2.3.21

A grande ilusão

Diz-se que o século XX foi o Século do Povo. Suponho que a designação teve muito a ver com o facto de as descobertas científicas e as invenções tecnológicas terem, de forma relativamente rápida, chegado a mais pessoas do que só a elites formadas de berço, proporcionando um maior bem-estar ao que genericamente chamamos Humanidade. Havendo ainda muitas desigualdades, a tendência do progresso nas democracias, que já são maioria no governo do Mundo, parecia um rumo em velocidade de cruzeiro e sem retrocesso. Ao fim de duas décadas de século XXI, e no princípio de uma crise sanitária pandémica que rapidamente se tornará numa crise económica e social, já percebemos que não será assim.

Entre progressos inquestionáveis na Ciência (vacinas em menos de um ano e sondas em Marte), os colectivos que compõem a chamada sociedade civil não estão a acompanhar o previsível que, assim, se revela só ser o desejável. Falemos, pois, da urgência de polir a Democracia, sem ilusões de que é do cidadão comum que depende não apenas o seu uso, mas a sua eficácia. As fragilidades da contrapartida dos direitos adquiridos, falamos da responsabilidade, revelou-se um ponto do contrato difícil de cumprir. E persiste numa certa “clique” bem intencionada e optimista, como os democratas têm de ser, a grande ilusão de que basta ouvir o Povo e apertar com quem os representa nos órgãos de governo para que as coisas fluam. Não, não basta: a Democracia dá trabalho a todos, requer sacrifícios do indivíduo em prol do colectivo e custa dinheiro. Tudo bens difíceis e escassos. Digo bem: difíceis “e” escassos. Porque à insatisfação constante do ser humano, se alia a crónica tendência de sobrevivência ao estilo mais comum do “salve-se quem puder”. E que muita coisa se rege por uma lei natural, constantemente usada como argumento fácil e silencioso que corrói: a lei do menor esforço, treslida na sua essência que aconselharia, não o laxismo que encobre, mas o eficaz “não compliques”.

Quando se tem a possibilidade de exercer funções em que se sai de uma determinada “bolha”, por muito que dentro dela se interaja em redes variadas, as ilusões sobre a bondade dos colectivos, que não são abstracções mas massas compostas por pessoas, rebentam como bolas de sabão. E há certas elites que, mesmo bem intencionadas e muito úteis quando contribuem activamente participando nos lugares certos em que se ajuda nas decisões a tomar, continuam a perpetuar a grande ilusão: não basta confiar no Povo, que somos mesmo todos nós, porque o bom-senso (bom de bondade mesmo) não é o senso-comum (senso de sentimento mesmo). E, já agora, também não vale a pena iludirem-se de que a sua vontade, na sua bolha, é a vontade dos outros. Por muito que, nestes tempos de inferno, que afinal são todas as contemporaneidades em que deambulamos (do antes é que era bom de uns, aos amanhãs que cantam de outros, a contemporaneidade fica ali no entalado meio), por muito, repito, que estejam cheios de boas intenções.