23.3.21

Secretas, discretas, concretas

 Numa semana em que o medo em várias das suas matizes, que vão do medo da morte ao da perda de popularidade, atrasou o eventual fim da situação pandémica, tivemos direito, para baralhar prioridades, a parangonas sobre assuntos que não interessam nem ao Menino Jesus. (E olhem que se há coração d’oiro, onde cabem todos e para quem todos interessam, diz-se que ainda é o do Menino Jesus.) Entretenimento em vez de informação, resumindo. Falo da proposta do PAN, actualizada agora com mais estardalhaço pelo PSD, em que, está bom de ver, o que se quer mesmo é saber quem faz parte da Maçonaria.


Desimaginem-se os mais distraídos que o assunto é preocupação com transparência e combate à corrupção. Se assim fosse, andavam mesmo era todos preocupados em conhecer bem os contornos, e explicá-los, sobre as disparidades dos preços das vacinas para a mesma doença. Ou as dificuldades para aprovar tratamentos ou terapias preventivas, sobre os quais temos todos os meses notícias de avanços científicos (falo do cancro mas outras haverá), quando para a SARS-CoV-2 só demorou um ano. Ou, também e ainda, esta guerra de nomes de farmacêuticas, tratada pela comunicação social e por quem lhes arranja conteúdos, como se se tratasse de um desafio Pepsi (referência a um spot publicitário de há uns anos), e que serviria era para nos mostrarem como se prova que a sanha generalizadora contra o público em favor do privado tem bom argumentário contraditório.

Foi assim que se passou uma semana com sabor a “vida em suspenso”, como se esperássemos e temêssemos um mau diagnóstico. Mas distraídos do importante, por quem se entretém em querer legislar a bisbilhotice em relação a quem pertence a comunidades de que podemos pensar o que quisermos, e aceitá-las, desde que não sejam um bando de malfeitores. É que para se controlar esse tipo de bandos já não é preciso mais legislação, parece-me. Até porque dos vícios que se acusam certas agremiações, como são também os Partidos por exemplo, estão os bairros, os empregos e as casas de famílias cheios: a cunha e o jeitinho são a instituição com que muitos enchem a boca e chamam, louvando, “proximidade”.

Fica a impressão de que, em troca da fiscalização necessária do que nos rasteira a vida concreta, se anda a tentar dar palco , ou cadafalso, a grupos de pessoas que têm tempo e vontade de conviver em privado, esperando que o façam agora de acordo com as normas sanitárias. Parecem fazê-lo, esses sócios, fraternos, companheiros ou camaradas, ao abrigo de um capital simbólico e patrimonial conquistado em tempos mais difíceis do pensar livremente, o que é democraticamente louvável. Mesmo que o façam com práticas e rituais, mais ou menos anacrónicos ou alegóricos ou carnavalescos, a que aderem por vontade própria e com a satisfação de passarem a ser mais uns de uma elite que se deseje, se calhar até com uma certa pena, discreta.

Parto do princípio que a discrição é uma coisa muito boa, e que se identifica, não com clandestinos, mas muito mais com quem não se pavoneia, nem precisa de apregoar por aí as suas eventuais virtudes. Pessoas que por usarem um pin, entoarem uma ladainha, vestirem um invulgar hábito, todos conotados com práticas e pensamentos benévolos, sabem que não é por isso que não devem agir todos os dias para que os possam usar sem os desmerecer.

Se há quem, não precisando destas etiquetas, lhe baste dar a cara e predispor o peito às balas de causas comuns, haverá quem ao usá-las saiba bem que elas representam uma responsabilidade acrescida. E é com estas pessoas que me apetece contar. Até para decidirem como me comunicam as suas intenções. Estas podem ser secretas, porque o segredo é um direito, sem ser malévolas; ou podem ser discretas, por não precisarem de recompensa pública. E se essas intenções mexerem positivamente com a nossa vida colectiva, que a lei já existente decida que, saindo da virtualidade se possam tornar concretas, sem dolo nem crime.