25.4.14

O Povo unido é quem mais ordena

A data não pode ficar-se pelo feriado, nem pelo nome da ponte ou da rua ou do largo. 40 anos é ainda algum tempo. Algum, nem muito nem pouco, que isto do tempo, como de outras imaterialidades, mais ou menos palpáveis, é muito relativo. A outra data, a de outubro, o cinco, mal tinha feito 100 anos e já deixava de ser feriado… Muito barulho, muita indignação, mas os eleitos pelo Povo, os que o Povo, ou parte dele (qual terá sido a parte? A cabeça? O coração? Ou só a mão que desenha a cruz?), os que o Povo elegeu decidiram e ficou decidido. É assim que funciona quando vivemos em democracia e quem nos governa pode ser escolhido, de quando em vez, pelo Povo que é quem mais ordena, que é o mesmo que dizer que é quem põe ordem nisto. E é por isso, também, que o 25 de abril de 74, que hoje celebramos, é de todos e não de alguns que se acham os seus donos e evocam um estatuto de pureza imaculada para representarem o Povo, como se assim não o estivessem também todos os que são eleitos para ditar os destinos do país, no governo ou na oposição. (Sim, a oposição também tem o poder de se juntar para deitar abaixo governos ou, no lado oposto, permitir que boas medidas sejam implementadas.) É que hoje todos somos Povo, aos olhos de quem governa e que tem, ou deve ter, para connosco, o Povo, o sentimento, e a ação que lhe corresponda, de compromisso. O poder que temos, ó Povo, de de quando em vez podermos pôr ordem nisto…
Mas o Povo, o que foi unido há 40 anos, parece ter reencontrado o medo. Um medo estranho, porque afinal 40 anos dá para esquecer os outros medos: o medo de se dizer o que se pensa e o medo de se pensar diferente; o medo de se ter nascido pobre e não se ter oportunidade de sair dessa condição; o medo de se ser mulher, pobre ou rica, e ter vontades que só o homem pode ter; ou o medo de se ser homem e amar outro homem, ou mulher e amar outra mulher, pobres e ricos, e ter de o fazer às escondidas, porque fazer fazia-se sempre, claro. E o medo da guerra. O dos homens que iam e o das mulheres que os ficavam a ver ir. Fosse só esse o medo a acabar-se naquele mês de abril de 74 e já tinha valido tanto a pena! Não podíamos ter deixado de lembrar isto a cada rapaz ou rapariga que fez 18 anos nos últimos 40 anos. Não podemos deixar de lembrar isto a cada rapaz e rapariga que fará 18 anos de hoje em diante.  
Mas há um medo novo e estranho que vem chegando. Um medo que se vai expressando no número de não participantes na escolha de quem nos governa, como se um perigo se levantasse com aquela cruz secreta que se faz com alguma convicção – não digo muita, nem pouca – mas com o sentido cívico que nos foram ensinando e que fomos adaptando em ritmos muito próprios, personalizando o civismo: primeiro foi a novidade do voto, depois foi o ritual que como qualquer ritual evoca esse primordial gesto criador, depois passou-se a escolher em que ocasiões valeria a pena ir cumprir o ritual. Como crentes, sim, mas maus praticantes. Até que parece que muitos começaram a achar que nem valia a pena lá ir, acabando sempre a ser governados por quem não escolheram, mas sentindo-se livres por dentro para não se culparem pela escolha, como se isso os livrasse dos desgovernos e não tivessem que amochar como aquele que tendo escolhido quem o governa se arrepende depois de o ter feito. E o arrependimento que efeito terá? Levá-los-á a fazer a cruz noutro lado? Levá-los-á a reafirmar que aqueles são os que melhor defendem as suas ideias, os seus princípios, ainda que não sejam as melhores pessoas para o fazerem? Ou trará o medo de se voltar simplesmente a fazer a cruz? E como combater este medo, novo e estranho?
40 anos depois, não podemos deixar de festejar o fim de tantos medos, mas não podemos deixar de voltarmos a unir-nos e com as armas que conquistámos – a liberdade de pensar, de nos organizarmos, de votarmos, sim de votarmos – não deixarmos que a democracia, que é quando o Povo é quem mais ordena, se entorpece e nos assuste. Este é espírito do 25 de abril, aquele que vive da cidadania e do civismo que partilhamos todos, e não apenas alguns que o tentam monopolizar. Este é o espírito que me faz lembrar-vos que o sempre é já hoje e repetir a expressão «25 de abril sempre!».