27.11.12

RECORDAR

O verbo “recordar” vem nesta crónica a propósito de fotografias. Havia até o slogan da Kodak, passo a publicidade, que dizia que «recordar é viver». Não me referirei apenas a imagens em fotografias, mas também a imagens que os textos têm o poder de nos fazer criar nas nossas cabeças – imaginar, portanto - quando nos descrevem ou narram determinadas situações. Tenho até um amigo ilustrador que diz que se os fotógrafos afirmam que uma imagem vale mil palavras, um ilustrador afirmará que uma palavra vale mil imagens.

Vem então este “recordar” e esta crónica a propósito das imagens da miséria. Eu, que ainda sou do tempo das imagens da fome no Biafra, que passei pela onda das campanhas de solidariedade com os Etíopes, assim todos metidos no mesmo “saco”, assisto agora à produção caseira, nacional, de crónicas e textos volantes com descrições escancaradas da miséria, dos quais o menino das bolachas parece ser um best-seller. Apetece-me, face a este fenómeno que, nalguns casos, é de óbvio marketing para mais visualizações e venda de “exemplares”, falar de duas coisas: das fotografias do Sebastião Salgado, que já uma vez, ou mais, evoquei, e da memória das pessoas. Das pessoas comuns que veem televisão ou leem jornais ou, já agora, ouvem rádio.

As fotografias desse grande artista brasileiro, Sebastião Salgado, marcadas por um discurso, ainda que visual, de intervenção política e social, de denúncia de situações de desigualdade e de exploração humana, nunca colocaram num lugar rasteiro as pessoas. Denunciam, sim, denunciam, mas sem retirar a dignidade aos explorados e às vítimas. Aliás denunciam porque são belos e a beleza, ou a bondade, incomoda os cínicos, muito mais do que o discurso miserabilista que vai direitinho ao encontro dos objetivos de quem parece gostar de ver os outros amarfanhados.

Ao contarem histórias de desgraçadinhos e divulgarem imagens de miseráveis parece que o assunto é coisa nova. Parece que nunca houve, ou que já alguma vez deixou de haver, gente explorada. Não é a expor sem dignidade as pessoas que se faz algo por essas mesmas pessoas ou se evita que outras pessoas a estas se juntem. E aqui, quase me estava a pôr em posição de defender a senhora de nome Isabel… E punha, não fora ela alinhar no discurso dos que acham que esta miséria é uma mortificação necessária à ressurreição da espécie humana, portuguesa, e desalinhar do sentido cívico e cooperativo de que os Bancos Alimentares, enquanto parceiros de uma rede social efetivamente cooperante, devem e podem ser.

Não estou, longe disso, a falar de esconder as vítimas da miséria, porque também há quem o faça para vender a imagem de que ela não existe. Mas estou a falar em protegê-las de quem usa e abusa delas no seu discursozinho choramingueiro. Mais eficaz que tudo isto é, por exemplo, denunciar as toneladas de peixes deitadas fora por não cumprirem os pesos e as medidas comunitárias e, na mesma notícia, revelar o aumento do número de refeições fornecidas por instituições de solidariedade social que há largos anos, mesmo quando parece que eramos todos ricos e vivíamos acima das nossas possibilidades, já faziam da solidariedade um valor muito para além do mero discurso retórico e que serve bem e ajuda à festa de quem acha que os que sofrem são todos uns piegas.