22.3.22

Quando numa folha de papel não se lê a palavra “guerra”

 Adultos da segunda idade, crianças e jovens, por aqui crescemos e fomos vivendo maioritariamente em paz, com a guerra lá longe. E com aquele costume de, inconscientemente, considerar o buraco, ou as ervas, na minha rua mais escandalosos do que a fome no Biafra. Problemas de primeiro mundo que dão cabo da nossa resiliência, pouca e mimada, treinada para a competição homem a homem (perdoem-me o anacronismo da padronização pela testosterona). Lutas por um lugar de relevância no seu nicho de relações, mais ou menos alargadas. Até se lhes encontra traços de empreendedorismo, retirando a especificidade das reais propriedades do conceito, juntando ambição desmedida, solta de limites éticos em muitos casos, ao que tem outro nome: competição.


A essa competição feroz entre indivíduos, chamamos, e percebemos agora que mal, guerra. Banalizámos, por ignorância da experiência, essa palavra. Como quando dizemos que estamos cheios de fome porque não petiscamos há oito horas. Pelo contrário, chamamos, e bem, guerra à luta contra inimigos difíceis de vencer, da droga ao cancro. Guerras que requerem esforços arrasadores e nos consomem o dia-a-dia. No fim, há apenas um vencedor, mas os, pelo menos, dois que se confrontam acabam arrombados, arrastando consigo muitos dos que os rodeiam.

Encontramo-nos no lugar desses que estão um bocado próximos de quem está em guerra. Até estamos próximos dos que nesta guerra são os invasores. E desse lado também assistimos, mesmo à distância, a uma luta particularmente cabotina, ou seja, e por palavras elas próprias menos cabotinas, uma luta de arrogantes e armados em centro das atenções. Refiro-me ao cancelamento da cultura russa. Afinal, tão semelhante às cenas em que as autoridades russas multam ou prendem manifestantes que empunham folhas de papel em branco. Foi a reacção das autoridades russas à leitura daquele papel em branco que lhe deu sentido: o gesto do resistente foi bem entendido no gesto do opressor. Deste “diálogo” saiu o que era para sair: o ridículo da opressão autocrática.

Aprender a ler o silêncio é uma tarefa difícil, porque, como bem sabemos, há o silêncio eloquente, o silêncio gritante, o silêncio respeitoso, o silêncio comprometido, e provavelmente muitos outros silêncios. Que esses nunca se confundam com o silêncio do que não quer saber, também ele cheio de mensagem a descodificar. Se a palavra “guerra” tem que se ler bem antes de se usar, o silêncio tem de se ouvir, com a inteligência que nos coube e a que damos uso constantemente.