diminuindo esta quanto mais afunilado é o acesso ao topo a que dificilmente todos chegam.

Predispõe a este estado de alma o facto de se tornar evidente que, por serem provas públicas, haja um exercício de encenação que vinca, a quem é de vincar, a relação de poder de quem lá está sobre quem talvez lá venha a chegar. Está feito o desabafo, a prova que o originou ultrapassada sem surpresas: o vento que leve as palavras onde houver massa crítica para as interpretar, que é obrigação de quem trabalha com palavras. Aos outros, agradeço a paciência na tormenta alheia.

Faço mesmo é votos que a nova geração de professores universitários que começam a chegar ao topo das suas carreiras, sobretudo catedráticos, e está hoje, na espuma dos dias é certo, sob escrutínio público, como sempre devia ter estado enquanto funcionalismo público, tenha a força que as elites para o serem têm de ter para se tornarem úteis à sociedade. A perpetuar-se uma certa tradição académica enredomada (mesmo a evitar, e bem, o laxismo) e pouco impor para que as coisas mudem (parecendo seguir o modelo das praxes que tanta repulsa causam), abrem-se mais hipóteses de que de académico se passe a pop-star. E deixando-se obnubilar pelas luzes da ribalta, não só permite que se tome a parte pelo todo, como crie invejas, por um lado, e pseudo-indignados por outro. Estarão no primeiro lado os que chegaram ao topo sem impacto para além do jardim que cultivaram, e no outro quem com ainda alguns tiques de superioridade acha que, com casos como os de Raquel Varela, não perde a Academia, em particular as Humanidades e as Ciências Sociais, a oportunidade de contribuir para que a “contemporaneidade” não seja sinónimo nem de vazio, nem de dragonas de erudição. E onde se permite que ecoem as vozes que sussurram a rasteira expressão do “andam todos ao mesmo”. Neste caso, o “mesmo” são palmas e louros, já agora convertidos em mais alguns euros, porque esta é uma elite que está longe de auferir os salários de outras corporações onde, às vezes, até se faz “uma perninha” no privado, sem desprimor, para aconchegar.

Os professores universitários no topo, mais que os dos institutos politécnicos por princípio conscientes do retorno da formação para a sociedade, deveriam repensar muito bem, não o seu lugar inquestionável na criação e transmissão de Conhecimento, mas o perfil de quem lá querem a fazer mexer a máquina. Não vai ser fácil. Sobretudo se continuarem a afastar de si quem, não brilhando constantemente em público, faz e bem, trabalho de sapa; ou os que brilhando quando têm de brilhar não esquecem que são um entre pares. Aproveitem-se estes dois perfis, ó Academia, e os engulhos da espuma do dia serão ultrapassáveis sem figurinhas.