13.10.11

«Uma dignidade desonra aquele que a não honra»

A dignidade humana não escolhe género, raça ou condição social. Todo o ser humano é dotado desse preceito, que constitui o princípio máximo do estado democrático de direito. O filósofo alemão Kant, que defendia que as pessoas deveriam ser tratadas como um fim em si mesmas e não como um meio, escreveu o seguinte: «No reino dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem preço, pode ser substituída por algo equivalente; por outro lado, a coisa que se acha acima de todo preço, e por isso não admite qualquer equivalência, compreende uma dignidade."  
Esta crónica não tem nada a ver com o movimento dos indignados que tem crescido nestes tempos de instabilidade, em que a falta de respostas para um futuro mais próximo cria nas pessoas um medo natural, por vezes incontrolável, e que pode evoluir em acções de grupos, e se exigem soluções onde elas por vezes não existem.  
Esta crónica tem a ver com uma acção lamentável, de que a maior parte dos ouvintes não terá tido notícia completa, e que decorreu durante uma Reunião Pública de Câmara. Estas reuniões públicas são momentos em que todos os vereadores se encontram para decidirem sobre matérias políticas que dizem respeito, grosso modo, ao Concelho, às actividades que nele decorrem e aos cidadãos.  
Ora aconteceu que na semana passada alguns cidadãos de duas freguesias do Concelho foram surpreendidos pela actuação de uma empresa de transportes privada com quem a Câmara Municipal tem relações protocoladas, e em que existe uma comparticipação por parte do município nos serviços por ela prestados e que, naquele dia, por atraso de pagamento da parte da Câmara Municipal decidiu cobrar aos utentes um serviço pelo qual não tinham de ser cobrados. A indignação da população teria sido natural se todo aquele cenário não tivesse sido já previsto, e quem sabe orquestrado, para de forma oportunista jogar com a fragilidade de populações afastadas das escolas e dependentes dos transportes para usufruírem daquilo a que têm direito. Não foram, por isso, as crianças à escola nessa manhã, mas vieram no autocarro da Junta de Freguesia à tarde até ao Salão Nobre da Câmara Municipal acompanhados dos seus Encarregados de Educação. 
Àqueles dois presidentes de Junta, eleitos por aquela gente, não assistiu a dignidade de tratar condignamente o assunto entre instituições – a Junta de Freguesia e a Câmara Municipal – tendo preferido, sabe-se lá à conselho de quem, organizar uma espécie de comício no lugar e no tempo de trabalho da vereação e de esclarecimento de questões públicas.  
Muito mais poderia ser dito sobre este caso em particular, mas dele quero apenas falar-vos da imagem que me assaltou naquele momento em que no final daquela reunião, onde se tratou com o público de esclarecer o que tinha corrido mal e como se tinham resolvido as coisas, o desespero de cidadãos em situação social muito frágil deu lugar a cenas de descontrolo de gente visivelmente transtornada e que deveria ser acompanhada e não exposta daquela maneira.  
Lembrei-me das fotografias de Sebastião Salgado, o fotógrafo brasileiro conhecido por entrar em países e comunidades onde a pobreza e a guerra reinam e onde a dignidade humana parece não ter lugar. E digo parece porque o olhar que se projecta na objectiva da máquina fotográfica daquele artista descobre sempre no meio da desgraça e da miséria a dignidade. Sebastião Salgado não podendo salvar o mundo daquela situação, salva de facto, através da sua Arte cada uma das expressões e dos movimentos – individuais ou colectivos –, a dignidade que existe naqueles seres humanos. E o resultado da sua Arte corre mundo alertando para que algo de maior seja feito por quem, num juntar de competências e vontades, se une para tentar resolver os problemas. 
Quem organizou, idealizou ou sonhou aquela manifestação com aquela gente boa mas desesperada, fazendo a reivindicação através daquelas pessoas, aproveitando-se delas, usando-as por isso como um meio e não como um fim, foi alguém que não sabe o que é a dignidade humana, alguém a quem não foi dado a conhecer o sentido e o sentir do que é a honestidade, o respeito, a integridade ou a justiça. E como diz o Povo: "Uma dignidade desonra aquele que a não honra.”