17.6.14

Cultura da simpatia

A simpatia devia ser obrigatória quando não é inata. Não sendo, arranjamos-lhe equivalência a civismo, talvez e para arranjar terminologia académica em época de exames. Não é a mesma coisa mas já dá para passar no trato quotidiano em que pessoas têm de interagir umas com as outras. Também lhe pode valer a cordialidade, cuja etimologia até está próxima do coração, ou a atenção, mais cerimoniosa. Mas são tudo áreas afins, também com a sua dificuldade em se adquirir ou, em algumas circunstâncias, estando lá, de demonstrar. Já a simpatia tende a ser mais natural e por isso cultivá-la podia bem ser uma forma de tornar a vida em sociedade mais fácil.
O Vergílio Ferreira, que não ficará seguramente para a história com a imagem de um homem simpático, mas para quem o lê e pela forma como se afirmou no panorama cultural português isso já não interessa nada, escrevia que "Não se tem simpatia se não houver seja o que for de admiração: tem-se apenas tolerância ou piedade." Esta simpatia é a dos sorrisos e restantes gestos que não são de fachada, mas que vêm de dentro independentemente de se sentir a tal admiração para com quem se é simpático ou porque, no sentido inverso, não se sendo espontaneamente simpático o outro com quem lidamos nos “obriga” a uma atitude simpática. Essa de que fala Vergílio Ferreira será aquela para a qual muita gente de difícil trato se deve então reservar, poupando-se no dia-a-dia, em tolerar ou apiedar-se dos outros com quem se cruza ou, mais sinceramente, sendo antipático, com todos os riscos daí decorrentes.
Quem está pouco habituado a lidar com a simpatia dos outros dificilmente se torna simpático se não o for já intrinsecamente, e isto por razões várias e tantas vezes compreensíveis pois das amarguras de cada um só o próprio sabe. Lá se disfarça às vezes, e ainda bem, com o civismo, o que faz com que muitas vezes esse esforço seja meritório. Já a tolerância e a piedade de que fala o autor, e que facilmente se confundem com simpatia, são em meu entender equivalências diretas para querer lidar o menos possível com quem as sente ou pratica.

Falo também de cultura da simpatia porque tantas vezes essa característica é tomada numa forma coletiva e atribuída a determinados povos ou comunidades, e até usada no marketing turístico. E este é um assunto recorrente, nesta época do ano quando folheamos brochuras de destinos turísticos. Confesso que acho essa distinção coletiva altamente promotora de comportamentos algo xenófobos e a roçar o incentivo ao comércio da banha da cobra. É uma espécie de contrafação do que é a simpatia enquanto característica humana e, porque não até dizê-lo e esticar o universo de convivência, do reino animal. Quando assim é, a simpatia afinal não é sequer por admiração, nem mesmo por tolerância ou piedade. Não é um traço de sentimento mas uma técnica de manual. Por isso também, quando as coisas me correm mal com quem tem no seu CV essa característica de simpatia por decreto, lá consigo pensar “ao menos foi simpático”.  Sim, porque há quem ache que a simpatia é incompatível com a sinceridade, a honestidade ou a transparência e, de facto, pouco tem a ver com estas características. E se uma não disfarça a falta das outras, as outras podem, e devem digo eu, coexistir com ela sem a desvalorizar. Cultivar a simpatia é, afinal, todo um complexo programa de crescimento que não só beneficia os outros como nos faz bem a nós. Cultivemo-la, então.