Prosseguindo às voltas e em volta do
conceito de cultura, neste dia de Portugal, falarei sobre a cultura da
solidariedade, algo que podendo ser inerente à bondade quase inata das pessoas,
também se pode ensinar e tornar-se uma prática civilizacional na organização de
uma sociedade evoluída. De certa forma, este cultivar da solidariedade,
surgiu-me a propósito de alguns assuntos recentes, sendo um deles o facto de se
terem passado e assinalado os 70 anos do desembarque na Normandia, Dia D que
marca a solidariedade dos povos aliados e que queria aqui simplesmente evocar.
A solidariedade às vezes parece-se
com os almoços, que nunca são de graça. E tal como a caridade está para o
estado social, também o antepassado mais comum da solidariedade se pode
confundir com o conceito, por exemplo, de favor. Relações que hierarquizam
forças entre quem pode mais e menos, mas de forma não absoluta, isto é para
sempre, mas circunstancial, ou seja, em diferentes momentos da vida. É esta
declinação do conceito de solidariedade que o autor francês das fábulas La
Fontaine evoca quando escreve "Há que, na medida do possível, prestar
favores a toda a gente: quantas vezes não precisamos de quem é menos do que
nós."
Este princípio da solidariedade que
existe também entre os Estados, por exemplo da União Europeia, mesmo quando em
alguns desses Estados se implementem políticas neoliberais que põem em causa o
próprio papel do Estado, faz com que todos contribuam para uma espécie de
conta, com quantias dependentes das diferentes situações económico-financeiras
de cada um, de forma a que, quando um deles atravessa um período de crise, todos
os outros contribuam para essa situação de emergência. Foi o que até Portugal
fez, em relação à Grécia ou, numa escala maior que a europeia, aquando da
tragédia do tsunami na Tailândia também várias nações contribuíram para ajudar
aquele país. Claro está que estas doações são feitas partindo do princípio que
aqueles a quem é doado se empenharão em recompor-se, até porque aquilo que
damos agora pode fazer-nos falta mais tarde e devemos esperar para além da
solidariedade a reciprocidade. É aqui que entra a história dos almoços que
nunca são grátis…
Tudo isto parece-me simples de
entender, quando o caminho é evitar que haja os cada vez mais pobres e os cada
vez mais ricos. As pinturas murais do tempo do PREC eram muito claras em
relação a esta espécie de justiça social, ainda que só se referissem ao
primeiro movimento de dar e não ao outro de retribuir. E refiro-me em
particular às frases como «os ricos que paguem a crise» da extinta UDP que têm
agora um outro discurso mais elaborado, mas que todos continuamos a perceber,
que é o de taxar as grandes fortunas.
Está bom de ver que quando se dá
alguma coisa a alguém se investe nesse alguém ou no relacionamento que se tem
com esse alguém, esperando-se a dita reciprocidade. Por isso nos indignamos
quando vemos a Alemanha a indispor-se quando tem de ajudar a Grécia ou
Portugal, como se nós com esse dinheiro não fossemos até comprar produtos
exportados pela Alemanha. O que é estranho é ouvir da boca de certos
governantes que entendem que os governos que estão mais folgados não estão
naturalmente dispostos a ajudar aqueles que, por razões várias e nem sempre de
responsabilidade própria, têm menos capacidade de governar para que os seus
cidadãos tenham o mesmo bem-estar social que os outros. Mas aconteceu.
A Câmara de Évora esteve presente na
discussão de uma proposta do Governo sobre a criação do Fundo de Apoio Municipal,
um fundo que servirá para os municípios recorrerem em caso de dificuldade e
para o qual contribuirão os municípios e o estado central. Na discussão, que
ainda decorre, as partes ou dotações que cabiam a uns e a outro eram
visivelmente desequilibradas, sobretudo quando pensamos em autarquias que se
substituem ao estado central em inúmeras áreas, dada a relação de proximidade e
conhecimento do território. Mas eis senão quando o que também suscitou dúvidas,
imagine-se, foi o facto de as autarquias que estão em boas condições
financeiras terem de dar mais do que as outras. Desta vez e neste caso, os
ricos não estão para pagar a crise! Onde está então a cultura da solidariedade?