22.2.12

Quer no começo, quer no fundo, em Fevereiro vem o Entrudo

Em dia de Carnaval esta crónica ouvir-se-á, provavelmente, na sequência de notícias que só o serão por existir uma medida governamental, que talvez visasse instaurar nova tradição de programa neoliberal no que toca a práticas rituais, e que parece ignorar a festividade cíclica mais dedicada a excessos e folias e da que mais tradicional é em determinadas regiões do País.

Vulgarizada que está pelos meios de comunicação a manifestação carnavalesca híbrida de desfiles à brasileira com bailes de máscaras venezianos, há locais por este Portugal fora em que o Carnaval é vivido pelo Povo de forma intensa e em prática comunitária que, a par da modernização das nossas vidas, se vai mantendo. Em Évora também temos o nosso Carnaval, muito embora continuemos a assistir a um coro de vozes que sente a falta de corso semelhante aos tais híbridos mediáticos. É o Carnaval das Brincas, muito desconhecido entre os eborenses mais novos e de meios urbanos e que pela vontade, persistência e amor de alguns que se associam para criar este espetáculo, circula durante a quadra, de sábado a terça-feira, por bairros e lugares do Concelho, num total este ano de 16 atuações.

As Brincas são, no fundo, uma manifestação teatral, com um texto dramático escrito propositadamente para o efeito, e com o nome próprio de “fundamento”, representado por homens e mulheres por vezes travestidos, acompanhados de momentos musicais e atrapalhados por um pequeno grupo de palhaços que, como é próprio, vão fazendo palhaçadas com o público e no meio da representação, num desafio ao improviso. O modelo do espetáculo é fechado, o texto com autor conhecido é escolhido, preparado e ensaiado meses antes, e há uma série de rituais a serem cumpridos, como a existência de alguém a quem se pede autorização para que se realize o evento e com quem o Mestre das Brincas entabula uma conversa, em verso. Os trajes das personagens são também eles dignos de guarda-roupa de teatro, e os da banda com enfeites coloridos, caricatura dos acessórios que brilham em trajes de bandas “a sério”.

A primeira vez que assisti às Brincas de Évora fui imediatamente assaltada por memória distante mas viva, e que voltei a recordar há alguns anos na faculdade, das representações do Tchiloli na ilha de São Tomé. A semelhança dos trajes da banda, o enredo normalmente palaciano, o facto de a representação ser de rua e interagir com os espetadores, quanto mais não seja por conviver no mesmo espaço público, fez-me perceber que mais uma vez ali assistimos ao dinamismo da tradição. É que a própria representação em África do Tchiloli, que continua a fazer-se anualmente, tem origem num texto do século XVI do poeta popular cego Baltasar Dias, que nasceu na Madeira e foi autor de uma Tragédia do Marquês de Mântua e do Imperador Carlos Magno e que é até hoje representada com muitas adaptações em São Tomé e Príncipe.

Quando nos apercebemos da persistência e resiliência de determinadas práticas culturais que se tornam, ainda que para uma minoria, tão importantes; quando essas práticas locais se associam a momentos vividos por massas mais expressivas como as que festejam o Carnaval, ainda que com outro género de manifestações, marcando uma época no calendário cultural; quando tudo isto se conjuga, percebemos que em nome de nenhuma (duvidosa) eficiência para alteração do calendário se deverá contribuir à custa de práticas que, ainda que muito vividas pela população, o que por si só as legitimaria, sejam estudadas e defendidas por poucos, mas que constituem um património cultural a defender e divulgar.

Por mais ou menos conhecidas que sejam estas manifestações culturais por parte de gestores no governo, por mais ou menos respeitados que sejam os ritmos até religiosos, já que o caos carnavalesco também existe porque a seguir se entra no jejum e na regra da Quaresma, há momentos que do mundo cultural e religioso se adaptaram muito bem ao mundo económico, do turismo por exemplo, e é por isso que importa interpretar todos esses sinais e não tomar medidas que podem roçar o absurdo, eliminando momentos por vezes únicos em que o quotidiano, cada vez mais sombrio, das populações merece a pausa e o respeito. Como diz o adágio popular «Quer no começo, quer no fundo, em Fevereiro vem o Entrudo».