Os sem-abrigo são a face mais visível da miséria na sociedade
e existem porque o homem se sedentarizou e estabeleceu regras de convivência e
funcionamento que nem todos têm como forma de vida desejada ou permitida. Em
maior número nas grandes cidades, mais raros nas cidades médias, onde muitas
vezes são figuras conhecidas, a razão de ser dessa sua condição difere e
distribui-se, quase como numa taxonomia, em vários casos. As afirmações do
secretário-geral do maior partido da oposição, relativamente a estes já mais de
4000 cidadãos portugueses que vivem nestas condições, levantou vozes de
acusação pelo irrealismo que a sua promessa de debelar este problema social,
quando for governo, parece conter. Mas levantou também um alerta para estes
milhares de cidadãos nestas condições específicas. Ora, é sabido, e é também a
isso que se referia Seguro, que a falta de emprego e um deficiente
acompanhamento, e até acesso, a cuidados de saúde são, na esmagadora maioria
das vezes o que provoca a instabilidade e empurra para a miséria os muitos
sem-abrigo pelo mundo inteiro. Resolver o problema dos sem-abrigo é também não
deixar que estes problemas aumentem.
O “sem-abrigo”, nome generalizado que de certa forma substituiu
a palavra “mendigo”, é aquele que, por uma ou mais razões, não tem, nem procura
solução, para o seu problema habitacional. É o que faz da rua o seu lugar de
vida a tempo inteiro. E se alguns são resilientes adaptados a uma vida onde
foram parar sem querer, habituando-se a lá ficar numa reação que não pode
servir de desculpa ao resto da sociedade para não tentar contrariar, outros
parecem assumir o estatuto como uma filosofia de vida que, quem o não é e siga
modelos de vida ditos normais, dificilmente entenderá. Mas também aqui, não há
como não tentar que estas pessoas tenham a oportunidade de escolher outra forma
de vida.
Conhecendo casos de diferentes lugares, aqui e no estrangeiro,
a quem, oferecida solução esta foi recusada, os sem-abrigo têm também o dom de
nos confrontar, quando com eles nos cruzamos, ou encontramos mesmo, com uma
face da loucura que nos coloca problemas de reação. Já que um sem-abrigo por
convicção é sempre alguém que desafia uma ordem, não sabemos se consciente ou
não desse desafio, vivemos entre a dificuldade de os considerar diferentes ou
iguais perante os deveres e, por isso também, perante os direitos, os deles e
os dos outros.
Anatole France, autor e crítico francês do virar do século
XIX, pega precisamente na figura do sem-abrigo para falar desta dificuldade em
generalizar, mas da necessidade de o fazer, sobre o que esperar de um
sem-abrigo convicto. Ele afirma numa das suas obras que "a majestosa
igualdade das leis, (…) proíbe tanto o rico como o pobre de dormir sob as
pontes, de mendigar nas ruas e de roubar pão." Longe de pensar que a
filosofia do sem-abrigo é uma excentricidade de ricos e pobres, ou arriscava-me
a pertencer ao clube de boutades
Jonet, tantas vezes penso que há leis que ao proibirem têm mesmo a função de
obrigar o legislador a encontrar a solução antes, ou pelo menos ao mesmo tempo,
de punir os seus infratores. E esta é uma frincha do mundo da justiça por onde
às vezes passam os casos mais injustos.