Junho é o
mês dos Santos populares, os da casa, que saem para a rua com o chegar do calor.
Diferentes e os mesmos nas diversas zonas do nosso país, da aldeia mais
interior à capital e arredores, do bairro à avenida, onde há um deles sempre
com festa mais rija, às vezes por razões que se perderam no tempo. Cá para mim,
tem a ver com este jeitinho humano de que sempre que haja uma boa desculpa, com
a bênção do santo, se possa arejar do “ram-ram” dos dias, de preferência aqui
ao pé de nós mas também com o argumento de dar uma espreitadela na festa da
vizinhança. O assunto prolonga-se Verão adentro, com a desculpa do santo, da
padroeira ou da tradição que alarga o altar até ao adro e o transforma em
recinto de festas com bailarico, febras e sardinhas.
Mais
recentemente também os festivais de música começam logo em pré-Verão, tão em catadupa
vão sendo que reclamam este espaço extra no calendário. Nestes mandam as tábuas
onde se inscrevem as leis do negócio, porque se o entendimento do mundo se pode
explicar com o divino, mantê-lo a rodar com as leis da natureza, mantermo-nos
nele implica esforço humano.
Todas elas
são festas que são trabalho para muitos e inegável ócio para muitos mais. Uma
indústria de lazer, de espetáculo, mas também de tradição que ou é mesmo, ou se
vai fabricando rezando aos santinhos todos para que pegue a moda e fique o
gosto, e os euros possam continuar a chover como fogo-de-artifício no céu,
velinhas que se acendem para haver motivo de voltar-se para o ano, promessa
cumprida e a repetir.
O assunto, a
par de uma leitura apaixonante que tenho estado a fazer de um jovem autor,
Afonso Cruz, fez-me refletir sobre o conceito de cultura. Um conceito de definição
tão extensa, abrangente e vária que, quem a quer hierarquizar, com critérios de
geometria variável apesar da intenção científica e precisa, distingue a
cultura, num lugar cimeiro de um escala difusa e ligada ainda assim a vários
saberes específicos, de um outro substantivo plural, mais coletivo, culturas,
saco grande para arrumar tudo o resto em aparente igualdade de oportunidades.
Há ainda uma expressão “de cariz cultural”, ou equivalente, que deixa ao gosto
do utilizador desse bem assim classificado meter no saco ou elevar ao nível
singular. Para mim, a noção de cultura que melhor serve a fluidez do conceito,
disse-o Pessoa, como outros o disseram de outras formas: «Cultura não é ler
muito, nem saber muito; é conhecer muito.» Ou seja, para mim, as pessoas cultas
não se medem todas pela mesma escala. Ao que diz Pessoa acrescentaria a
partilha, mas isso sou eu que não sou poeta.
Ao Afonso
Cruz enquanto escritor (como ilustrador já o conhecia), tive o privilégio de o
ler em “manuscrito” na sua primeira obra premiada, já que fiz, com o António
Torrado, parte do júri em que atribuímos o primeiro lugar unanimemente e com
muita satisfação, em 2009, ao Os livros
que devoraram o meu pai. Cumpriu-se o que já ali prometia e temos hoje um
escritor, para além de um ilustrador e de um músico, porque o Afonso Cruz é também
membro da banda Soaked Lamb que Évora
já teve a oportunidade de ouvir na Feira do Livro de 2010.
Mas o que
importou para esta crónica é que o último livro por ele publicado e premiado, Para onde vão os guarda-chuvas, uma
metáfora da morte, nos fala dela e da vida, e das diferentes culturas de as
ligar à existência humana, isto é, a religião. Um ecumenismo que é também
literário, quase me atrevia a dizer, até porque o próprio livro enquanto objeto
é todo ele um lugar de confluência e convocação de várias artes que ali caibam.
Desconheço, e não é uma condicionante, a fé do autor, mas parece-me que o que
ali temos, para além do prazer da leitura, ajuda qualquer leitor a crescer na
sua própria cultura religiosa, para além da literária, claro. Mais do que as
diferenças nas devoções, uma cultura religiosa nunca o é se não se confrontar,
com a devida tolerância civilizacional que se espera de quem é culto, com
outras, conhecendo-as. Aconselho vivamente.