Permitam-me
que comece por lhes contar uma história. Era no século XIII e em Portugal,
quando a mulher de D. Dinis, D. Isabel de Aragão, ocupava o tempo a fazer bem a
quantos a rodeavam, distribuindo esmolas pelos pobres. Ora, conta a lenda que o
rei, já irritado por ela andar sempre misturada com mendigos, a proibiu de dar
mais esmolas. Mas, certo dia, vendo-a sair furtivamente do palácio, foi atrás
dela e perguntou o que levava escondido por baixo do manto. Era pão, e ela,
aflita por ter desobedecido ao rei, balbuciou: - São rosas, Senhor, são rosas! -
Rosas, em Janeiro?!- duvidou ele. Cabisbaixa, a rainha santa abriu o regaço: o
pão tinha-se transformado em rosas, tão lindas como jamais se viram iguais.
Ora este
Janeiro fechou em Portugal com uma série de acusações e detenções de gente que,
presumivelmente, levava ou teria levado no seu regaço o que estaria legalmente
impedido de levar. Fosse para beneficiar outros ou gratificar-se a si próprios
– normalmente isto até acontece cumulativamente – o que é certo é que as razões
de tais iniciativas, uma vez constituídas enquanto tal, ou seja enquanto
suspeita de crime, estariam cobertas de... razão. O que é crime é crime, e o
sistema está construído de forma a que, consoante o crime, assim a
penitência. É a justiça dos homens, não
universal, o que torna alguns lugares num inferno, outros, mais raros, em
paraísos, normalmente fiscais, e outros, numa espécie de ou purgatório ou
limbo, num “tem-te-não-caias”.
O lado
caricato de toda esta situação é, de facto, o ela ser caricaturável. Se a
diligência com que, quem de direito e dever cumpre as suas obrigações, e as
cumpre investigando onde há, ou dizem que há, cheiro a esturro, é positivo e
devia ser obrigatória em todos, mas todos mesmo, os casos suspeitos. Já a
negligência com que se cuida do que devia ser segredo de justiça, quando
decretado, é a todos os títulos condenável. Recordo que o segredo de justiça
vincula não só as pessoas directamente envolvidas num processo, mas também quem
aceder a elementos dele, por exemplo jornalistas, seja por que meio for. A rotina
com que a medida do segredo de justiça é aplicada no nosso país tem resultado
numa óbvia negativa banalização e, talvez consequente, manipulação com fins
politiqueiros e populistas que em nada contribuem para a saúde de uma sociedade
democrática civilizada.
O ridículo de
se tornar público que se desconfia, levando muitos em praça pública a julgar
sem saber, que no regaço de uns quantos vão, não rosas, mas livros, revistas e
bilhetes de ir à bola, acontece não porque esses não se transformarão em rosas
e por isso a acusação seria justa e penalizável, mas porque ajudam a que
aqueles que levam muito mais do que livros, revistas e bilhetes de ir à bola,
os que fizeram da sua actividade um fartar vilanagem, passem a poder também
reclamar, pelo menos durante algum tempo em que, mesmo em Janeiro, aquilo são
rosas.
A D. Isabel de Aragão mentiu ao marido e isso foi
feio. Lá entre eles, naquele tempo, a coisa não deixaria a senhora, apesar de
santa pelas suas boas e louváveis intenções – aquelas de que o Inferno também
dizem que está cheio -, como alguém que
mudou alguma coisa na política assistencial do seu marido e rei D. Dinis. Mas
isso agora já não interessa nada. O que interessa agora é que haja quem
explique, sem meios segredos, o que deve ser público e que cale o que tem de
ser segredo. Quanto aos meios de comunicação social, bom, se vamos começar a
matar os mensageiros estamos mal e vamos ter de concordar com o 45 da Casa Branca.
É isso que queremos? É isso que a comunicação social quer? Se calhar... é que
para muitos uma mão lava a outra e as duas lavam a cara. Não gosto nada desta
maneira de existir.