11.11.14

Déjà-vu

Quando crianças absorvemos com muita atenção e curiosidade os relatos de episódios de vida dos mais velhos. Dou por mim a lembrar-me em particular de um relato das muitas viagens que a minha mãe começou a fazer, após os 25, o de abril e o de novembro. Tendo vivido intensamente a Revolução e o PREC, a senhora apressou-se a visitar a União Soviética acompanhada de fervorosos adeptos do regime em vigor aí então. Era uma excursão organizada pela Associação Portugal-URSS que agora se chama Associação Portuguesa de Amizade e Cooperação Iúri Gagárin. Talvez julgasse vir de lá tão maravilhada como Jorge Amado ou, no limite, apenas com um olhar mais crítico como Graciliano Ramos, autores brasileiros comunistas que a propósito de visitas semelhantes escreveram interessantes relatos: Jorge Amado escreveu O mundo da paz, em 1951, mantendo sempre a postura do militante obediente, já Graciliano Ramos viu a publicação das suas críticas serem altamente combatidas pelo aparelho partidário que, ainda assim, não conseguiu impedir a publicação de Memórias do Cárcere em 1953 e Viagem em 1954. Certo é que a senhora minha mãe chegou um bocado “debotada” nas suas convicções mais avermelhadas, não só pelo que efetivamente viu e testemunhou, como pelo convívio com companheiros de viagem que vieram de lá a dizer coisas do género: “as picadas dos mosquitos soviéticos não causam tantas comichões como os daqui” ou “o frio é mais suportável lá do que cá”, e outras que tais, parecendo ter regressado de uma nova Atlântida ou da Ilha da Utopia. Como se tudo o que lá existisse fosse apenas e só o estado final e mais avançado a que Humanidade poderia chegar.
Ora existe um termo, déjà-vu, importado do francês, que traduzido à letra dá em “já visto”, e que se aplica ao conceito que descreve uma experiência que muitas pessoas têm de sentir que já se tinha presenciado anteriormente uma situação que está a decorrer no presente. O déjà-vu é muitas vezes referido na cultura popular. No cinema, por exemplo, a trilogia Matrix mostra o déjà-vu como uma alteração percetível num sistema a meio caminho entre o real e o virtual e Déjà Vu é também o título de um filme protagonizado por Denzel Washington, em que o fenómeno é explicado sob a forma de avisos enviados do passado e de pistas para o futuro. Esta palavra parece até condensar uma outra expressão que ouvimos muito em português: o “eu já vi este filme”.

Pois o que me parece é que esta Évora comunista relatada pelo executivo e seu aparelho - que a maioria dos eborenses, que quiseram votar, democraticamente elegeram - é um episódio de déjà-vu que só pode ter explicação quando revisito as memórias e o relato daquela viagem à União Soviética de 77. O lixo que transborda dos caixotes desta Évora comunista é agora inodoro; o branco dos muros é muito mais branco quando a trincha é comunista; os voluntários têm muito mais vontade porque Évora é comunista; as ervas nos passeios agora comunistas são até bem decorativas; os espetáculos que apoiam a atividade cultural da Câmara comunista são agora todos dignos de transmissões diretas em canal aberto; o Salão Nobre comunista é agora muito mais nobre e o Teatro Garcia de Resende voltou a ser municipal e aberto sem dificuldades nenhumas pelos comunistas; as palmas comunistas são sempre arrancadas do fundo dos corações dos eborenses com muito mais sinceridade e emoção. Isto só para mencionar alguns dos muitos exemplos que poderíamos encontrar. Um arrepiante déjà-vu.