23.12.11

A desgraça de Portugal dá-lhe três cheias antes do Natal


Porque esta é a última crónica antes do Dia de Natal, lá procurei nas minhas fontes um provérbio que à quadra se referisse. E não é que encontrei um que a modos que me lembrava a situação de muitos portugueses face à austeridade instalada? Dizia assim a primeira versão: «A desgraça de Portugal dá-lhe três cheias antes do Natal». Das outras versões, uma parece confirmar o sentido desta, mas a outra parece dizer precisamente o seu contrário.
Confusa com estas variantes, tentei vários exercícios de interpretação, que foi coisa que eu durante toda a minha vida tenho feito, enquanto professora de literatura, mas não só. E não é que cheguei à conclusão, talvez um bocado ficcionada porque isto nas crónicas pode ter destas liberdades, de que há nestas três versões uma gradual atualização, um upgrade como agora se diz! Vejamos as versões do provérbio pela tal ordem que acabei por lhes dar: 1º «A desgraça de Portugal dá-lhe três cheias antes do Natal»; 2º «Se queres a desgraça de Portugal dá-lhe três cheias antes do Natal»; e 3º «Mal vai Portugal se não há três cheias antes do Natal».
Ou seja, de uma constatação sobre a meteorologia, que sempre deu um jeitaço a quem usa da sabedoria proverbial para se orientar no mundo rural e agrícola, a sentença popular evoluiu para uma erudita versão irónica sobre uma certa maneira de olhar para Portugal. Uma certa maneira até fatalista. Senão vejamos…
O provérbio confirmado pelas duas versões semelhantes parece atestar que uma das desgraças de Portugal são as três cheias antes do Natal. Este ano ainda não dei por nenhuma grande cheia e ainda bem. Se calhar houve-as e quem me ouve há-de estar a dizer que eu vivo num mundo aparte e que havia de ter à minha porta a desgraça que lá têm à deles. O que é certo é que até hoje, dia em que escrevo estas linhas e faltam uns dias para o Natal, não houve assim notícia de grandes inundações provocadas por amostras do Dilúvio. Outras notícias de outras enxurradas, e mais de três, e algumas que têm a ver com Natal e férias, têm sido muito noticiadas e comentadas, e têm-nos feito a alguns mais desgraçados, mas enfim, isto são desabafos. E nem ouso dizer que existiram esses fenómenos porque se quis a desgraça de Portugal…
A última versão «Mal vai Portugal se não há três cheias antes do Natal» faz do nosso país um lugar onde a desgraça é uma espécie de estado civil da nacionalidade, e nem se é bom português se não se souber e sentir na pele o que é um trio de desgraças (e antes cheias que outras piores) para comemorar o nascimento do Menino como uma espécie de final o mais feliz possível a rematar o ano civil. Para quê lamentarmo-nos de mais alguma coisa se conseguimos ultrapassar as malfadadas três cheias da praxe?!  
Esta convivência com a desgraça, e muito em particular com as cheias, que parece o provérbio ditar-nos, entrega-nos ao lamento e ao conformismo, o que afinal só nos prepara para irmos levando com elas e as ir encarando como um património imaterial, mais natural porque meteorológico, muito próprio, e que importa acarinhar como parte intrínseca de um modo de ser português. Eu cá prefiro mesmo achar que estamos a ser castigados através da intempérie por erros de sempre, lá do tempo de Afonso Henriques, e que a expiação um dia terminará. Não sabemos é quando, porque as coisas já pareceram melhor encaminhadas…
A lógica de tudo isto, retirando a explicação geográfica e meteorológica, científica portanto, e que deve existir mas eu desconheço, a lógica deve ser a mesma do Fado e da Saudade. Explique-a quem o canta e quem a sente, se conseguir! Entretanto, um Feliz Natal a todos os ouvintes e até para a semana!