26.11.19

Cancel culture or mankind?!*


De entre os inúmeros acontecimentos que dariam motivos para fazer uma crónica, o que não é exclusivo desta (crónica ou cronista), houve um que chegou do fora mais longe e sobre o qual me apetece falar. Em Londres, a propósito de uma exposição do Gauguin que está a ter um enorme êxito, levantou-se um movimento de gente que quer censurar o artista. Está a ser o que se chama um movimento de “cancel culture”.
Gauguin, que viveu entre 1848 e 1903, parece ter tido uma vida pouco ou nada recomendável nos parâmetros de comportamento que são agora os das regras da boa convivência social. Entre relacionamentos com menores e referências aos habitantes da Polinésia, onde viveu e que retratou, como “selvagens”, nada abona a seu favor se quisesse nascer de novo hoje. Aconteceu a Gauguin, como a outros que partilham o facto de já cá não estarem para responderem enquanto cidadãos, mas de quem nos lembramos pela obra.
Este semestre estou a celebrar os 300 anos de As Aventuras de Robinson Crusoé que Daniel Defoe escreveu e John Lang divulgou entre jovens leitores durante quase outras tantas centenas de anos. Como podem imaginar, reler este texto, o que faço todas as semanas em voz alta, capítulo a capítulo, à luz dos comportamentos que promovemos hoje é todo um exercício de contextualização e de alertas para um outro exercício constante do que se chama pensar o progresso e evolução civilizacional. Nada tem a ver só com Arte, tendo tudo a ver só com Arte.
Vivemos tempos em que a busca da felicidade do indivíduo, demanda sem novidade, se reveste de um problema de distopia. Entenda-se aqui este conceito como o vivermos num mundo que queremos construir fora de uma realidade, criando universos que colocam em lugares e tempos diferentes os mesmos objectos e acontecimentos destes daqui e de agora. É sabido que com a internet, que nos mantém ligados à volta do mundo, se criou um caldo propício a estas leituras, já que faz circular Informação fora do contexto real e, nessa linha, possa tornar-se mesmo num apelo, ou já um espelho, do delírio. Mas recuso-me a pôr-me do lado dos que vão pelo caminho fácil de a diabolizar, à Internet, um produto da inteligência humana herdeiro do fogo, da roda, da tipografia e da televisão, e que até nos ajuda a conhecer melhor os que nela, Internet, actuam.
Nem todos podemos mudar o Mundo, como certas personalidades que se tornam por isso figuras públicas, artistas incluídos, contribuem para o fazer. Essas mudanças, mesmo quando promovem coisas boas, são feitas por seres humanos que são, não apenas “o Homem e a sua circunstância”, mas misturas de células e emoções que se revelam diferentemente, e felizmente, consoante estejam em público ou em privado. E é por isso que nós, os mais comuns destes mortais que compõem a Humanidade, talvez também ganhássemos em pensar melhor o que fazemos quando usamos espaços públicos de opinião a que cada vez mais temos acesso.
Não temos que mudar, assim de repente, o Mundo que percebemos estar tão mal, nem tão-pouco deixar que este nos expulse dele e nos prive de bens só pelo seu mau uso de alguns, mesmo que sejam muitos. Não podemos mudar o Mundo assim de repente para tão pior, que é o que parece estar a acontecer, mas podemos começar a usar as celulazinhas cinzentas para o melhorar. E aprender é o verbo. Cancelar a cultura é tão grave como perpetuar liminarmente a tradição. É como querer cancelar a Humanidade. E desistir.


*Usei “mankind”, que é a tradução de Humanidade, não apenas à boleia do idioma do conceito de “cancel culture”, mas também porque na azáfama das causas igualitárias a história das palavras também apanhou por tabela. Talvez devesse haver (ou se calhar já há) um qualquer neologismo que dessexualizasse o termo...