Quando crianças absorvemos com muita atenção e curiosidade os
relatos de episódios de vida dos mais velhos. Dou por mim a lembrar-me em
particular de um relato das muitas viagens que a minha mãe começou a fazer,
após os 25, o de abril e o de novembro. Tendo vivido intensamente a Revolução e
o PREC, a senhora apressou-se a visitar a União Soviética acompanhada de
fervorosos adeptos do regime em vigor aí então. Era uma excursão organizada
pela Associação Portugal-URSS que agora se chama Associação Portuguesa de
Amizade e Cooperação Iúri Gagárin. Talvez julgasse vir de lá tão maravilhada
como Jorge Amado ou, no limite, apenas com um olhar mais crítico como
Graciliano Ramos, autores brasileiros comunistas que a propósito de visitas
semelhantes escreveram interessantes relatos: Jorge Amado escreveu O mundo da paz, em 1951, mantendo sempre
a postura do militante obediente, já Graciliano Ramos viu a publicação das suas
críticas serem altamente combatidas pelo aparelho partidário que, ainda assim,
não conseguiu impedir a publicação de Memórias
do Cárcere em 1953 e Viagem em
1954. Certo é que a senhora minha mãe chegou um bocado “debotada” nas suas
convicções mais avermelhadas, não só pelo que efetivamente viu e testemunhou,
como pelo convívio com companheiros de viagem que vieram de lá a dizer coisas
do género: “as picadas dos mosquitos soviéticos não causam tantas comichões
como os daqui” ou “o frio é mais suportável lá do que cá”, e outras que tais,
parecendo ter regressado de uma nova Atlântida ou da Ilha da Utopia. Como se
tudo o que lá existisse fosse apenas e só o estado final e mais avançado a que
Humanidade poderia chegar.
Ora existe um termo, déjà-vu,
importado do francês, que traduzido à letra dá em “já visto”, e que se aplica
ao conceito que descreve uma experiência que muitas pessoas têm de sentir que
já se tinha presenciado anteriormente uma situação que está a decorrer no
presente. O déjà-vu é muitas vezes
referido na cultura popular. No cinema, por exemplo, a trilogia Matrix mostra o
déjà-vu como uma alteração percetível
num sistema a meio caminho entre o real e o virtual e Déjà Vu é também o título de um filme protagonizado por Denzel
Washington, em que o fenómeno é explicado sob a forma de avisos enviados do
passado e de pistas para o futuro. Esta palavra parece até condensar uma outra
expressão que ouvimos muito em português: o “eu já vi este filme”.
Pois o que me parece é que esta Évora comunista relatada pelo
executivo e seu aparelho - que a maioria dos eborenses, que quiseram votar,
democraticamente elegeram - é um episódio de déjà-vu que só pode ter explicação quando revisito as memórias e o
relato daquela viagem à União Soviética de 77. O lixo que transborda dos
caixotes desta Évora comunista é agora inodoro; o branco dos muros é muito mais
branco quando a trincha é comunista; os voluntários têm muito mais vontade
porque Évora é comunista; as ervas nos passeios agora comunistas são até bem
decorativas; os espetáculos que apoiam a atividade cultural da Câmara comunista
são agora todos dignos de transmissões diretas em canal aberto; o Salão Nobre
comunista é agora muito mais nobre e o Teatro Garcia de Resende voltou a ser
municipal e aberto sem dificuldades nenhumas pelos comunistas; as palmas
comunistas são sempre arrancadas do fundo dos corações dos eborenses com muito
mais sinceridade e emoção. Isto só para mencionar alguns dos muitos exemplos
que poderíamos encontrar. Um arrepiante déjà-vu.