Lara não é nome de tempestade, é o
nome da menina de dois anos vítima mortal de violência doméstica, das nove que
já se contabilizaram só este ano em Portugal. Como no anúncio que passa nas
televisões, tão chocante quanto o tema e em que se encena um julgamento a um
confesso criminoso por violência a uma idosa, muitos somos os cúmplices destas
situações, com desfechos mais ou menos graves. Quem nunca ouviu dentro de uma
casa vizinha, ou de um carro estacionado, uma discussão mais acesa entre duas
pessoas e cuja, ainda assim, intimidade que as parecia proteger nos impediu que
interrompêssemos a perguntar se estava tudo bem, quanto mais a comunicar
eventual ocorrência à autoridade mais acessível? Quantas dessas discussões
terão resultado numa escalada de violência que tenha causado danos irreparáveis
nos seus intervenientes? Do aparentemente simples amarfanhar emocional capaz de
condicionar possíveis futuras relações de um indivíduo, mulher ou homem, ao
assassinato, tudo pode ter começado com essa discussão. Definir os limites
parece não ser difícil até ao momento em que se tenha de passar à acção.
“Meta-se na sua vida!” é a resposta que em público envergonha qualquer cidadão
que só queira mesmo viver assim.
A denúncia, em particular em Portugal
onde há ainda tantas sombras pidescas a acusarem-na, é um procedimento
preventivo. E é até uma das formas do controle social que funciona em
sociedades cujas regras em público são mesmo para cumprir e não simulacros de
que andamos a fazer as coisas de acordo com regulamentos que exigimos e
aprovamos. Mas quando o que parece estar a correr mal acontece em privado
mesmo, é difícil descobrir qual o limite que se ultrapassa e, muitas vezes, já
só quando a violência é física e pesada se consegue percebê-lo para agir. E a
violência física é mais do que o grau zero da violência. Esse, o grau zero, é
por vezes tão silencioso quanto devastador e insultuoso. Erguer a voz para
discutir acaloradamente um assunto, mesmo que pessoal, não é, no entanto, o
mesmo que insultar. Mas o insulto, cada vez mais banal, e por vezes até em
discussão pública, tende a ser cada vez menos penalizado. Por exemplo, em
certas situações onde até aparece envolto em falinhas mansas ou de inspiração
bíblica. E sim, uma sentença num caso de julgamento por violência que se
transforma em julgamento por adultério, é uma situação cúmplice da defesa da
violência.
A violência doméstica não é nem pode
continuar a ser um monopólio das questões da igualdade de género, cuja promoção,
temos obviamente de reconhecer, veio desempenhar um primordial papel na sua
denúncia. É uma questão de saúde pública, de intervenção social, de educação. E
não falo da educação do sistema de ensino, mas de um sistema composto, em que
são intervenientes todos quantos por dever têm actuações em público e que têm
de ter consciência que são modelos ou exemplos que outros vão seguir. E é por
isso que, numa época em que em público se faz tanto ou mais do que se diz, já
parece não chegar dizer para não se fazer. Os vícios e as virtudes descem sem
vergonha à rua, pelo que não chega evocar ou fazer sentir a vergonha para
punir. Ela é até já só mais um motivo para justificar a humilhação e, portanto,
reprovável. Parece, então, que talvez tenhamos chegado à época em que a lei
afinal tem mesmo de servir para moralizar. E, descomplexadamente, tentarmos
limpar-lhe a patine dos credos para a revestirmos com o manto da dura realidade
que a sociedade tem de enfrentar, sem ilusões de castigos adiados em nome de
entidades supra-humanas. Uma espécie, mas a sério, do “cá se fazem, cá se
pagam” com intermediários em campo, já que nem ninguém é bom juiz em causa
própria, nem quem tem que defender causas deve julgá-las sem contraditório. Não
é fácil, pois não, mas talvez esse acabar com o sentimento de impunidade
tivesse evitado toda uma vida de um indivíduo que levou à morte de Lara.