23.11.11

A verdadeira afeição na longa ausência se prova

Fala-se ultimamente também muito em afetos. Pergunto-me se não é um sinal de tentativas, não naturais mas culturais porque pela mão do Homem, de encontrar o equilíbrio necessário a um ecossistema social que ameaça descambar. E às vezes começa-se pela linguagem, para chegar ao sentimento e acabar no gesto.
Li esta semana uma citação de Florbela Espanca que circula pelas redes sociais, extraída da sua correspondência e datada de 1916, que diz o seguinte: "Eu não sou como muita gente: entusiasmada até à loucura no princípio das afeições e depois, passado um mês, completamente desinteressada delas. Eu sou ao contrário: o tempo passa e a afeição vai crescendo, morrendo apenas quando a ingratidão e a maldade a fizerem morrer." Confesso que desconhecendo o contexto de tais afirmações da poetisa, se possa no entanto entendê-las como reflexo da angústia pessoal e sentimental que caracterizou a sua vida.
Afinal, quando falamos de afetos falamos sempre de subjetividades e sentimentos, pelo que quando assistimos a um discurso de um líder político ou a alguém que não nos é próximo e com quem temos só, e eventualmente, uma relação profissional – ou seja uma relação que decorre de cada uma das profissões que cada um exerce e nada mais – possamos estranhar que se invoquem os afetos. Parece linguagem que se esperaria mais pragmática e menos poética.
Pondo, então, de lado qualquer referência ao discurso amoroso que, como dizia o velho mas tão atual Eça, é coisa da poesia aninhada nas saias já enxovalhadas das eternas damas que canta, fiquemo-nos pelo afeto no discurso mais prosaico. Julgo que a expressão verbal dos afetos seja um caminho para se falar diretamente das pessoas enquanto “não-números”. Se os números são importantes e espelham realidades, eles, de facto, refletem a racionalidade que vulgarmente se adjetiva de fria e distante. A alguém que evoque a afeição sem perder de vista a razão tem, forçosamente, que se dar tempo para se saber se não é apenas figura de retórica e se os sentimentos se transformarão em atos ou se permanecerão unicamente no domínio do discurso. A ação de um político que inspire confiança, ainda que pelo discurso possa evocar os afetos, não pode, no entanto, pôr de lado a razão na ação, obrigando-se à ponderação, à moderação e à não transformação da paixão em não-solução ou solução inviável ainda que sentimentalmente atraente.
Também devo acrescentar que já ouvi ao vivo e expressamente dirigido a mim um discurso sobre afetos que me deixou absolutamente perplexa. Tratava-se de falar de verbas e contrapunha-se a sua ausência com o tal apelo aos afetos, dando afinal como resultado desta equação, aparentemente tão sentimental, que se esse resultado não se traduzisse em euros então os afetos também não estariam lá. Não querendo também misturar alhos e bugalhos, parece-me que estas buzzwords ou palavras da moda, como tantas outras que por aí surgem, precisam de tempo para passarem a ter conteúdo e refletir ação, deixando de ser ornamentos. É como diz o provérbio «A verdadeira afeição, na longa ausência se prova».