8.12.20

Pensar arde, como o amor (mas diz-se também que o que arde cura)

 Como é habitual, e é bom que assim seja, quando alguém importante morre todos se unem para o chorar, ou melhor ainda, para o recordar. Fazem-no, normalmente, de acordo com o que lhes convém, o que diz mais de quem recorda, evoca e cita, do que da própria personalidade que se vê, assim, recortada, pulverizada e ajeitada aos “descontextos”, mais ou menos próximos dos contextos da obra original.


Nos últimos dias da semana passada falámos e ouvimos muito falar de pensar, de escrever, de palavras. De repente, parecia não apenas que toda a gente conhecia Eduardo Lourenço (e por conhecer digo saber o que ele fez mesmo ao longo da vida, com impacto público), como finalmente parecia generalizar-se a importância das disciplinas e áreas do conhecimento que vivem com as palavras como lugar antes da acção. De repente, parecia que tínhamos retomado um bom rumo, nem retrógrado, nem esgotado, mas desviado pela sobrevalorização do empreendedorismo, dos softskills, do coaching que atropela tudo para se colar e equiparar à transferência de conhecimento (expressão também eufemística usada para não ofender quem não gosta de perder tempo a ensinar ou a aprender). De repente, parecia que se valorizava o tempo que um homem passa a ler jornais e o tempo que lhe damos para o ouvirmos falar sobre o que aprendeu neles. Uma valorização de quem ganhou com a distância para conhecer melhor os seus e a sua terra, ao contrário da popularucha ideia de proximidade que se vende barato em tantos discursozecos de púlpitos de acrílico no largo da nossa terra.

Também eu (que ouvi, ao vivo, o Professor muitos anos depois de ter lido o seu Labirinto da Saudade para ensinar, ou tentar ensinar, Cultura Portuguesa sem só fazer o estúpido exercício de me substituir a uma enciclopédia que nunca serei, debitando factos), também eu fiquei presa a um detalhe de uma entrevista que ouvi nestes dias e em que, à boa maneira das entrevistas, vive da história de vida do entrevistado. Eduardo Lourenço abre uma nesga para a sua intimidade, deixando-a tão velada quanto antes, mas permitindo-me imaginar sobre ele tanto quanto todos os anos que tenho usado a estudar o Amor retratado na Literatura me permitem.

Há dois anos, o intelectual, o pensador, o filósofo e professor disse ao jornal Expresso: “A única coisa de que me arrependo é de não ter estado à altura da pessoa que encontrei na minha vida e que a marcou para sempre”. A afirmação comoveu-me. Pela saudade da mulher amada, pela consciência de uma falha tão grande quanto o amor que lhe votava. Espectadora desta confidência, a mim pouco me importa saber o que se passou exactamente, em detalhes que só a eles diriam respeito. Mas consigo imaginar um sem número de situações que, podendo ter provocado o arrependimento, nunca chegarão para justificar a falha. E apesar da inteligência, apesar da humildade, apesar da devoção, apesar do encantamento com que se consegue ler o mundo e os seres humanos, a entrega na relação amorosa parece ter-se tornado na tarefa mais difícil do indivíduo que, como tantos outros, foi Eduardo Lourenço.

Pensar como quem faz arder a consciência parece, afinal e também, o único remédio que lhe aplacava a dor, fosse ela perda ou falha, transformando-se em arrependimento nada redentor. Apenas um ajuste de contas, lançando mão do raciocínio privilegiado que, com o Tempo, acaba. É bonito quando se vive tão intensamente com o melhor que a inteligência humana permite até ao fim. Mesmo já só a arder em pensamentos.