5.7.11

O efeito-pega

Não sou particular aficionada das touradas ou qualquer outro tipo de espectáculo tauromáquico, mas tenho batido o meu record pessoal, fraquito é certo, de sua espectadora neste último ano. Confesso que não sofrendo com os toiros ou os cavalos, não fico muito à-vontade com as espetadelas e as cornadas que se distribuem durante as touradas e incluo-me naquele grande grupo que vê nas pegas a parte mais interessante do alinhamento tradicional. Aprendi também que este é um momento que só formalmente inclui a tourada, ao que parece, desde 1836 quando D. Maria II proibiu os touros de morte, e a pega passou a ser o finalizar da lide dos cavaleiros. À cor, ao quase bailado, à música e ao entusiasmo do público, que considero constituírem a face mais visível destes eventos, culturais dê lá por um der, é na luta homem-toiro que vejo a coragem desta prática tradicional. 

Já Hans Christian Andersen (esse mesmo, o dos contos) num pequeno livro-guia que escreveu aquando da sua viagem desde a Dinamarca até Portugal, descreve as suas impressões sobre uma pega, a que assistiu em Setúbal e onde, inclusive, se deu a morte de um dos forcados. Aqueles momentos de confronto são consequentemente momentos de grande tensão, onde o único ser que parece estar calmamente a dominar a situação é o touro.

Mas o que para mim é mais intrigante é toda uma postura do público e das suas manifestações em aplausos em momentos bem definidos. Os forcados são aplaudidos em duas situações: quando sofrem forte e feio o impacto e os arremessos do animal, e parece que quanto mais levam mais aplaudidos são; ou quando a pega custa a dar-se por falta de colaboração do touro – chamemos-lhe assim! – e o primeiro elemento, chamado o forcado da cara, tira o barrete e desiste, recomeçando tudo de novo. Há depois ainda a tal pega de cernelha, para determinadas circunstâncias em que os touros se mostram menos predispostos a colaborar, imagine-se, para que a pega corra bem, para o lado dos forcados, claro. Há no fundo sempre uma solução para que a luta aconteça.

Esta prática ou tradição premeia assim aqueles que mais dificuldades têm, numa demonstração ancestral da máxima que diz que quanto mais forte é o adversário maior é a vitória, e já agora acrescentaria eu, e caso se apliquem as circunstâncias, a derrota (situação que no caso das touradas não acontece mas é tema para anedota popular e conhecida em várias línguas). Vencer ou ser vencido por alguém mais frágil será sempre um desmérito.

É este um princípio da guerra, da luta, da guerrilha, do conflito, que tem como fim o eliminar de um dos adversários e nunca a cooperação. Parece-me bem na tourada. Parece-me menos bem, como estratégia, e mesmo quando eufemísticamente chamamos a algumas situações uma tourada, quando se pretende que de um conflito entre partes nasça algo de positivo para todos.

Confesso que nesta tourada de S. Pedro, onde os Forcados Amadores de Évora aguentaram as pegas todas e com muita bravura, enquanto assistia, pouco atenta, ao desenrolar do espectáculo – um espectáculo que o extinto Ministério da Cultura no relatório final de Julho de 2009 do estudo sobre o sector cultural e criativo em Portugal não inclui directamente, o que me leva a perguntar-me se não estará o toureiro, porque os forcados são amadores, incluído neste sector de actividades, até porque o Regulamento taurino fala-nos de artistas tauromáquicos, mas adiante – dizia eu que enquanto assistia às pegas, me apercebi de que mesmo não morrendo na arena, mesmo quando o sangue no traje do forcado é “só” do touro, todos saem feridos, mas os racionais saem também contentes, permitindo um gozo fátuo mas muito legítimo aos espectadores que pagam para ver, e uma sensação de vitória merecida a quem foi capaz de levar a luta até ao fim.

Fez-me pensar muito esta minha nova maneira de ler as pegas. E só consegui mesmo retirar esse prazer do privilégio de poder, com o exercício dos raciocínios, das lógicas, das associações de ideias e dos simbolismos de bolso, ir construindo visões do meu mundo actual e do relacionamento que tenho tido com tantos. E foi também bom chegar ao fim e continuar a dizer: “The show must go on” o que não é por aí mais além de bonito do que dizer “Olé!”