A data não
pode ficar-se pelo feriado, nem pelo nome da ponte ou da rua ou do largo. 40
anos é ainda algum tempo. Algum, nem muito nem pouco, que isto do tempo, como
de outras imaterialidades, mais ou menos palpáveis, é muito relativo. A outra
data, a de outubro, o cinco, mal tinha feito 100 anos e já deixava de ser
feriado… Muito barulho, muita indignação, mas os eleitos pelo Povo, os que o
Povo, ou parte dele (qual terá sido a parte? A cabeça? O coração? Ou só a mão que
desenha a cruz?), os que o Povo elegeu decidiram e ficou decidido. É assim que
funciona quando vivemos em democracia e quem nos governa pode ser escolhido, de
quando em vez, pelo Povo que é quem mais ordena, que é o mesmo que dizer que é
quem põe ordem nisto. E é por isso, também, que o 25 de abril de 74, que hoje
celebramos, é de todos e não de alguns que se acham os seus donos e evocam um
estatuto de pureza imaculada para representarem o Povo, como se assim não o
estivessem também todos os que são eleitos para ditar os destinos do país, no
governo ou na oposição. (Sim, a oposição também tem o poder de se juntar para
deitar abaixo governos ou, no lado oposto, permitir que boas medidas sejam
implementadas.) É que hoje todos somos Povo, aos olhos de quem governa e que
tem, ou deve ter, para connosco, o Povo, o sentimento, e a ação que lhe
corresponda, de compromisso. O poder que temos, ó Povo, de de quando em vez
podermos pôr ordem nisto…
Mas o Povo, o
que foi unido há 40 anos, parece ter reencontrado o medo. Um medo estranho,
porque afinal 40 anos dá para esquecer os outros medos: o medo de se dizer o
que se pensa e o medo de se pensar diferente; o medo de se ter nascido pobre e
não se ter oportunidade de sair dessa condição; o medo de se ser mulher, pobre
ou rica, e ter vontades que só o homem pode ter; ou o medo de se ser homem e
amar outro homem, ou mulher e amar outra mulher, pobres e ricos, e ter de o
fazer às escondidas, porque fazer fazia-se sempre, claro. E o medo da guerra. O
dos homens que iam e o das mulheres que os ficavam a ver ir. Fosse só esse o medo
a acabar-se naquele mês de abril de 74 e já tinha valido tanto a pena! Não
podíamos ter deixado de lembrar isto a cada rapaz ou rapariga que fez 18 anos
nos últimos 40 anos. Não podemos deixar de lembrar isto a cada rapaz e rapariga
que fará 18 anos de hoje em diante.
Mas há um
medo novo e estranho que vem chegando. Um medo que se vai expressando no número
de não participantes na escolha de quem nos governa, como se um perigo se
levantasse com aquela cruz secreta que se faz com alguma convicção – não digo
muita, nem pouca – mas com o sentido cívico que nos foram ensinando e que fomos
adaptando em ritmos muito próprios, personalizando o civismo: primeiro foi a
novidade do voto, depois foi o ritual que como qualquer ritual evoca esse
primordial gesto criador, depois passou-se a escolher em que ocasiões valeria a
pena ir cumprir o ritual. Como crentes, sim, mas maus praticantes. Até que
parece que muitos começaram a achar que nem valia a pena lá ir, acabando sempre
a ser governados por quem não escolheram, mas sentindo-se livres por dentro
para não se culparem pela escolha, como se isso os livrasse dos desgovernos e
não tivessem que amochar como aquele que tendo escolhido quem o governa se
arrepende depois de o ter feito. E o arrependimento que efeito terá? Levá-los-á
a fazer a cruz noutro lado? Levá-los-á a reafirmar que aqueles são os que
melhor defendem as suas ideias, os seus princípios, ainda que não sejam as
melhores pessoas para o fazerem? Ou trará o medo de se voltar simplesmente a
fazer a cruz? E como combater este medo, novo e estranho?
40 anos depois, não podemos deixar de festejar o fim
de tantos medos, mas não podemos deixar de voltarmos a unir-nos e com as armas
que conquistámos – a liberdade de pensar, de nos organizarmos, de votarmos, sim
de votarmos – não deixarmos que a democracia, que é quando o Povo é quem mais
ordena, se entorpece e nos assuste. Este é espírito do 25 de abril, aquele que
vive da cidadania e do civismo que partilhamos todos, e não apenas alguns que o
tentam monopolizar. Este é o espírito que me faz lembrar-vos que o sempre é já
hoje e repetir a expressão «25 de abril sempre!».