29.2.12

Com dinheiro, língua e latim vai-se do Mundo até ao fim

Vou hoje falar do acordo ortográfico e de como este assunto tem tentado distrair-nos um pouco das zangas e transtornos que o tornado da austeridade anda a provocar nas massas. As letras têm destas coisas: levadas pouco a sério pelo povo, que até as faz rimar com tretas, volta e meia lá tomam posição no centro das conversas públicas, sobretudo quando em torno delas se gera ou prémio ou polémica.

Se economistas, juristas e gestores aparecem tantas vezes a opinar e dar parecer sobre tudo e mais alguma coisa, pouca gente ligada à linguística e à literatura é chamada a assunto dito “sério”. Certo é que o mundo da política tem várias figuras de especial relevo que vêm destas áreas, e está visto como o velho e bom Eça de Queiroz tem vindo a encher inúmeros comentários das redes sociais, essas “esquinas de palradores” – versão barata e minha de speaker’s corner – agora em versão cibernética. Mas o mundo das letras está sempre associado ao produto mais usado em momento de lazer, o livro de ficção ou poesia, o que parece tão secundário quando se trata de salvar um país de uma crise que se diz ser económica e financeira.

Seria muita presunção da minha parte que deste miolo do Alentejo saísse aqui e agora, e de mim, um manifesto sobre a importância da linguística e da literatura para a nação. Consciente, então, do meu lugar no mundo, resta-me usar esta minha crónica para opinar sobre assunto eventualmente mais ligado à minha área de formação, apesar de, já sabe quando entramos nestas áreas académicas a minha opinião, não sendo eu linguista – uma área científica específica e também ela constituída por múltiplas e micro outras áreas – ter também valor relativo.

Terá sido razão evocada para um novo acordo ortográfico, do qual já se fala há pelo menos 22 anos, quando entrei na carreira docente, uma aproximação ao português do Brasil, e talvez dos países africanos de língua oficial portuguesa. O número de falantes e escreventes, sendo maior nesses países, poderia fazer do nosso português uma versão mais próxima e modernaça, da do mundo mais novo que o nosso, o das Américas e das Áfricas. Este primeiro passo através da língua para propulsionar o nosso país, cheira-me no entanto a segunda escolha. Há um adágio que diz que com dinheiro, língua e latim, se vai do Mundo até ao fim. Ora, dinheiro não temos, mas língua e latim partilhamos com muitos. Esta podia ser uma razão, mas que me parece esfarrapada. Mais do que a ortografia, que mexe com a forma como se escrevem as palavras, é a sintaxe, ou seja e em explicação rápida, a maneira como as palavras se alinham numa frase e constituem o discurso, que mais nos distancia naquilo que temos de semelhante com os nossos irmãos brasileiros. Para não falar de expressões idiomáticas e vocabulário muito específico que, se mesmo no nosso retangulozinho, já vai variando, com um oceano pelo meio, poderão imaginar…

Parece-me que a razão do acordo, a ser esta, falhou. A outra seria a pura modernização, seguindo uma das leis que rege a evolução de uma língua ao longo da sua história e que é a lei do menor esforço. E isto é a sério. Cometerá menos erros ortográficos quem numa escrita comandada pela fonética (isto é pelos sons) escrever de forma mais semelhante à forma como se fala. Admito que esta explicação, mais honesta, me satisfaz. O que lamento é que, de facto, ela sirva para disfarçar um menor rigor na correção do uso da língua por escrito também. Porque continuaremos a ver “há” do verbo haver sem “h” e “à” contração de preposição com artigo com “h” e a ouvir “ir de encontro às necessidades” em vez de “ir ao encontro das necessidades”.

Confesso que já vou deixando, aqui e ali, cair espontaneamente umas consoantes mudas, porque não se dizem, e corrigindo com a ajuda do programa do computador umas consoantes duplas e uns hífens, mais conhecidos por tracinhos. Não me custa, não me complica a vida, não me distrai de outras coisas que, apesar do meu mundo das letras, considero mais importantes. Tolice seria fazer deste acordo o que fez um senhor que, se calhar, não encontrando mais nada de útil para se afirmar numa posição de poder que lhe foi oferecida, resolve fazer-se, com o acordo ortográfico, notícia. Outra houve que o fez com gravatas. Assim vão as grandes medidas dos poderosos de hoje, daqueles a quem a língua portuguesa sobreviverá por muitos mais séculos, com ou sem modernizações.

Fazer da língua, como o fazem poetas e escritores, momentos em que através dela olhamos o mundo e nos damos a olhar ao mundo, sabendo que mais do que a convenção da escrita é o sentido que damos às palavras, proferidas, ouvidas ou lidas, que pode também ajudar-nos a mudar ou prosseguir na nossa maneira de pensar, sentir e agir. Mas, infelizmente, fora do papel e do discurso, não chegam as palavras para se ir do Mundo até ao fim.