23.11.21

As arrelias na saúde

 Se dúvidas houvesse sobre as dinâmicas sociais e os seus impactos no quotidiano, relacionadas com o chamado “elevador social”, as notícias dos últimos dias sobre o estado do SNS confirmavam-mas. Note-se que estou a falar das “notícias sobre” e não do “estado do”. Este último não poderá nunca ser um estado perfeito, não só porque todos queremos sempre mais e melhor, mas desde logo porque se sabe que todo o montante recolhido pelo Estado ao cobrar IRS não chegará para pagar o que custa cuidar da saúde dos portugueses.


Imagem eloquente, este elevador social, que normalmente se aplica às oportunidades contemporâneas de não se ficar num lugar menos privilegiado, onde se nasceu, e “subir-se na vida” por maior disponibilidade financeira. E este patamar altaneiro corresponderia a outras consideradas vantagens, socialmente valorizadas por padrões que trazem ainda características de um passado onde nem todos, nem mesmo os mais afortunados, se sentiriam naturalmente integrados.

No trabalho e nas profissões da área da saúde, os senhores doutores e as senhoras enfermeiras, assim mesmo com distinção de género e tudo, tinham lugares muito distantes um do outro na bolsa de valores sociais. Felizmente foi ultrapassada esta cristalização e este enquistamento que vedava, ou dificultava, o acesso de muito boa gente, pessoas mesmo excelentes, às duas profissões. Mas a necessidade de hierarquias parece ser uma característica humana que se reflete na organização social. Tudo isto sucedendo não sem algumas arrelias, porque quem sobe, no tal elevador, vai à procura do paraíso que imaginava lá estar e não encontra. Quem lá está, nesse patamar, vê-se no meio de mais pares com quem competir e, muitas vezes, arreliado porque não chega ter título e nome, mas lidar com o que de bom e mau define um ser humano. E os que não sobem porque o elevador está cheio e o direito de admissão se faz por critérios de uma hierarquização diferente, também ficam muito aborrecidos. Pessoas a terem de se adaptar a novos critérios ou, talvez ainda pior, a velhas tácticas que eram próprias de níveis privilegiados e que, agora, também andam no elevador a fazer paragens em vários andares, como grupos de miúdos a fazerem brincadeiras parvas. E estas, quando descobertas, incomodam até os que também, de vez em quando, fazem esse tipo de “reinação”.

O que é certo é que tudo isto me leva a olhar para as arrelias na saúde como um novo retrato identitário destas duas classes, como as novas classes operárias, as do século XXI, herdeiras das do século XIX. E a recordar os movimentos sociais que usavam os “sabots”, as socas de madeira calçadas pelos operários que, quando descontentes com as condições de trabalho, punham a encravar as máquinas, criando-se até a palavra “sabotagem”. E não deixa de me permitir fazer uma leitura muito orientada e “cheia de agenda” da velha história da Cinderela, claro, mas é nisso que deixo os ouvintes/leitores a pensar…

Às vezes estas situações, vindas de quem trabalha na área para que estudou anos a fio com investimento próprio mas também público, parece-me que se prestam a que se diga que “isto é gozar com quem não trabalha”. Sendo o “com” entendido até nas duas valências: “com” no sentido de em conjunto, leitura malévola comum de fazer a distinção entre emprego e trabalho (e todos sabemos do que se trata); ou “com” no sentido de opor duas condições, os que têm e os que não têm trabalho. Eu cá conheço muita gente, jovem e trabalhadora, que tendo estudado para ter uma profissão, ainda anda à procura de um lugar nela. E estes, perante as arrelias de doutores e enfermeiros, também têm direito a “tugir e mugir”, pois têm.