26.2.19

Era uma vez a ADSE


Era ainda o terceiro mês de 2018, mas já não era a primeira nem a segunda vez que, naquele ano, ela ia fazer aquela cirurgia urgente. O problema parecia estar a tornar-se, para além de agudo, crónico. As consultas, porque podia escolher mesmo sendo beneficiária do subsistema de saúde chamado ADSE, eram em hospitais particulares. As cirurgias, daquelas que se fosse numa sala de espera das Urgências do hospital público teriam direito a atendimento de  pulseira vermelha, também tinham sido assim, urgentes. Num ou noutro hospital privado, empresas diferentes, consoante o dia que o cirurgião tinha um ou outro na agenda. E esta cirurgia seguia a mesmo caminho, desta feita em hospital privado, muito antigo e modestinho de aparência, nada desses novos impérios da saúde com instalações que parecem aeroportos.

Também este, mesmo sendo mais modesto ao estilo hotel de charme, tinha a convenção que aligeirava os custos da “coisa”. Como ela já conhecia também o método da gestão desta parte burocrática, feita com o desespero de quem está fragilizada pela situação, sabia que uma quantia mais elevada era pedida à partida e que mais tarde viriam acertos para aliviar. Daquela vez, no entanto, espantou-se com o quão mais elevada era a quantia. Só mais tarde se deu conta da polémica que estava a começar a ouvir-se sobre a ADSE e os Privados quanto ao preço dos chamados “actos médicos”. Assinatura para aqui, depósito para ali, no meio dos papéis vinha uma novidade: uma tabela, em branco, que anunciava em cabeçalho tratar-se da lista dos materiais médico-cirúrgicos que seriam utilizados. Ela pediu desculpa à pessoa que a atendia, que não era nada de pessoal, mas que por princípio não assinava folhas em branco. Que não fazia mal, respondera a pessoa amavelmente, que quando viesse mais tarde acertar as contas que assinaria a tabela já preenchida com a listagem exacta do que tinha sido usado. Passadas poucas semanas assim o fez. Regressou para receber a quantia que lhe era devida pelo acerto. Ninguém lhe pôs nada à frente para assinar, mesmo depois de ter perguntado pelo dito papel e confirmado se estava tudo certo e acertado.

Meses depois, após vicissitudes várias que tornavam não só o seu caso num caso grave,  como a tinham tornado a ela própria numa quase especialista destas andanças de hospitais, consultas, cirurgias urgentes, num entra e sai, numa recibo-factura-original-duplicado, para cá e para lá, regressou a esse mesmo hospital para aquela que desejava mesmo muito que fosse a última das cirurgias àquele estupor daquele problema. O conflito ADSE-Privados ainda não se tinha extremado como está agora. Mas naquele mesmo hospital voltaram a fazer-lhe a mesma proposta – indecente, está bom de ver – para que assinasse uma folha em branco com a lista do material que usaria, etc., etc. Como se costuma dizer, o mesmo enredo.

Ora digam-me lá se esta história, que não é da carochinha, não senhor, apesar do “Era uma vez” porque não foi só uma vez, e que aconteceu mesmo que eu sei, não nos deixa a magicar sobre o quanto material médico-cirúrgico a utilizar terá ido parar a contas de beneficiários da ADSE?... Como diria o Fernando Peça, aqui há muitos anos, na televisão: “- E esta, hein?”