10.11.20

Os Outros e o Papa

Vou falar de religião. Sei que é assunto delicado, motivo de desavenças e guerras, sobretudo quando discutido entre crentes. O que me aconchega o ego por já não ter de tomar parte nem partido, mas me entristece porque vem comprovar, mais uma vez, como uma boa ideia pode ser tão estragada. A religião é, na minha opinião em que não estou desacompanhada, o resultado de um caminho para organizar a vida dos seres humanos, guiados por princípios que promovem, naturalmente, o que se convenciona chamar o Bem. Admito, por isso, sentir alguma pena por não conseguir apaziguar o meu espírito, nas tantas vezes em que se desassossega, depositando a solução e o destino na vontade de um Outro superior e todo-poderoso. Ele apazigua-se, mas requer muita energia e paciência.

Também aprendi, neste pequenino mundo religioso de marca judaico-cristã que conheço, e desta feita com os cristãos protestantes, a não idolatrar seres humanos, mesmo que algures no seu percurso tenham feito muito e merecido um lugar especial num qualquer altar. Isso e a ideia de que não há cá extrema-unção no final de uma vida de sacanices que garanta, em jeito de repescagem, um lugarzito razoável no Além. Essa ideia do arrependimento final, que até “passa” bem, dá cabo do trabalho de quem tenta convencer por ter a responsabilidade de educar para uma vida de justeza, não sem sacrifícios ou revezes, e se vê ultrapassado por “sacanas de outra lei”. Enfim, nada de mais se comparado com o que por aí se faz em nome da religião, ou da apregoada relação “segurança vs religião”, e revela que por trás de cada justiceiro-criminoso desses está uma turba que acha até muito bem...

E resolvi falar de religião porque a lição da história nos ensina que esta acaba sempre por se misturar com política. Quer Trump, quer Bolsonaro foram legítima e democraticamente eleitos para os cargos que ainda ocupam muito à conta do uso da religião, ou de uma das múltiplas formas de viver a religião, que tendo origem no Protestantismo encaminhou a maioria do seu rebanho no seu voto. Igrejas que se multiplicam para abarcar almas amedrontadas reclamando orientação. Congregações sem liderança que evite derivas discricionárias e de interesse comum duvidoso. Sem uma chefia forte e influente no palco do Mundo, como a dos católicos mesmo com um passado de que não se podem orgulhar, essas polimorfas estruturas descendentes do Protestantismo nem sequer têm a hipótese de fazer sair do buraco quem conteste o líder e se sujeite ao julgamento dos pares.

A mim, nada disto me incomodaria muito, não fosse dar-se o caso de estas igrejas encontrarem figuras homólogas do Papa em cada paróquia ou palanque. E estes se constituírem em Trumps e Bolsonaros, ou seja, líderes idolatrados, o que a sua própria congregação deveria recusar por princípio. Ao menos havendo um Papa, posso sempre dar umas boas gargalhadas quando oiço católicos praticantes, como o Dr. Ventura a proferir alarvidades ou a retorcer a conversa para contestar a postura, lá está, cristã e por isso institucional, do seu líder. E partilhada por muitos e sérios protestantes. Querem lá ver que o André um dia destes descola das Lajes e vai a Roma despentear o Papa?